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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Na ceva

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 5.583, de 19 de janeiro de 1900, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 19/1/1900

 

Na ceva

Lagoa de águas paradas

é brinquedo de andorinha;

Os teus pensamentos, moça,

meu coiração adivinha.

Verso do Justino Baptista n'um recortado

Era uma destrocida, a Paulina, toda a gente o sabia. Amontava aí n'um poldro brabo, sem susto e sem medo, que nem um adomador de ofício, fazia o poldro pinotear e bufar no meio do potreiro, afincava-lhe as mutucas desde a tábua do pescoço até ao boleado das ancas, e por derradeiro, quando ele estava bem quebrantado, bem entregue, ela pulava do lombilho ao chão, d'uma vereda, segurando as cambas de sedenho na mão esquerda, e caía de pe que era uma boniteza. Não era qualquer Mané-jacá que se atrevia a botar um animal no palanque, encilhá-lo e aguentar-lhe os corcovos perto dela, porque, se o tal não fazia a coisa bem feita, a Paulina tirava-lhe a prosa num baque, pintando a saracura no lombo do animal escramentado.

E para lidar numa roça, então? Truco-fecha, como a Paulina, ninguém! Agarrava-se ao cabo duma enxada assim que o sol rompia, e varava o dia inteiro na alimpação do cultivado, cantando modas, alegre de todo: e esses manguarões de trabalhadores por dia, que vivem roncando grandezas de serviço, não levantavam a voz perto dela, porque logo chegavam à razão de que criatura para uma diligência era aquela, e mais saberá Deus quem. O terreno por onde ela passava, carpindo, ficava arcadinho, e, se estafa fazendo planta, não perdia ûa mãozada.

Trabalhadeira e divertida: quando vinha domingo, muitas vezes, enramava com os irmãos, atrelava a cachorrada, e ia desentocar as pacas aninhadas, por esses altos de espigões. Como moravam perto do rio, quase pode-se dizer à beirada do mesmo, a estumação da Paulina, entusiasmada e repetida, afundava-se pelas furnas e pelas covancas, alargando-se, estreitando-se, até morrer numa vibração deliciosamente dolorida: e a cachorrada delirava ao fundo do mato, quarteava naquele instante, repicava logo o rastro e descia, na cola da baia, soluçando a corrida pelo lançante dos carreiros.

Ultimamente fez uma ceva no topo do morro, na vertente da Água das Pedras, onde as passagens das cotias se recruzavam de lado a lado, amassadas que davam gosto. Levou, como companheiro, o irmão mais moço, o Vicente, cortou a facão uma taquarama, apanhou uma cipoada, e teceu a choça d'ali a umas dez braças, para o lado de cima, rente com o tronco macoteiro de um saguaragi; depois que tudo se via bem tecido, quebrou uma galharada de folhas grandes, e foi tapando as paredes para a frente, para riba, para os lados, só deixando a pequena fresta da pontaria, no rumo certeiro do monte de milho, e uma saída para os fundos, encoberta ainda por uma cabeça de palmito; aparou quatro forquilhas, e aprontou um meio estaleiro para assento. Quando voltou para casa esse dia, o sol dava adeus ao mundo.

Com pouco a ceva principiou a ser frequentada; eram cotias às dúzias, quatis em bandos, macacos sem conta, e passarinhos em demasiado: urus e jacus, vevuias e tovacas, nambus e macucos, um despropósito. A Paulina entrou a madrugar, todos os dias, e lá se ficava fazendo fieira até a que horas entretida na caça e esquecida do mais.

Ora uma vez, como caísse do cavalo de ir sozinha, cedo assim e por tamanhos ermos, topou com seu namorado, o Chico Lucas, nas divisas das terras dele e do pai dela. Ali passava um corguinho, coisa de nada, a bem dizer um chorinho d'água, que não tinha som nem tom, lagrimal que só servia mesmo de separar uma propriedade de outra.

