A cena se passa, altas horas da noite, em um cafezinho de arrabalde. O caixeiro está atrás do balcão. O único freguês é um
velho que cochila sobre o copo de vinho. O boêmio entra, fatigado de perambular pelas ruas. Dirige-se ao empregado.
- Boa noite...
O homem não responde. Ele vai a uma das mesas, abanca-se e fica com a cabeça apoiada nas mãos. Só então o caixeiro parece
vê-lo.
- Olhe, se entrou para dormir não temos conversa!
- Traga um café.
- Assim é que a gente se entende. (Serve-o, com um bocejo). Vá passando o cobre, que aqui é na ficha.
O rapaz procura a moeda no fundo do bolso.
- Tome lá, homem.
Fica a saborear o café. A noite, lá fora, é silenciosa e azul. De repente, cachoam as notas cristalinas de um piano da
vizinhança. O velho desperta e se põe a marcar compassos, com o cachimbo.
- Quem é que estas horas está tocando piano?
- É o maluco.
- Que maluco?
- É um compositor que mora na sobreloja. É meu amigo. Eu conheço toda a gente do bairro.
- Ah, sim... E porque é que o chamam de maluco?
- Porque ninguém o compreende. De dia dorme, de noite vagabundeia. Quando a lua branqueia os telhados, ele vai ao piano e...
Escute...
Volta a marcar compassos com o cachimbo e adormece sobre o copo de vinho. Nesse momento, num canto do café, aparece a
Desconhecida. É moça, fina, espiritual, reluzente de sedas, faiscante de joias. Comprime ao peito uma braçada de rosas. O rapaz a vê e fica
perplexo. A música continua. Ela nota o pasmo do freguês e leva o dedo aos lábios, impondo-lhe silêncio. Psiu! Depois vai, pé ante pé, e senta-se à
sua mesa.
- Vamos lá, diga boa noite...
- Escute, o taverneiro é um homem de mau humor e não gosta destas pilhérias. Além disso, ele já está comigo por aqui... Quer
tomar alguma coisa?
- Eu? Sim... Um Madeira.
- Desculpe, mas...
- Sim, um Madeira, vou pedir...
- É que...
Aflito, vasculha os bolsos.
- Bobinho... Eu não quero nada. Vim aqui, apenas, para lhe fazer companhia.
- Uf! Está bem. Mas de onde é que você está chegando, a estas horas?
- Dali, da noite.
- Assim elegante?
- Milagres de setembro. As chácaras estão floridas. Os ipês parecem uma poeira de ouro...
- E que veio fazer?
- Isto: enfeitar a sua mesa, assim...
Enquanto ele toma o café, ela vai espalhando rosas pela mesa, pelo chão, pelas cadeiras, vai florindo tudo.
- Você é atriz?
- Não.
- É aventureira?
- Também não.
- É dama da sociedade?
- Muito menos.
_ Uma fada?
- Eu?... Ora essa!
- Então é maluca...
- Talvez.
- Ih... Sempre me acontece cada uma! O caixeiro vai vê-la e correrá comigo. Moça, siga o seu caminho!
Mas o empregado vai à mesa, tira a xícara e não vê a mulher, nem as rosas.
- Olhe, dê-me um copo de água.
- Daqui a pouco, pede um palito e um jornal.
Serve o copo de água e volta ao seu posto, a lavar xícaras.
- Moça, quer água? Está límpida e fria.
- Não tomo água a esta hora. Porque não prefere um copo de vinho?
- Ora, deixe de pilhérias.
- Pois não deixarei você beber essa água. Faz mal. (Mergulha três rosas no copo). Aí tem moscatel. Experimente.
- Será possível? É vinho! E agora, como farei para pagar o caixeiro?
- Não seja tolinho... O caixeiro não existe. Fui eu que tomei de um carvão e pintei um boneco na parede.
O rapaz levanta-se e vai examinar o empregado. Toca-lhe no braço:
- Vejamos...
Mas o caixeiro mostra-lhe os dentes:
- Não me toques, que eu sou inlétrico!
A desconhecida ri. E segreda-lhe:
- Venha cá. Diga-me a frase que você ainda não disse.
- Qual delas?
- Uma frase de amor.
- Mas isso é uma loucura. Não entendo nada. Não compreendo...
No silêncio do café cascateia novamente a música. O velho acorda, marca uns compassos e adormece.
O rapaz exclama:
- Lá está outra vez o músico que toca piano quando a lua branqueia os telhados.
Vai à porta e olha para fora.
- A noite está de enlouquecer.
Durante a sua ausência, a Desconhecida desaparece, o velho ronca, o caixeiro lava a louça. O piano passa a tocar em surdina.
- Onde estará aquela mulher? Desconhecida! Ó desconhecida! Ninguém!
O caixeiro reclama:
- Já lá está você, outra vez, com o demônio no corpo?
E o velho:
- Mas que barulho! Deixem-me dormir!
O rapaz dirige-se ao caixeiro:
- Onde foi aquela moça que estava sentada à minha mesa?
- Que moça é essa? Não vi moça nenhuma!
- Aquela que sentou ali, que transformou a água em vinho e que espalhou todas essas rosas pela casa...
- Que vinho? Que rosas?
- Você não vê como o café está todo enfeitado de rosas?
- A! com quem estou lidando... Ora vai-te para a casa do diabo!
O velho acorda de novo, acende o cachimbo e pergunta:
- Afinal, que foi que você perdeu?
O boêmio está de pé perplexo, no meio da sala. A música cascateia. O velho fuma, observa-o e sacode a cabeça com ar compungido.
O namorado dirige-se a ele:
- Você a conhece?
- Conheço toda gente do bairro.
- Então, diga-me quem é ela. Quero ir procurá-la!
- Ah! Conheço-a há muito tempo. É uma doida. Anda a florir as tristezas do mundo e a dourar as durezas da vida. É...
- É...?
- Hoje é 21 de setembro. è d. Primavera!
A música envolve a casa, a rua, o bairro, a cidade e o céu. Nunca houve na terra uma noite tão azul.