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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Na Tapera do Nho Tido

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado nas páginas 09 e 14 da edição 16.030, de 9 de setembro de 1928, no suplemento A Vida Literária do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 9 do jornal O Paiz de 9/9/1928

 

Na Tapera do Nho Tido

- Ota! Solama bruta! – ia dizendo o Chico Picapáo, sozinho, pela estrada vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e rosto abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta azul que vestia a oração livradeira das cobras e dos outros bichos de peçonha. Derrubou mais o chapéu na testa, pôs a mão esquerda sobre os olhos, atentou no céu demoradamente:

- Pois já devéra de 'tar mais friinho um pouco: arre, dianho! Neste tempo que o sol já aponta branco, a fresca vem cedo. Isto é chuva que 'tá aprojetando, não hai como não seja.

E, de fato, para os lados do Ourinho havia nuvens acasteladas sobre os morros, vagamente ameaçadoras na sua cor plúmbea e triste. Uma tapena começou a circular ao cimo da mata, com preguiça, dois tucanos principiaram de uma banda a outra da estrada um diálogo em voz rachada e enfadonha, e o sol teve sombras intermitentes a cobrirem-lhe a face esfogueada.

Ao passar do ribeirão dos Cardosos, porém, o Chico Picapáo sentiu-se por demais fatigado. Sentou-se a uma raiz de guapeva, sacou do isqueiro, tirou o cigarro de trás da orelha, bateu o fuzil, ateou. Com pouco lançou-o à aguada, meio enfurecido, resmungando:

- Quando um home' 'tá mesmo um tanto venenoso, aí é que o diabo do cigarro fica fumegado! Pois vá-se embora, coisa à toa, corra a sorte rio abaixo!

Deitara o butucum ao pé da raizama da árvore, tomou-o e abriu-o. Trouxe do fundo uma colher, encheu-a de paçoca de jabá, descascou uma banana nanica, e foi comendo uma e outra coisa, revezadamente, mas com ares de fastio. Foi a tempo que um pavô berrou perto, numa forquilha de sete-casacas, irrequieto, fazendo brilhar à claridade o largo vermelhão do peito. O Picapáo sacudiu a cabeça, com gesto de amuado:

- Injuréia, traste, pode injuriar o quanto quiser! Carga que eu soquei na bocuda, chumbo que eu trago na purunguinha, pórva que eu tenho na guampa não é hoje p'ra você: ganhe seu rumo! Eu hei de ter uma caçada mais melhor!

Levantou-se. Apanhou o butucum na mão esquerda, pô-lo no ombro, e a espingarda de grosso calibre, que foi levando a tiracolo. Ia vingar-se. Um ano antes, o Aristides Fartura, a que todos chamavam nho Tido, e tinha umas terras na testada do seu sítio, aparecera por ali a derrubar dois alqueires de mato e fazer o chão para cinco mil pés de café. Derrubara o mato, queimara, plantara milho, desencoivarára a roça; alinhou o café, foi-se embora, deixando o mais ao fazer de um empreiteiro. Mas nesse meio tempo é que houve mironga velha entre o Picapáo e nho Tido.

Nho Tido tinha as terras em ser, entre cultivados e criação de toda gente, porque a fazenda era aberta de muitos anos. Não fez a mais pequena cerca, um valinho que fosse, e a roça ficou à disposição de quanto capado solto havia, de quanto boi alongado. Certo dia, estando a passear no milho, que por sinal ficara uma lindeza, viu um poldro moirão chamando algumas folhas, regozijadamente. Não esperou mais nada, não quis saber quem era o dono do cavao, atirou-lhe a chumbo mostarda, para o alto do lombo. O chumbo apenas chamuscou o poldro pela pá, mas o rumor da disparada foi grande entre as plantas e o massambará, que também crescera, a todo o poder, na terra fresca e fofa.

