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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 44

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 3 da edição de 2 de dezembro de 1945 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O protocolo

Em agosto do ano próximo, os estudiosos da nossa história assinalarão a passagem do cinquentenário de uma série de acontecimentos que permaneceram na tradição popular com o nome de "protocolo". Essa palavra italiana, mil vezes publicada pelos órgãos coloniais de São Paulo e do Rio de Janeiro, conservou-se na nossa linguagem regional com uma significação diferente, isto é, de reclamação, que os dicionaristas não haviam registrado. Portanto, quando os velhos falam hoje do protocolo ou dos protocolos, referem-se a uma série de reclamações diplomáticas e pedidos de indenizações que desencadearam lamentáveis acontecimentos.

Estávamos em agosto de 1896: Prudente de Morais era presidente da República, Carlos de Carvalho, ministro do Exterior, Campos Sales, presidente do Estado. Francisco Glicério, líder da maioria na Câmara Federal, e Xavier de Toledo, chefe de polícia de São Paulo. Nesse período veio a furo uma questão que datava de 1892. Vamos resumi-la:

Em 22 de junho de 1892, aportou em Santos o cargueiro Mentana, sob as ordens do capitão de longo curso Mario Anitra. Atracou no trapiche Belmarco, tendo de permeio a barca Pietro T, da mesma nacionalidade, que lhe servia de pontão.

Durante a descarga do Mentana, o capitão Anitra foi acusado de praticar irregularidades e, de acordo com os regulamentos da Polícia do Porto, teve ordem de prisão. Os guardas foram procurá-lo a bordo do seu navio, mas não o encontraram. Na mesma noite, com um reforço da polícia, varejaram o Mentana e, como ainda não o encontrassem, estenderam a diligência à barca Pietro T, revistaram-na e, num dos seus paióis, botaram a mão no fugitivo lobo-do-mar. Assim, entre guardas aduaneiros e soldados da polícia, o capitão Anitra foi conduzido àquela noite para a cadeia de Santos.

Procedeu-se a uma inquirição de testemunhas, sempre demorada. E, enquanto o processo subia e descia, encalhando por vezes nos seus trâmites, a febre amarela dizimava a população da cidade. Um dia, o capitão Anitra amanheceu doente. Mandaram-no para o hospital. Dois dias depois, estava morto.

O fato repercutiu nesta capital, mais do que se poderia esperar. Na Ladeira São Francisco, havia um jornalzinho italiano chamado Roma, de propriedade de um imigrante que aqui chegara da Argentina, disposto a ganhar no jornalismo o que não conseguira na venda de charque. Sabendo da morte do capitão Anitra, o jornalzinho botou a boca no mundo. Fez uma gritaria ensurdecedora. No dia 4 de julho seguinte, realizou-se um comício no Paissandu. A polícia interviu. Houve feridos de parte a parte. O ministro Crispi, então premier de Humberto I, reclamou. Foi o primeiro protocolo.

No ano seguinte, nos primeiros dias da Revolta da Armada, chegou ao Rio de Janeiro o navio de guerra italiano Barsan. As autoridades consulares, como era de praxe, fizeram-lhe uma visita. Voltaram alta noite, num escaler, com quatro remadores. A esquadra revoltosa naqueles dias estava na Guanabara, pronta para o desembarque. A borda do mar, por isso, estava guarnecida, com sentinelas avançadas. De repente, uma luzinha sobre as águas... A luzinha aproximou-se... A sentinela mais próxima botou a espingarda na cara, atirou e, por infelicidade, matou um dos remadores. Era o escaler de bordo da "regia nave". O marinheiro chamava-se Giovanni Micele. Imagine-se a repercussão que teve esse acontecimento.

No dia seguinte, o comandante do navio e o vice-cônsul foram ao Ministério do Exterior e exigiram de má cara uma indenização de cem contos de réis que o sr. Carlos de Carvalho mandou pagar imediatamente. "Os srs. não têm competência para cobrar essa indenização: eu não tenho competência para pagá-la, sem ouvir o governo. Estamos taco a taco". E mandou encher o cheque sobre o Tesouro Nacional.

Mas a questão se agravou de todo quando o governo anulou o privilégio que havia concedido à firma Pietro Camina, do Rio de Janeiro, para a construção da Estrada de Ferro Metropolitana que, partindo do Largo da Carioca, serviria aos moradores do morro de Santa Tereza e outros morros do Distrito Federal. O procurador dessa firma era um brasseur d'affaires de nome Salvatore Nicosia, conhecido nos ministérios, de que era frequentador assíduo, pelo nome de Totó Nicosia. Oito meses após a sua chegada ao Brasil estava rico. Dezesseis meses depois, mostrava-se pobre de "morder" para a média (N. E.: média tem aqui o sentido de unidade de pão francês de 50 gramas). Dois anos passados, lá estava ele novamente possuidor de respeitáveis contas-correntes nos bancos.

