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Curiango
Conto de Afonso Schmidt
Todos os anos, ao aproximarem-se as festas de junho, fazia-se uma subscrição para o balão dos presos. Era uma grande colheita de moedas.
Ninguém deixava de levar o seu tostão ao escritório dos jornais; uns para verem o nome em letras redondas, outros por um nobre desejo de proporcionar horas de distração aos encarcerados.
O ano passado, a subscrição rendeu quase o dobro das anteriores. Por isso, as pessoas que até então faziam o aeróstato de S. Pedro, com papel de seda ordinário, resolveram fazê-lo de sólido papel manilha. Foram
quinze dias de uma quase alegre faina. O papel chegou ao pátio num fardo de dez resmas, comprimido por estreitas fitas de aço. Toda gente viu, tomou o peso, esmiuçou, fez comentários...
O Matheus, que estava preso por ter matado a mulher a machadadas, era o rei da festa. Exultava, delirava, dava ordens:
- Zezinho, meu nego, vai buscá a taiadêra pra cortá os ferro...
- Curiango véio, anda daí que tu tá criando ferruge nos joêio...
O Zezinho era ladrão; o Curiango era um pretinho magro, pequeno, ágil e forte, como um macaco, tinha a vadiação na massa do sangue. Nascera ao acaso. Dois vadios encontraram-no, num prédio em obras, alta noite,
escura como um caldeirão de asfalto. O instinto atraiu-os e eles se entregaram um ao outro, sem se terem visto. Talvez, ele fosse um bode evadido de qualquer quintal. Talvez ela fosse uma dessas gatas tísicas, que a gente vê, arrepiadas, sobre as
platibandas, dentro do disco imenso do plenilúnio. O caso, porém, é que Curiango nasceu dessa hora de brutalidade.
A sua mais afastada recordação de criança apresentava-o entanguido, chorando na soleira de uma porta. Depois, recordava-se de uma vida nômade pelos arrabaldes, na camaradagem ociosa dos mendigos e dos cães. Muita
vez, passando pelas chácaras ricas, invejou a sorte dos buldogues, cuja profissão indecorosa é guardar a propriedade... dos ouros. É que eles moravam em casinholas de madeira e tinham sempre à altura do focinho curto e rombo - uma panela de cibo...
Passaram os tempos. Como era natural, os divertimentos públicos exerciam sobre ele uma fascinação e bico Auer sobre besouro. Tanto andou à volta de um circo que acabou sendo admitido como empregado, para tratar
dos animais. Corrido pelos homens, acabou por ser estimado pelas feras. O tigre, por exemplo, tornou-se, para ele, dócil e meigo como um cão. Obedecia-o cegamente. À noite, no pátio fechado por altos muros, quando a magnólia etérea da lua derramava
sobre a terra o seu luminoso perfume azulado, ele abria a porta da jaula e punha-se a saracotear com o tigre. Quando o proprietário do circo veio a saber, chicoteou-o. Depois de atirar o chicote para o lado, teve uma ideia: apresentá-lo como
domador no próximo espetáculo. Seria um sucesso.
Domingo à noite, quando chegou a hora de exibir as feras, em lugar do antigo domador, apareceu Curiango, com um belo dólmã azul agaloado de ouro. Na carapinha trazia um gorro turco, vermelho, com uma borla tão
grande que parecia a bambolina de um cortinado. Já não se chamava mais Curiango: era M. Pott, jóquei tártaro, o rei dos domadores, sucesso de Londres, Paris e Nova York...
Infelizmente para ele, toda gente o conhecia. O povo que se espremia no anfiteatro descobriu debaixo da pele de M. Pott o patusco do Curiango. E, se alguém o duvidasse, lá estava o antigo domador despeitado, para
denunciá-lo com uma verdadeira claque de moleques assalariados para estragar o número.
O nome de Curiango partiu do antigo domador e circulou de boda em boca. Uma gargalhada brutal estremeceu o teto de lona, repuxando as cordas. M. Pott, atemorizado, entrou na jaula do tigre. O animal, ao avistá-lo,
deitou-se aos seus pés, espolinhando-se com satisfação. O público sentiu-se roubado, vendo aquele moleque das ruas solicitar a sua admiração, exigir os mesmos aplausos concedidos a artistas de renome mundial. O domador demitido pôs-se a assobiar
desesperadamente, com dois dedos entalados na boca.
Irrompeu uma tremenda pateada, que sacudiu o circo inteiro. Começaram a voar chapéus, bengalas, cadeiras, tudo, do anfiteatro para a arena. Todos urravam. Assobios agudos furavam o ar. Uma balbúrdia.
Viu-se então uma coisa espantosa. Curiango sentiu, em sua alma primitiva, o desejo de vingar-se daquela gente. E, medula que era, foi do desejo ao fato, sem hesitar. Abriu a porta da jaula e deu saída ao tigre.
Este precipitou-se na arena, espantado da própria liberdade. Operou-se rápida mutação no público. Um silêncio de esmagamento sucedeu à tempestade de apupos. A fera pôs-se a girar pela arena, indecisa.
Um homem soltou um grito espantoso e entrou a subir pelas cordas que levavam ao teto. Foi o grito esperado. A ele se seguiu uma debandada louca. Homens pisavam mulheres e crianças. Fugitivos que, a correr,
tropeçavam nos paus da arquibancada, embolavam-se na serragem da arena. Alguns caíam no mesmo lugar e a multidão, desvairada, pisava-os. Cordas foram cortadas por fugitivos e o pano do circo arriou, abatendo os lustres, apagando-os, confundindo
tudo na massa compacta e escura do pavor que atinge ao desvairamento.