A Paulina sempre foi palaciana, muito dada, mas ficou encaramujada com semelhante encontro. Se fosse numa reza, numa função, era outro cantar; mas numa lonjura de capoeira, sem viva alma em roda… E embatucou de verdade. Ele não estava também lá muito nos eixos, isso é certo, mas, como a atrapalhação veio primeiro dela, sentiu-se um tantinho animado: e como quem não pensa em nada, assim a jeito de distraído, seguiu-a pelo carreadouro, falando falas macias e sem significação, contando novidades do sítio, dizendo os lugares de mais pássaros ou de mais bicho, uma coisa e outra.

Quando se foram chegando à picada da ceva, que tinha um disfarce grande, rodeio que levava longe, ela pediu-lhe, com boas palavras, que não a acompanhasse mais, porque ficava feio andarem sem mais ninguém por pontos tão afastados: e concluiu afirmando que também não queria ensinar o caminho da ceva, pois ele, daí por diante, podia roubar-lhe a caça, e depois podiam brigar.

Conversas! Ele não só não concordou como ficou ainda mais junto dela: e depois de questionarem e baterem boca muito tempo (uns dois minutos) entraram na picada. A araponga serradeira, que tinha habituação naquele recanto, principiou a cantar espalhafatosamente no meio do silêncio geral; outra lhe respondeu de longe: e começou a passarinhada toda a sair-se, a cantar, a gritar, a berrar por quanta árvore havia, desde o lindo tangará de cabeça cor de sangue até ao bruto pavô de peito cor de sangue.

Se ele estivesse para fora da choça, espaventaria a caça: entrou na choça, depois da Paulina. Para não fazer rumor algum, sentou-se no estaleiro Enquanto ela encostava a trouxada de aço à freta da pontaria, ele, apaixonado, olhava-a. Olhava-a com tão forte insistência, que ela se via obrigada a olhá-lo quase aborrecida: mas depois, pensando melhor, deixava de aborrecer-se, porque enfim não há mal em a gente olhar e ser olhada. Mas nada de prosa, parecia ela dizer-lhe, e ele como que lhe repetia: nada de prosa!

Um barulho muito leve, muito distante, se fazia ouvir agora; barulho que agora se vai engrossando, ganhando vulto, encorpando-se, tornando-se quase um tumulto. Ela quer ver o que seja, ele quer ver o que seja; a fresta da pontaria é uma só: aproximam-se, unem os rostos: os olhos, próximos como estão, dão mostras de quererem barganhar lavaredas: tornam-se-lhes incendiados os rostos e os olhos.

O grande estrépito quem o levantava era uma vara de quatis, talvez uns trinta. Por que razão não lhes atira a Paulina? Dirige para eles a vista, mas de certo não os vê, que eles, amontoados como estão, não podem passar despercebidos. O Chico Lucas, a princípio, quer tomar-lhe a espingarda – mas toma-lha? Qual nada! Distrai-se também. E os quatis focinham-se, perseguem-se, querem lanhar-se, escavam o chão com as fuças, erguem um motim medonho; livres e desatentos ao perigo (perigo?); quase dão de dançar naquele limpo, ao pé do monte de milho.

Agora, indagador e mexeriqueiro, avizinha-se um da choça, farejando-a e gritando fino e curto; avizinha-se mais, olha por baixo das folhas, ergue a vista para calcular a altura da choça, que se lhe afigura enorme, e vê folhas por baixo e por cima e pelos lados. O Chico, porém, trançou os braços na cintura da Paulina, que lhe fez um mais que pequeno sinal de silêncio e quietes e como os olhos, a pobre, se lhe fizeram cada vez mais amorosos e morteiros, beijou-a de vagar, depois com ânsia e por fim com uma sofreguidão de louco, ao passo que ela deixou resvalar a espingarda para um canto e os quatis, amedrontados, desapareceram tumultuosamente pelos embromados de guaimbé, criciúma e jaguarandi.

E a vara de quatis, então? Ora, nhá Paulina, você há de ser sempre mais mestra de amansar os poldros brabos, no rincão desgrenhado dos potreiros, do que de tocaiar os bichos e os passarinhos no escuso de uma ceva!

Valdomiro Silveira

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 19/1/1900

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