Mandou-lhe o Picapáo dizer que tivesse paciência com a propriedade alheia, não judiasse por aquela maneira dos animais que não tinham consciência do que aprontavam e, não achando fechos, haviam de varar por força; que, abrindo ele nho Tido uma roça entre vizinhos arranchados de tempos antigos, estava por isso mesmo obrigado a resguardar seu milho por meio de cercas, e os vizinhos, pelo contrário, não haviam de fechar porteiras e invernadas em respeito a um cultivado novo. Mas nho Tido não atendeu a nada, ameaçou que mataria quanta criação topasse por ali fosse lá de quem fosse.

O Picapáo, neste entretanto, teve que levar uma carregação de sal para Mato Grosso, onde ia fazer negócios de todo porte, barganhas, tramas, compras, vendas. Lá se demorou uns seis meses.

De volta soube que nho Tido lhe passara o couro num filho pequeno, quando este ia reclamar alguma coisa sobre a morte de um boizinho arroz-doce, carreiro, o que havia em mansidão, morte feita por nho Tido na roça de milho. O Chico passou a noite em claro, mastigando em seco e falando de trecho a trecho:

- Morreu! O cachorro que lavou a mão no meu filho, quando meu filho tem pai vivo p'ra lhe dar a ensinação percisa, 'tá morto! E ainda mais p'ra amór de que? P'r amór de um garrote que andou por onde podia andar, dês que não teve intronca nem uma por diante dos peitos. Não hai remédio: 'tá morto!

Soube que nho Tido assistia no ribeirão dos Pires, tomou as confrontações do lugar, por vários diz-ques, e, como os animais que trouxera estavam muito sovados uns sentidos e outros desmerecidos em demasia, resolveu caminhar a pé três léguas que se mediam da Cachoeira ao pires.

E botou-se a caminho.

Avizinhava-se da morada, naquele momento. A mata virgem desaparecera, dando lugar a um capoeirão já frondoso e rico. Não aspirava mais o Picapáo o cheiro estonteante do alheiro, não via mais os troncos alentados da figueira branca, nem os claros e lisos guaritás de imensa altura, mas batia ainda terra boa, de casqueiro grudento,onde se agrupavam os sapuvuçús e os cambarás-de-lixa, e onde, de espaço a espaço, a larga e espinhosa folha de urtiga caía para a estrada, e os ramos de unha-de-gato, entremeados de flores cor de enxofre, bamboleavam no ar.

Também o capoeirão du lugar a uma vegetação menos forte; romperam do chão seco o assa-peixe, os juás daninhos e a jurubeba; alguma samambaia chegou a esparzir suas ramas amplas e duras sobre as criciúmas mal contentes daquele terreno ingrato. E o ribeirão dos Pires já se mostrou de longe ao Picapáo, cheio de guapés e de agriões, sombreado aqui e além por árvores de cerrado. A casa de nho Tido via-se do caminho, quase encoberta numa baixadinha, entre cuvitingas e caiúias.

O Picapáo entreparou, antes de seguir o trilho que ia ter àquela casa, sopesou a espingarda, verificou se as escorvas estavam bem justas com os ouvidos; pôs a vareta em ambos os canos, mediu três dedos de sobejo de cada um; e deu de cantar na toada da morena, em voz abafada, satisfeito por ver que a companheira andava firme e fiel.

Fronteou, enfim, a morada, que era feita de pau-a-pique e tinha o teto trançado de coqueiro e sapé. Havia, dentro, silêncio completo. Fora, não se via sinal de gente, nem o mais leve rasto na areia arroxeada da porta: e a porta, de parafuso, cerrava-se toda, ao parecer, de muito tempo. O Chico Picapáo cessou da morena e gritou rijo:

- Ó de casa!

Não houve o mínimo bulício no interior da habitação. E o eco do chamado vibrou por instantes ainda, até que o Picapáo resmoneou num solilóquio:

- Uiai, gente! Quer ver que o home' pitou!

É que vira, em todo o arredor da casa, mostras de desamparo: a guainxuma viçara por toda parte, o gervão floria abundante, o mamoninho-de-carneiro apontara e abrolhara como uma praga, tudo chorava por uma enxada, quando não por uma foice. O cipó-correia de alguns amarilhos partira-se: havia rachões de cambuatá que quase vinham ao chão, despegados das travessas e bambos. Em cima, na cumeada, uma cabaceira alastrara vencedora e alegremente, e as cabaças vingaram.