Havia muito sangue. O tigre farejou-o no ar e, de ventas dilatadas, de goela hiante, uivou, atirando-se na noite cheia de gemidos.
Quando, mais tarde, se conseguiu restabelecer um pouco de ordem, verificou-se a existência de mortos e feridos. Crianças foram conduzidas para o necrotério, esmagadas como se tivessem ficado debaixo de uma prensa.
Viam-se mulheres que só conseguiam levantar metade dos braços, num gesto de loucura: a outra metade ficava pendurada, balançando no ar. Um velho, lívido, quase nu, com o ventre aberto, seguia com olhos esgazeados as circunvoluções dos intestinos
pendentes.
Havia mortos nas atitudes mais extravagantes: uns, sentados, quebrados pelo meio, procurando os joelhos com o nariz afilado, cor de cera; outros, em decúbito dorsal, tentando esconder a fronte no sovaco; ouros
ainda, calmos, de mãos cruzadas sobre o peito, os olhos cerrados, com se tivessem expirado em seu próprio leito, depois de uma longa moléstia.
Curiango foi preso, e o tigre acabou abatido a tiros de carabina.
Muita gente ainda se recorda desse júri sensacional em que eu fui um dos doze juízes de fato. Apesar do meu voto, que absolvia o pretinho, foi ele condenado a vinte anos de prisão.
Nos seus primeiros meses de cárcere é que o encontramos na Penitenciária, mudo e trágico, como se fora a sombra de um condenado há muito falecido e que ali tivesse ficado esquecido, entre os quatro muros do
estabelecimento de reclusão.
No dia de S. Pedro, à tarde, o balão foi alçado no ar. Para isso, o Matheus subiu ao teto, pendurou-o na ponta de uma vara e lá ficou, na posição do pescador que linha um peixe grosso. Em baixo, no pátio
movimentado, presos puxavam-no pelos gomos, para abri-lo, ou abanavam a boca de meio metro de diâmetro. Avolumou-se, arredondou-se, oscilando de um lado para ouro, tomando o pátio inteiro.
Na boca, feita de um arco de barrica, com duas hastes de cobre, em cruz, foi adaptada a mecha de grossos chumaços de lona embebidos em breu e petróleo. Por último, rodearam-no de guirlandas de fogos, com esguichos
luminosos e bombas.
A noite veio, lutuosa e chamejante. Fora, esperava-se, com ânsia, o balão dos presos. A cidade preocupava-se com o céu. As praças estavam compactas. Havia gente nos telhados.
Às sete horas, chegaram os funcionários da Penitenciária, com suas famílias, convidados, jornalistas. O grande bojo do balão ficou circundado de curiosos.
Depois de falar ao diretor, o Matheus, fremente de entusiasmo, lançou fogo à mecha. Um clarão alegre encheu a esfera, lambendo-lhe as paredes internas. O papel estrelejou nas emendas, repuxando as cordas que as
reforçavam. Duas vezes o balão ameaçou subir, mas voltou para o solo, mantido por sólidas amarras. Rolos de fumo negro enovelaram-se pelo chão. No alto, o papel, fortemente estirado, rígido, tornava-se transparente, pondo a lume toda uma ossatura
de cordas e junções.
Ouviu-se um tiro de morteiro, depois o "larga!" solene. Com uma faca, o Matheus cortou rapidamente as amarras. A esfera deu um salto. Mas uma sombra atirou-se a ela, segurando-a pela boca, sob a mecha. O balão
como que hesitou... Depois precipitou-se no vácuo, levando Curiango mantido a pulso numa postura de mártir. Ouviu-se um clamor surdo. Mulheres rolaram pelo chão, alucinadas de pavor.
E o balão subia. Nenhuma aragem, nenhuma nuvem. Todos os ventos dormiam. Curiango segurava fortemente no disco de madeira. Sobre sua cabeça estouravam bombas, estrelejavam bichas, queimando-lhe as mãos,
chamuscando-lhe o rosto. Uma baforada de fumo espesso e quente envolveu-lhe a cabeça, sufocando-o. Os braços erguidos começaram a esfriar, as mãos entraram de doer, de escorregar...
Embaixo, a cidade apareceu-lhe sulcada por grandes rios luminosos. Só então teve medo. Mas o balão subia, subia. Num desesperado esforço, agitou o corpo no vácuo e conseguiu entalar uma das mãos na alça que
sutinha o balão quando em terra. Depois, fez o mesmo com a outra mão. Estava crucificado na noite. E o balão subia.
Uma dor lancinante fê-lo uivar. Era a mecha que se derretia, pingando sobre a sua cabeça grandes lágrimas de breu incandescente. A carapinha tornou-se-lhe um emplastro ígneo; escorreu por detrás das orelhas, pelo
rosto, como grandes taturanas de fogo. A roupa incendiou e, de tão escassa que era, caiu desfeita em cinza, sem o ter matado. Ele ainda vivia com toda a sua sensibilidade animal, com toda a sua pequenina consciência de homem rudimentar. O balão
furava o ar, subia.
As lágrimas de fogo continuaram a cair, tirando-lhe retalhos de couro. Eram tantas que, dentro em pouco, ele estava despido da própria pele. E vivia, e fazia todo o esforço para não cair, enquanto a esfera se
elevava a prumo, resplandecente, entre o calabouço e a liberdade azul.