Apesar de cunhado de Giovanni Bovio, o notável deputado republicano das cortes de Roma, esse Totó Nicosia era monarquista. Monarquista militante. Chegaram mesmo a suspeitá-lo orientador do golpe de 1891. Foi preso e transportado para bordo do Riachuelo, mas as forças misteriosas que o protegiam lá foram buscá-lo dois dias depois, para restituí-lo à liberdade. O governo pôs uma pedra em cima do processo. E ele continuou a manobrar. Graças à sua interferência, Crispi pediu indenização pela retirada do privilégio da Metropolitana. Foi o segundo, ou terceiro protocolo.

Nesse ínterim, centenas de pessoas reclamaram indenizações. Até mesmo o proprietário do Roma, que recebeu cerca de 38.000 liras italianas... E as indenizações foram tantas, naquele período trágico para o Brasil, que o próprio barão Prat, ministro dos Negócios Exteriores da Itália, chegou a dizer ao sr. Domício da Gama, nosso representante em Roma: "Precisamos acabar com essa indústria dos protocolos". Mas, dizendo essa boa frase, pediu ao Brasil que concordasse com a indenização da Metropolitana "por motivos de alta conveniência política e parlamentar"...

Mas, infelizmente, não pensava assim o sr. conde Edoardo Campans de Brichanteau, seu cônsul em S. Paulo. Era um condottiere monarquista que o destino fizera diplomata. Os paulistanos viram-no à frente de passeatas e comícios. Praticou violências inomináveis e acabou por declarar aos corespondentes estrangeiros que estava pronto a colocar-se à frente da coletividade de que era cônsul.

O sr. Carlos de Carvalho, ministro do Exterior, vendo o rumo que as coisas tomavam, submeteu os protocolos à aprovação da Câmara Federal, onde o general Glicério era líder da maioria. A Câmara devia aprovar? Devia recusar? Cada cidadão tinha o seu ponto de vista particular. E a imprensa também. Por isso, a questão pegou fogo. Houve tumultos no Rio de Janeiro e na Bahia. Mas foi em São Paulo que correu sangue.

Nos dias 21, 22 e 23 de agosto de 1896, lutou-se de arma na mão nas ruas de São Paulo. Felizmente, no dia 24, dia de São Bartolomeu, a Câmara Federal recusou o protocolo e essa notícia acabou com as arruaças, transformando os gritos sediciosos em aclamações ao governo.

A Itália, como sempre, mostrou-se amiga da justiça. O premier Crispi mandou-nos o sr. De Martino, como ministro plenipotenciário para resolver a questão diretamente com o governo brasileiro. E tudo acabou da melhor maneira possível. Em novembro desse mesmo ano, para cimentar a boa vontade dos dois governos, Crispi mandou-nos o cruzador Lombardia, um dos quatro maiores navios da frota italiana, em visita de cordialidade.

O vaso de guerra entrou na Guanabara e deitou as âncoras. No segundo dia, a esperada visita de seus oficiais não se realizou. No terceiro dia, corriam boatos pelo Rio de Janeiro... Mas não se deu o que muitos temiam. Deu-se ao contrário um drama que a todos comoveu. A peste havia irrompido a bordo com tal violência que desarticulara os serviços internos. Morrera o comandante Antonio Olivieri.

Logo a seguir, a peste matou um a um quase todos os homens da tripulação. Entre eles, os capitães de corveta Enrico Formigini e Giuseppe De Pozzo, o cabo maquinista Francisco Dusmetti, o médico Permo Zanone, muitos outros oficiais e quase todos os marinheiros e serviçais de bordo. Esses mortos foram enterrados no Cemitério de São Francisco Xavier, onde, em 1901, os italianos do Rio de Janeiro ergueram um mausoléu. No mês seguinte chegou uma guarnição para conduzir o Lombardia à Itália.

E assim se restabeleceu, para sempre, a harmonia entre os dois povos irmãos. Daí para cá vivemos num regime de inteligência, cordialidade e cooperação, tão estreito e tão sincero que poderia servir de exemplo aos demais povos do mundo.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O problema com o Mentana em Santos, registrado na página 2 da edição de 23 de junho de 1892 do jornal O Estado de São Paulo

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria, no Acervo Digital Estadão

Em 5 de dezembro de 1896, depois do Congresso Nacional ter recuado de sua decisão inicial de rejeitar o documento, o vice-presidente em exercício, Manuel Vitorino, assinou a lei 425 selando o acordo sobre o Protocolo Italiano, que havia sido firmado em 19 de novembro de 1896 com o ministro plenipotenciário especialmente enviado pelo italiano, o conde Magliano di San Marco. Pela lei, o Brasil se comprometia a pagar 4 mil contos de réis à Itália, que seriam depois distribuídos pelo governo italiano entre o Hospital Umberto Primo, o Orfanato Cristóvão Colombo e as escolas italianas existentes no Brasil.