Começaram a cair enormes gotas d'água. O Picapáo afastou dois paus da porta, esgueirou-se para dentro. Deu logo com os olhos numa grande folha de caratinga, que também fizera o mesmo, dias antes, na porta da cozinha, e agora quietava, verde-negra com pintas quase roxas, muito senhora de si naquele sossego. E raciocinou então que o Tido na certeza já não parava ali de meses, pois o mato ia tomando conta de tudo, enveredava pela varanda e iria até as linhas em pouco. E rosnava zangado:

- A minha vingação ficará em branco? O home' terá mesmo dado a louca? Ou andará p'r o mundo? Qual! Eu hei de tirar a minha vingação: ora se hei de!

Caiu uma pancada de chuva, o céu ficou logo limpo, os ares refrescaram-se, foi descendo a tarde. E, com o acabar da chuva e o entardecer, o Picapáo ouviu, para os lados do espigão-mestre da paragem, uma barulhenta cantoria de angolinhas:

- Ué pois antão o marvado atóra e larga as criações miúdas ao Deus-dará? Já se viu que desmazelo, que pouca vergonha? E é tão certo como sem dúvida que essas galinhas-de-angola 'tão cantando a par c'as ninhadas de ovos. E eu que vou ver se topo c'as ninhadas! Despois da chuva é muito fácil.

Saiu. A gritaria das angolinhas partia de uma pedreira, ribeirão acima, onde o capim melado formara em tufos corpulentos. Subiu. As moitas eram espessas, não podia divisar nem uma ave. Marinhou pelo tronco de um ceboleiro, pôs-se a cavalo num dos galhos, olhou com todo o vagar.

Senão quando, num bromado de catingueiro-roxo que descaía sobre uma pedra preta, divulgou mal e mal um vulto carijó que se movia. O vulto da angolinha estava de costas para ele, deu de encontros, abriu as asas, fechou-as, foi crescendo, em poucos minutos ganhara as proporções de um peru, cresceu ainda; as penas tinham agora malhas carijós mais rasgadas, o vulto aumentava sempre, firmado num dos pés; desceu o outro pé; ainda encorpou mais, abriu e fechou as asas outra vez; a crista, muito rubra, estava bem arqueada sobre o bico alvacento, e semelhava um chifre virado, um volumoso chifre ensopado de sangue; as barbelas tremiam, por igual rubras, imitando a pesada papeira de um boi golpeado; virou-se para o Piapáo, com toda a pachorra, já do tamanho de uma anta, e gritou quatro vezes, intervaladamente: 'tou fraca, 'tou fraca, 'tou fraca…

O Chico Picapáo deixou-se cair pelo tronco, aterrorizado, largou a correr, chegou à estrada sem butucum nem espingarda, e fez-se de volta, exclamando com a língua meio perra:

- Não é capaz isso não! Credo! Deus me acuda! Não é capaz que eu tire vingação de nho Tido. Não tiro, nem por nada,não quero mesmo tirar. Aquilo é feito dele, credo em cruz! Já 'tá no outro mundo, agora me quis aparecer no corpo daquela angola, e apareceu. Não tiro mais a vingação, nem que ele 'teje vivo! Não quero.

O poente já descorara, nada mais se lhe via que uma barra cinzenta, bem tanada, e os últimos fantasmas das nuvens fundiam-se todos naquela barra escura. O Picapáo ia quase a correr ainda, num desatino, rezando e quase chorando:

- Padre nosso, que estais no céu… Eu não tiro mesmo a minha vingação, não quero mais tirar, até perdoo o que o Tido me fez, perdoo mesmo!

E abriram-se estrelas, cor de prata nova, na grande curva azul-ferrete do céu.

Valdomiro Silveira

(De Os Caboclos)

Imagem: reprodução parcial da página 14 do jornal O Paiz de 9/9/1928

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