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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Pedaço de Cumbersa

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado no livro Leréias (Histórias contadas por eles mesmos), que teve sua segunda edição em 1975, pela Editora Civilização Brasileira em convênio com o Instituto Nacional do Livro (volume 201 da Coleção Vera Cruz, páginas 3 a 7), sendo postado na Internet pela internauta Barbara de Oliveira Araújo, no acervo Scribd (consulta em 11/9/2012 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: frontispício da obra e dados de registro

 

Pedaço de Cumbersa

- Ê! cabocrinha entusiasmada! Quando ela punha os pés na rua, calçada c'uns sapatos rasos, trazendo ûas meias cor de rosa, vestida de vestido cor de rosa também, cheio de fofos - misericórdia! -, não havia cristão, por mais sério que fosse, que não pegasse a pensar no quanto havia de ser bonito aquele corpo anum. A gente principiava pelos pés e ia subindo (no pensamento, já se vê) inté o pescoço, parecido co'a manga meia madura, e ficava a mó' que tonta. A diaba da peste andava também d'um jeito que por si só já era uma tentação: bambeava os quartos, como um monte de marmelada com muito açucre e pouco ponto, bulia co'a cabeça d'uma certa maneira, batia c'os braços de certo modo... home'! nem é bom lembrar!

Pois eu, apesar de ser filho de boa gente, fiquei uns tempos enrabichado pela tal. Não é de adinvirar, 'tá visto; que um rapaz, que inda não igualou dereito, é mesmo que nem poldro novo, mal comparando: é ver criatura de saia, 'tá co'a cachóla avariada. A morena morava ali p'r'os lados da mina e vivia sempre asseada e cuidada que dava gosto; na casa não havia nem um cisco de mézinha p'ra qualquer pinto comer, parava tudo varrido, feito um altar; as paredes, sempre cobertas de chita espanada e alegre, tinham santos e santas e quadros de guerra e moças e moças do tom. Um, como eu, passava na rua, olhava e apreciava aquilo; despois, vendo a dona da casa andar e falar e rir, não se esquecia mais do caminho e volta e meia 'tava remexendo por ali.

Andei campeando aberta de falar co'a morena, muitos dias; não achava furo, porque o Vito queria ser o dono dela, a todo custo; o Vito pousava lá, de manhãzinha saía, dava uns giros, mas, com poucas horas de osência, percurava a cancha outra vez. Ora eu nunca fui amigo de rixas, nem de dúvidas; enjeitei muita briga boa, havia agora de querer uma briga dessas do pé p'r'a mão, proviniente de arrasto de asa a ûa mulher que afinal vinha a ser das do pala aberto? Evitei o Vito quanto pude, mas porém a batedeira de coração já não me era pouca p'r amor de aquela perigosa. um dia de domingo, sabendo eu que o Vito ia p'ra São Pedro e falhava, arriei meu pangaré, só de luxo, e fiz estrada no rumo da mina.

É vergonha dizer, contudo eu digo: quando me vi perto da moça, quando ela me pregou aqueles olhos tiranos, de lindos, senti ûa moleza nas curvas e por um pouquinho não caí. Preguntei si um rapaz, que não vivia no comércio, podia chegar na casa dela, e a cabocrinha foi-me dizendo que podia, pois não, p'ra prosa qualquer um podia chegar. Entrei, botei meu chapéu num canto, em riba do cabo de relho, sentei num tamborete e fui tirando um eito de cumbersa. Inté hoje me alembra que a voz da Caróla era tal e qual a fala duma sabiá, sem ejagero nem um.

Palavra puxa palavra, o negócio foi-se encarreando. Contei minha vida inteira, porque ela quis saber umas coisas da minha vida; e, como havia uns pedaços tristes, ela às vezes quaji chorava; contou, despois, pro que rezão saiu do marido, um malvado que furtava muito dela, que a enganava por causa das outras e por cima de tudo inda fazia co'ela cada judiação tão grande; por derradeiro, sendo minha vida, a bem dizer, irmã da dela, caimo' nos braços um do outro, saluçando saluços que não acabavam mais. E foi ansim que a minha soneira subiu a uma altura em desmasia; quando se encontra no mundo uma pessoa que tenha sofrido os mesmos pesares que a gente, a mó' que se fica logo cativo dessa pessoa.

Hoje bem que me arrependo, apesar que o que está feito não está por fazer - e isso de si eu soubesse é prosa fiada: afinal, história que acontece p'ra todos, pois não acontece? A Carola gostou de mim, ou ao menos amostrava gostar: fugia, altas horas da noite, e ia-me chamar, dizendo que não podia estar sozinha sem mim, temperava café com pouco doce, fazia promessa p'r'eu ser fiel toda a vida, coisas que inté nem se deve' repetir. Eu, intão (era só aquela soneira, mas dormir mesmo, quando?), 'tava atado duma vez.

O Vito não desconfiava de nada. Mas sujeito ciumento como o Vito, só o Vito mesmo! Nunca vi! Só de a Carola uma 'casião me dar adeus um tantinho de longe, o danado espezinhou-se: já no sufragante reparei que o adeus lhe amargou, pelo simples sinal de ele me olhar com cara de negar pousada e riscar na terra ûa manguara que trazia por costume. A Carola, esse dia, sofreu o que uma alma de pecador não sofre no inferno: palavradas, indiretas e mais indiretas, nomes feios, uma apuração braba! Nem bem a noite fechou, recebi um recado que me chamava, e o recado era da Carola: segurei meu alecrim, enfiei a francana aqui na cinta, e rompi: sube intão que o Vito foi tocado como um cachorro, tudo por meu respeito, e me vi na obrigação de tomar conta da quitanda.

