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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Capiango

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 5.432, de 20 de agosto de 1899, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 20/8/1899

 

Capiango

Nhá Thereza apareceu indignada, com os olhos a afuzilarem vivíssimas centelhas de fúria, em casa do seu Virginio, delegado de polícia que estava de jurisdição. Foi entrar à porta, e desfilar logo um rosário de queixas, a qual mais entremeada de vocativos injuriosos e praguentos: que de há muito lhe andavam rondando o cochicholo, gente que ela não conhecia, nem atinava com quem fosse, e tal lhe faziam de pura malvadez, porque ela, a bem dizer, nada tinha que tentasse aos outros – era uma pobre coitada sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, como lá diz o outro.

A cada objurgação mais forte, dirigida ao gatuno ou gatunos ignorados, oscilava-lhe maciamente no pescoço, dir-se-ia congestionado de ira, um formidável papo de corda que bojava logo ao de sobre o cabeção da camisa, forcejando por patentear-se à luz meridiana. As mãos, essas já não paravam mais, iam e vinham em paralelas, da direita para a esquerda, paralelas que ora minguavam, chegando quase à distância de um gêmeo, ora se faziam largas, tomando a extensão do corpo gordanchudo da oradora.

Seu Virginio, que, por ser o dia de festa e ele capitão da guarda nacional, vestira o uniforme respectivo, no qual estava, pode-se dizer, letralmente sufocado, e não sabia o que fazer do rico boné -, seu Virginio já se via desanimado ao rumor de tamanho falario, chegando a pedir a nhá Thereza dissesse de uma vez ao que vinha, o que lhe haviam furtado, quem fora o autor da tramoia, e tudo mais que é mister nestes autos. Nhá Thereza engrolou novos xingos, agora mais puxados à sustância, acabando por dizer que lhe haviam passado os quatro soldados e um sargento em meia dúzia de frangos, um patureba, um casal de pombos camboteiros e cinco ovos de perua, de um jacá no meio do galinheiro.

Impava deveras, nhá Thereza, quando concluiu a lista, mais de zanga que de cansaço – pois de pequena se afizera a esgoelar por qualquer dá-cá-aquela-palha – e bastas camarinhas de suor lhe escorriam da testa, juntando-se a outras que previamente haviam brotado das faces, as quais, todas reunidas e quiçá refrescadas por uma senhora ventania que passava, fluíam na direitura do queixo, como a buscarem o rumo do papo, que, de certo, iriam refrigerar. E seu Virginio, que tirara por instantes o boné e o pusera em cima da mesa de perova, depois de o haver passeado de Norte a Sul, de uma fonte a outra, da coroa da cabeça ao toutiço, olhava para a querelante, com uns olhos de todo em todo abertos, ou pela exiguidade do delito ou do temor que sentia de ouvir em segunda edição, mais incorreta e pavorosamente aumentada, a narrativa do caso, inclusive os doestos e os baldões. Chamou então a ordenança e mandou buscar a força, recomendando a nhá Thereza retirasse para casa, onde não devia bulir em nada, para não estorvar a vistoria da justiça. (Falou assim).

Nhá Thereza saiu de feito, gungunando ainda, no fundo da garganta, como se o silêncio fosse alguma coisa que lhe fizesse espantoso mal: e assim que se achou na cancha e atirou para a cama o xale que a apoquentava, de pesado e quente, abriu-se em frases consoladas diante da filha, a Quiterinha, mostrando-se assaz confiante na boa diligência do capitão Virginio,um homem de ponderação, que sabia receber os precisados do auxílio da autoridade. A Quiterinha escutava-a de olhos baixos: e, em verdade se diga que as palavras da mãi lhe entravam por um ouvido e saíam por outro.

Ninguém será capaz de saber por que é que a tal Quiterinha dava tão grande sorte nesta Casa Branca, cheia de moças bonitas, quando não era lá essas coisas de formosura e tinha as feições meio caídas para o queixo, sob o qual se viam duas papadas vermelhas, de uma gordura entretida a fartas refeições de feijão, guando, angu de fubá grosso e carne de vaca mal assada. Ninguém será capaz, a não ser que lhe tenha reparado, em tempo oportuno, em as ancas roliças e bamboleantes, e no gracioso andar, que mais as faziam tremer com arte e segurança. Dava sorte, a Quiterinha, cobiçavam-na uns tantos cata-fechos, que gandaiavam dias áfios rebuscando jeito de lhe falarem; mas o que é certo é que ela não deixava de ser bem esperta, e continha-os à lonjura, insaciados e sempre desejosos. Destes se diz isto, e outro tanto não se podia dizer do Chico Marceneiro…

Nhá Thereza compôs a casa por dentro; mandou à filha que se aprontasse, não na fossem ver esses homens desarranjada assim, puxou ûa mesinha de costura para o meio da varanda, onde pudessem fazer as escritas precisas, e ficou à espera.

Não esperou muito tempo. Daí a nada chegava seu Virginio, cada vez mais sumido nas suas roupas afogantes, ladeado de um meirinho e seguido de seis praças. Depois de pedida a necessária vênia, com o máximo respeito, dirigiram-se todos ao quintal onde se dera o furto, durante a noite, segundo a exposição da queixosa, que ainda agora se desentranhava no reconto da casa, já outra vez tomada de furor mal contido.

Examinado o quintal, verificou-se que havia passadas recentes, de pés grandes, desde a cerca pauapicada até a uns canteiros de grama que morriam debaixo da janela da Quiterinha; naquela direção realmente viam-se pegadas humanas, imprimidas no chão, ao que parecia pelo tamanho, por gente macha. No galinheiro, porém, nada se observava extraordinário, fazendo-se exceção de um jacá de galinha botadeira, atirado abaixo, naquele flagrante, por um galo brigador que se aterrorizara à chegada do delegado, do meirinho e dos guardas. Reparava-se, mais, que um cateto manso, que se quentava ao sol, também não ficou satisfeito com aquela invasão, e foi-se deitar mais longe, rente de umas taiobas á beira da fonte.

Seu Virginio, com quanto zelo deve ter uma autoridade, devassou todos os recantos, e nada encontrou anormal, fazendo ver a nhá Thereza que, se não se notassem aqueles sinais de pés até aos canteiros de grama, poderia jurar-se que no quintal não entrara ninguém, muito menos no galinheiro. E nhá Thereza tornou-lhe:

- Qual, seu capitão! Isto é capiango que sabe fazer as coisas bem feitas, que conhece muito a minha casa, na certeza.

Como quer, porém, que ela fosse olhar um cesto velho, ao canto do galinheiro, qual não foi o seu espanto ao achar ali os ovos de perua que cuidava terem sido tirados! E por ser justamente à hora do sol ficar mais bravo a que as criações iam beber, emboladas, à fonte, nhá Thereza descobriu, com alta admiração, a meia dúzia de frangos transviados, e o patureba e o casal de pombos camboteiros. Pediu desculpas a seu Virginio, muito avexada, dobrando as pontas do lenço entre as duas mãos convulsas.

Seu Virginio, entretanto, que atentara na Quiterinha, vira-lhe os olhos afundados nas órbitas, as feições meio pálidas e chupadas de noites mal dormidas, e, principalmente, a turvação dos modos, respondeu a nhá Thereza, saindo, entre risonho e sentencioso:

- Ora, nhá Thereza, afinal o que lhe furtaram, o que lhe poderiam ter furtado, não hai justiça na terra que lhe o possa dar outra vez!

Valdomiro Silveira

(Nas serras e nas furnas)

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 20/8/1899

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