Dentro de alguns meses, o Brasil vai comemorar a abolição da escravatura em todo o seu território. É verdade que em 13 de maio de 1888 já o Ceará não contava mais escravos e,
mesmo em São Paulo, onde o escravagismo e o abolicionismo eram mais intensos, já havia município onde, pela espontânea vontade dos senhores, não se encontrava mais um só negro no eito. Podemos acrescentar ainda que terras como as de Santos se
haviam tornado numa espécie de ilha de liberdade, onde o escravo só por lá entrar sentia-se liberto. Data desse tempo o famoso Quilombo do Jabaquara, de Quintino de Lacerda, de Santos Garrafão, de Wansuit e tantos outros humildes abolicionistas que
agiam de um modo direto enquanto os intelectuais discutiam se havia de ser abolição, redenção etc...
Não cabe ao autor desta crônica ligeira discutir uma obra vitoriosa que, apenas realizada, passou para a História e de modo definitivo, como se fosse coisa de séculos. A palavra cabe aos que viveram esses
esplêndidos dias e que ainda se encontram entre nós, admiravelmente lúcidos para contarem pormenores muito mais interessantes do que isso que geralmente se lê nos livros.
Conheci alguns abolicionistas, quase todos de Santos: Julio Maurício, que vi uma só vez, já muito velho, discutindo o problema como se ainda estivesse em plena assembleia da
Sociedade Libertadora de 27 de Fevereiro; Américo Martins dos Santos, que sabia das coisas mais interessantes da campanha; Totó Bastos, que militou na imprensa por aquele tempo e, sempre que podia, punha-se a falar do jornalismo abolicionista.
Nas escolas de Santos eram publicados jornais manuscritos que andavam de mão em mão, levando por toda parte o grito de uma infância cheia de amor pela liberdade.
Foi Totó Bastos quem me contou a história da Pensão da Brandina.
Essa pensão ficava no lado esquerdo da hoje Praça Telles, onde ainda existem uns velhos armazéns. Antes de 88, havia ali um chalé verde por trás de uma cerca. Era uma casa
onde faziam suas refeições numerosas pessoas gradas da cidade, entre as quais corretores, jornalistas, políticos e negociantes ricos.
A dona era uma mulata chamada Brandina, que só tinha uma aspiração na vida: a liberdade de seus parceiros. Nessa pensão havia duas salas: uma na frente, onde comiam as pessoas importantes e que pagavam bem; outra
nos fundos, onde comiam jornalistas, "caifazes do Antonio Bento" e outras pessoas suspeitas de abolicionismo. Esses nem sempre pagavam. Mas, é escusado dizer, a dona da casa tinha preferência pelos últimos...
A Brandina tinha o seu indefectível português - o Santos Garrafão. Está aí uma figura humilde a que a História, certamente, há de um dia fazer justiça. O Santos Garrafão - assim chamado porque a sua silhueta
lembrava remotamente essa vasilha - era dono de uma venda das mais modestas. um dia, por elevação de sentimentos ou para ser agradável à Brandina, interessou-se pela causa abolicionista. E interessou-se a valer. Tornou-se um verdadeiro apóstolo,
como quer Nosso Senhor. Deu tudo o que tinha para os pretos fugidos. Quando o calhambola (N. E.: escravo fugido, sem meios de subsistência) chegava a Santos, ia bater na
porta do Garrafão. Ali comia, bebia, dormia; só depois é que ia para o Jabaquara. Resultado: ele se encalacrou. Tomaram-lhe tudo, lacraram-lhe a porta, suspenderam-lhe o crédito.
Então atirou-se mesmo de ponta-cabeça no abolicionismo. Com uma carrocinha e um burro, salvos do seu naufrágio, passou a correr a cidade, recebendo gêneros alimentícios para o Quilombo do Jabaquara. Prendiam-no,
apupavam-no, caluniavam-no. Mas ele tinha fibra de santo. Não interrompia a sua obra e, todas as tardes, puxando o burrinho pela rédea, lá ia para as bandas do Jabaquara, levar feijão, carne-seca, toicinho, sal, cebolas etc. para os pretos. Fez
isso durante muitos anos. Quando se deu a abolição, era o homem mais popular da cidade. Mas, sentindo-se inútil depois da obra acabada, fechou os olhos e morreu. Ele e a mulata Brandina estão entre os heróis populares que mais admiro.
Mas, íamos falando de imprensa. São Paulo teve uma admirável imprensa abolicionista. uma crônica de Bueno de Andrade, publicada a 13 de maio de 1918, recorda coisas curiosíssimas a esse respeito. Do muito que
escreveu o ilustre paulista, lembro-me apenas do que se refere à "Gazeta do Povo", cuja redação era na Rua M. Deodoro, 5. Claro que esse jornal não existe mais, tampouco a rua...
Essa folha - o segundo diário vespertino que se publicou nesta capital - era terrivelmente abolicionista. Mas de um modo todo especial, que alarmava a alguns dos seus leitores e enchia ouros de satisfação. Seu
diretor, o jornalista Veiga Cabral, segundo o depoimento de Bento de Andrade em 1918, não se limitava a ser contra a posse do escravo pelo senhor, mas contra todas as propriedades... E Bueno de Andrade comenta esse estranho jornalista de 1887: "...
se ele houvesse vivido na Revolução Francesa, teria formado ao lado de Babeuf; se existisse hoje seria maximista".
Está aí, pois, precioso depoimento que pode fazer luz nova sobre um acontecimento de há cinquenta anos e que, como disse a princípio, já nos parece de séculos.