Aí é que foi o choro da gralha: Ô! tempo bom, rapaz! parecia que eu 'tava mas era vivendo num céu aberto. Carinho da morena, saúde de ferro e cobre na 'gibeira... calcule! Aquele empreito da estrada nova tinha-me dado um resultadão: a notaria que me pagaram foi tanta e de tantas cores, que me relampeava nas mãos, quando eu puxava o maço p'ra fazer qualquer despesa. Eu não quero que isto seje de regra ansim: mas sempre lhe digo que geréba, p'ra querer bem à gente de verdade, percisa ver ao menos a corzinha verde duma nota de dez. Ô! tempo bom, rapaz!

Teve fim, o bom tempo. Apareceu na vila, vindo desses fundos de São Paulo, um peralte à toa de nome Fernando, cobrudo e embonecrado, mas porém feio que nem urutau. Engraçou-se pela Carola, andou-lhe d'zendo graças e pilhérias, e a Carola 'tava firme comigo tal e qual aquela pedra mais grande da corredeira perto da ponte. O home' insistiu, fazendo mostra de suas riquezas, de seus arreios prateados, de seus machos marchadores, de sua roupa cara -, e a Carola nada de afrouxar na paixa que tinha por mim.

Neste entanto, meus recursos lá se foram pela água abaixo, e eu principiei a não poder mais comprar certas estúcias que ela pertendia, uns lequinhos, uns brincos, umas pulseiras; notei logo que a afeição diminuía, que os mimos iam esfriando, que a diaba escancarava a boca junto de mim, fazendo pouco causo e outras muitas.

P'ra encurtar rezões: a ordinária começou a pular fora dos trilhos. Eu, tanto que percebi a leréia, tratei de pilhar os dois co'a boca na botija; perparei terreno p'r'a história, menti que ia de viage' demorada, e voltei no mesmo dia; saí p'r'a rua, p'ra voltar na mesma hora -, inté que uma vez, uma noite, esperei o cabra atrás dum pau de 'çoita-cavalo, a parzinho co'a cerca, e o dito cabra chegou pelas onze, mais ou menos.

É difícil contar o que eu fiz, assim que vi o guampudo: só sei que o meu alecrim lhe gemeu na testa, e o guampudo rolou no chão que nem um passarinho, mole e sem barulho. A noite era de quarto minguante, escura a conta inteira. Parei, um tempão, encostado no 'çoita-cavalo, e dei de ruminar no serviço que arranjara: a consciência me doeu. Eu, pobre de mim! - devendo um crime tão horroroso, de esperar meu similhante p'ra lhe fazer mal fora de horas e com traidoria! Meu coração ficou gelado, rapaz! Negócio c'a justiça, num lugar que tem um promotor terrive' como o d'aqui, não paga a pena! Já eu parecia que 'tava sentindo as mãos dos soldados nos largatos dos meus braços. Passei um bocado bem rúim!

Quando sinão quando, o machucado suspirou. Que suspiro, Santa V'rge'! - vinha arrancado lá de longe, devagarinho, seu tanto ou quanto arrastado: fazia dó! P'ra mim, que já me via mesmo atrapalhado, aquele suspiro foi um golpe: entrou-me cortando as carnes e deixando entre meio delas uma friura de intanguir. Saltei feito um embrulho p'r'o lado do ofendido, risquei um palito de fósfo'... e estive cai-não-cai, vendo que ele não era o seu Fernando. Pois era o Méquinho, coitado do filho da sá Mariana, tão quieto e pacífico! Reuni quanta força me restava, e pedi perdão p'r'o Méquinho. Ele abriu os olhos, meio embaçados ainda pelos restos da vertige', e falou-me por este feitio, sem tirar nem por:

- Intão, devéra, Mané da Silva, devéra' você teve corage' de me fazer esta? Eu, que não bulo co'a vida de ninguém, mereço agora ser esperado por detrás d'um pau, de traição, e espancado? Por quê, Mané da Silva? p'r amór de a Carola? Mas a Carola recebe quanto caipira hai: sou eu, intão, que pago os delitos dos mais? Você bem sabe que a veieira não ronsscando, o tatu não vem furtar mel... Você devia premeiro esbordoar o Antoninho, o Juvêncio, o Ernesto da Mumbuca, o Zézinho Magro, o Joaquim de nhá Zefa, um dilúvio deles!

- Você fala sem mentir, Mèquinho? - preguntei eu.

- Falo inté co'a mão sobre um livro santo - me disse ele.

Ora o Méquinho é um cabôco de fiança: o que ele diz pode-se escrever e acreditar. Veja, rapaz, veja no que não fui cair! Por isso você não abra os ouvidos ao que esse povinho fermoso fala, que tudo é mentira: mulher, quando sai p'r'o mundo com tenção de entrar na vida, já sai completa p'ra tudo que hai mau e perverso. O Méquinho prometeu que não fazia queixa à autoridade, e eu assosseguei: mas larguei d'uma vez a Carola, triste no princípio, despois consolado, logo despois alegre inté. Porque, enfim, quem se livra dum rabicho tão desatinado é como quem se livra duma prisão.

Agora p'ra diante é que me aconteceu coisa inda mais pior...

Valdomiro Silveira

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