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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, na Folha - 09

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Affonso Schmidt foi também colaborador do jornal paulistano Folha da Manhã, (que daria origem ao jornal Folha de São Paulo e ao grupo homônimo. Na edição de domingo, 17 de abril de 1938, página 8, foi publicado este texto do escritor (acervo Folha - acesso em 9/4/2016 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O preto que sabia sem aprender

(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade  no Estado de S. Paulo para a "Folha da Manhã")

Afonso Schmidt

(autor de "Pirapora", "Curiango")

Isto me foi contado por um homem que tinha ouvido de seu pai. É uma história simples mas impressionante, como todas as do século passado (N. E.: século XIX), quando no Brasil ainda havia escravidão. Aconteceu num desses quietos povoados mineiros, por onde outrora passavam os pretos que vinham da Bahia; por onde ainda hoje passam esses admiráveis baianos que atravessam o São Francisco e, depois de uma jornada de meses, chegam a São Paulo, à procura de trabalho. É um povo resistente, frugal, com qualidades que põem num chinelo as pretendidas "raças puras".

O padre José Gonçalves Moreira, falecido há 23 anos, depois de ser durante mais de meio século vigário de Jequitibá, estava ainda no esplendor da sua vida, que deveria ser longa e piedosa. Mas era um homem do seu tempo. Tinha terras e escravos, e sem ser mau para os pretos, a notícia da sua excessiva bondade não seria bastante para canonizá-lo. O pai da pessoa que me contou o episódio era criança naquele tempo e, aparentado com o vigário, não saía de sua casa. Entre os atrativos que lá o prendiam estava o Moleque. Era um pretinho sem nome, vindo dos lados da Bahia e que, arrematado pelo vigário, era utilizado na fazenda para recados e pequenos serviços.

Esse moleque, no entanto, não se parecia com nenhum outro. O próprio sacerdote dizia continuamente que "ele sabia as coisas sem aprender". E era assim mesmo. Lia, escrevia e fazia as quatro operações com desembaraço. Quando lhe perguntavam quem lhe havia ensinado, o rapazinho sacudia os ombros, como a dizer que nem ele mesmo sabia. O padre, então, puxava-lhe pela língua e, em certas ocasiões, recebia respostas que estava longe de esperar. Não raro, nas suas dúvidas teológicas ou puramente filosóficas, recorria ao bom senso do menino que, levando a sério o papel, apresentava uma opinião. A sua simplicidade perturbava o padre. Era como se a própria vida falasse pela boca risonha daquele pretinho...

Mas o Moleque - era esse o nome que lhe davam - embora tido como "inspirado" pelos que o conheciam, não era de molde a contentar o senhor. Tinha o detestável sestro da contemplação. Quando ia ao pasto prender um animal, esquecia-se da vida e não raro acabavam por encontrá-lo de cócoras diante de um formigueiro a observar como agiam e trabalhavam as formigas. Ou então, sentado numa pedra do rio, parecia querer interpretar o queixume eterno das águas. Isso não impedia que tivesse um belo humor, fosse traquinas e trouxesse a fazenda em polvorosa com as suas artes.

De quando em quando, o padre o chamava à ordem e muita vez teve de consentir que lhe dessem umas vergastadas, para seu próprio bem - sentenciava -, porque naquele tempo ainda não se compreendia educação sem vara de marmelo...

Do Moleque sem nome aí vão duas anedotas, um tanto melancólicas, que dão ideia da personagem:

Ele era o amigo das rolinhas que, pelo cair da tarde, vinham mariscar no terreiro. Pelo que eu deduzo do que me foi contado, essas aves deviam estar muito habituadas ao pretinho. Foi assim que uma vez, sentado no alpendre da casa grande, o vigário viu o Moleque na sua faina, entre dezenas de rolas que lhe esvoaçavam sobre a carapinha. Então o padre, por pilhéria ou para experimentá-lo, gritou-lhe:

- Moleque, traga-me essas rolinhas!

Ele respondeu, um tanto assustado:

- Sim, sinhô...

Foi buscar o chapéu, agitou-o no ar e depois colocou-o de copa para baixo, na palma da mão. As rolinhas, como se atendessem a uma orem superior, esvoaçaram um momento e depois se aninharam no chapéu. As que não couberam na copa, pousaram nas suas mãos. E assim, com o improvisado pombal, o pretinho se encaminhou timidamente para o senhor...

O vigário ficou perplexo. Depois, julgando-se vítima de uma visão, ficou de pé e caminhou para o rapaz, a fim de melhor investigar o que havia acontecido. Era de fato o que seus olhos viam; as avezinhas selvagens obedeciam às ordens do Moleque. E quando o padre se aproximou, as pombas fugiram numa alegre revoada.

Desde aquele dia, padre José passou a tratar o Moleque de outra forma. O senhor é que parecia respeitar o escravo. Mas estávamos em ouro tempo. Tal situação não poderia durar. Por isso, quando na fazenda passou um viajante, o vigário vendeu o Moleque. Fê-lo, porém, às escondidas, com a condição do comprador manter sigilo até o primeiro pouso. Isso devia ser feito. Mas, à hora da partida, quando o viajante se despedia do vigário e o Moleque foi procurado para levar as malas até o "primeiro pouso", todos ficaram boquiabertos: o Moleque, sabedor de tudo o que ia dar-se, estava na senzala a despedir-se dos parceiros e a chorar de saudades, por antecipação. O padre havia se esquecido de que o pretinho "sabia as coisas sem aprender..."

Assim mesmo foi vendido e nunca mais se soube dele.

Acrescentou o meu amigo que seu pai, quando contava esta história, terminava assim:

- Tenho uma certeza íntima de que aquele pretinho, mais tarde, devia chamar-se Luiz Gama.

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