O texto da lei é bem discreto:

Imagem: reprodução da lei no site do Senado Federal (consulta em 5/7/2012)

 

A lei 425 foi publicada na primeira página do Diário Oficial da União de 8 de dezembro de 1896 (clique >>aqui<< ou na imagem abaixo para obter o arquivo PDF correspondente):

 

Clique na imagem para obter o arquivo PDF dessa página

Imagem: site JusBrasil (consulta em 5/7/2012)

 

Junto com a lei 425 foi publicado, também na primeira página dessa edição, o decreto 2.397, de 7/12/1896, em texto bilíngue português-italiano:

 

ACTOS DO PODER EXECUTIV0
DECRETO N. 2.397—DE 7 DE DEZEMBRO DE 1896
Manda executar o Accordo firmado em 19 do novembro de 1896 com o Ministro de Sua Magestade o Rei da Italia sobre as Reclamações Italianas


O Vice-Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil:


Havendo o Congresso Nacional approvado pela lei n. 425, do 5 do corrente mez e anno, o Accordo firmado em 19 de novembro ultimo com o Ministro de Sua Magestade o Rei da Italia sobre as Reclamações Italianas, decreta que seja observado e cumprido tão inteiramente corno nelle se contém.


Capital Federal, 7 do dezembro de 1896, 8º da Republica.


MANOEL VICTORINO PEREIRA.
Dionysio E. de Castro Cerqueira.

ACCORDO

Os Governos do Brazil e da Italia, reconhecendo a difficuldade de se entenderem sobre o merito de algumas das Reclamações Italianas que, parecendo a uma das Partes injustas e a outra justas, foram objecto de discussão, conveem em que sejam liquidadas mediante um só acto, que não importará abandono, por parte Delles, dos principies que teem sustentado; e para esse fim o Ministro de Estado das Relações Exteriores da Republica dos Estados Unidos do Brazil e o Enviado Extraordinario e Ministro Plenipotenciario de Sua Magestade o Rei de Italia, abaixo assignados, devidamente autorisados pelos seus Governos, teem estipulado o seguinte:

1.º O Ministro de Estado das Relações Exteriores da Republica dos Estados Unidos do Brazil pagará, logo que o presente Accordo for approvado pelo Congresso Nacional, ao Representante do Real Governo da Italia a somma de quatro mil contos de réis, moeda corrente.

2.º 0 Com o pagamento dessa somma ficará o Governo Brazileiro livre de toda intervenção do Governo Italiano pelas reclamações apresentadas até a data do presente Accordo pela Regia Legação da Italia no Brasil ao Ministerio Federal das Relações Exteriores, às quaes até agora se não deu ou a respeito das quaes se não estipulou outra solução; de modo que por nenhuma causa ou razão poderão essas reclamações ser de novo apresentadas ou sustentadas.

3.º O Governo Italiano, ficando unico e exclusivo Juiz da validade das reclamações, terá plena e illimitada faculdade de distribuir a dita somma por sua propria conta e a seu agrado sem que o Governo Brazileiro entre no exame do modo do distribuição, nem das reclamações que forem ou não admittidas a indemnisação.

4.º Si algum reclamante recusar a indemnisação que lhe for attribuida pelo Governo Italiano, a somma recusada será restituida ao Thesouro da Republica e o reclamante conservará o direito de recorrer aos competentes Tribunaes Brazileiros, bem entendido, sem qualquer ulterior intervenção do Governo Italiano.

5.º O Governo de Sua Magestade o Rei de ltalia já deu a sua approvação ao presente Accordo e o Governo da Republica o subrnetterá do Congresso Nacional na sua actual sessão.

Feito e assignado em dous exemplares, cada um delles escripto nas linguas portugueza e italiana, na cidade do Rio de Janeiro, aos dezenove dias de novembro de mil oitocentos e noventa e seis.

(L. S.) — Dionysio E. de Castro Cerqueira.

(L. S.) — R. de Martino.

Um decreto regulamentador, de número 2.401 e com data de 9/12/1896, foi publicado na página 17 da Seção 1 do Diário Oficial da União de 11 de dezembro de 1896 (clique >>aqui<< ou na imagem abaixo para obter o arquivo PDF correspondente):

 

Clique na imagem para obter o arquivo PDF dessa página

Imagem: site JusBrasil (consulta em 5/7/2012)

Veja mais:

Quando Santos quebrou o protocolo italiano

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