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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
A fantasma

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 5.397, de 16 de julho de 1899, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 16/7/1899

 

A fantasma

- E não é mesmo! Às vezes a morte não chega a ser tão forte como uma paixão. Pois veja só o que não aconteceu c'o pobre do Tónho Tonoeiro, que até anda meio delcriado duns tempos a esta parte, dês que a mulher pegou a aparecer-lhe em forma de fantasma, todas as noites. Você conheceu decerto a mulher do Tónho, sá Minervina, aquela lindura de moça cuiabana: decerto inda se alembra do quanto era louco o rabicho que ela ustentava por ele, logo que chegou ao arraial. Já vê que então não se há de admirar do resto, que tudo é possive neste mundo – e no outro!

Sá Minervina 'tava de espera, já daí duns cinco meses, tinha engordado as deveras, e já não sentia mais desejos: era só ûa moleza que a perseguia, um timbózinho todos os dias, ali por volta das duas da tarde, e cada sonho com cobra, que nem tinha jeito (Tudo isto eu sei por boca do próprio Tónho).

Mas porém era descuidada, isso não hai quem não diga que não. Toda a gente lhe falava: - "Sá Minervina, olhe que não presta, quando a gente 'tá gorda, sentar na porta" -, e o maior regalo que tinha a coitada da moça era sempre, ali pr'as três braças de sol, escarrapachar-se na porta da cozinha, sacudindo o milho numa bacia de folha e contando as galinhas uma por uma, por sinal que tinha especial devoção, Deus que me perdoe! – por uma chumbunga nova, franca desabotinada que recebeu de presente, vinda lá do Guaxe.

Outras vezes lhe diziam: - "Sá Minervina, não é bom passar por baixo de cabresto ou de rédea, quando o cavalo 'tá amarrado, porque a criança nasce dos dez meses p'ra fora" -, e ela não escolhia lugar p'ra sair, na porta da frente, passava logo debaixo do pescoço de qualquer matungo: tinha uma argola pregada em cada portal, e a repartição de animais era grande no sítio.

Não faltava também quem lhe pusesse medo: - "Sá Minervina, é ruim comer a rapa do arroz, porque a criança fica grudada lá por dentro" -, mas tudo tempo perdido: ela achava a jarera desenfastienta e gostava em demasiado daquilo. De formas que 'tava mesmo aprontando perigo, vendo armar a trovoada sem ter ponche a triste da desinfeliz!

Afinal, o resto você bem sabe: sá Minervina deu à luz pr'o fim da coresma, foi assistida por nha Benta, que por sinal é uma comadre muito exp'riente e muito cuidadosa, e foi-se morrendo de uma hora p'ra outra, quando a gente menos esperava. O Tónho Tanoeiro, nem se fale! – foi só aquele desespero que não tinha mais acabamento: encaramujou-se duma vez, lá na sua tristura, na sua sodade, e chora ver uma criança, em cada artigo de se falar na defunta.

Mas, duns tempos p'ra cá (também isto eu sei por boca do próprio Tónho), sá Minervina deu de lhe aparecer fantasma nuns feitios esquisitos: ora que nem um anjo daqueles que tem das bandas do altar, ora tal e qual ûa ulher como as outras de verdade, ora como um passarinho, ou como uma flor, ou como uma neve, credo em cruz!

Agora, vai fazer duas sumanas, inteirou um ano certo da morte da moça. O Tónho, p'ra não parecer soberbo, não pôde enjeitar o convite do povo da Mumbuca na festa de Santo Antónho, santo que até vem a ser padrinho dele: teve que ir à função do Chico Cesario, sabe Deus como, ele que há tanto tempo não corre os dedos pelas turinas e nem vê cara de viola! Inda assim mesmo foi perciso que o filho do Chico Cesario, aquele grandalhão, que se chama… (ora como é que ele se chama? Vicente)… o Vicente trouxesse a mulinha esquipadeira do pai, porque o Tónho por fim 'tava-se desculpando que não tinha animal de seu p'ra cortar o caminho.

Na viage o Vicente ia só repetindo: - "Onde é que já se viu um home de qualidade, como vassuncê, nho Tónho, ficar agora feito um lobis-home, Deus que me perdoe! – encafuado em casa o dia inteiro, o dia inteirinho, p'ra sair de noite, ás horas mortas, e andar rondando aqueles graguatazais e cerradões da vila? Um home é um home, e um gato é um bicho, agora! Eu, si fosse vassuncê, fincava logo o sentido nalguma pinhã desta redondeza, que merecesse fiança, e fazia outra amarração: que isto de viver solteiro, só agora p'r'um caboclo aloucado como eu!

(Você bem sabe que o povo do Chico Cesario tem uma cobiça danada no Tónho, p'ra casá c'a Jeronyma, aquele manguarão de moça trigueira, que tem uns olhos de noite de trovoada: o Tónho não diz sim nem não, mas a mó que a inclinação não é lá das mais grandes.)

No pagode houve de tudo. Certo boiadeiro da Vacaria, que também teve na sala, parecido um paraguaia c'uma boca deste tamanho, foi mandado cantar um coreto em honra do Tónho, assim que o Tónho chegou: e aquilo foi até uma coisa por demais, de bonita, aquele coreto cantado tão bem por aquele sujeito tão estúrdio! O Tónho agardeceu, bem ou mal porque quaji não podia soltar a voz: assim que cruzou os portais da casa, tinha visto a Jeronyma por detrás, e o cabelo da Jeronyma é arranjado, sem tirar nem por, como o de sá Minervina, naquele bom tempo em que ela dava panca nesses divertimentos do bairro.

Por derradeiro não houve jeito como o Tónho não cantasse sua moda. Pegou no pinho até sem som nem tom, avexado de não saber lidar mais co'ele como antigamente, quando tinha tanta destreza p'ra temperar as primas da viola (ou as casa, você se alembra!), como p'ra puda lar e chegar as chilenas num burro chucro. Ia desanimando, chegou a querer entregar-se: - "Ora segure lá isso, seu Chico Cesario, que eu já não sei mais trabalhar co'essa ferramenta! – Mas foi adiante a teima, até que ele se saiu.

No fim da moda, que, valha a verdade! – não ficou devendo nada p'r'as outras da festa, o Tónho já 'tava c'a suspiração cortada e os olhos nadando em água. Arretirou-se p'r'um quarto lá dos fundos, encostou-se num catre qualquer, e principiou a lembrar-se do passado, e a pensar no futuro (isto ainda eu sei por boca do próprio Tónho)… quando sá Minervina, em carne e osso, lhe veio fazer uma visita, linda como os amores, pôs o cotovelo direito na maçaneta do catre, a mão na face do rosto, e olhou p'r'ele um pedação de tempo, sem dizer nada.

O Tónho quis alevantar-se, ao menos abraçar aquela sá Minervina que ali 'tava, nem que não fosse a dele, legitimamente, na lei da terra, mas não pôde porque ela lhe deu por ordem que não se mexesse; quis erguer a cabeça, p'ra a ver de mais pertinho um pouco, e ela acenou-lhe que não: e pediu-lhe, por fim, que rezasse por ela um Padre-Nosso e uma Ave-Maria, com tenção bem firme, porque foi deste mundo sem confissão e tinha necessidade de reza.

Ela aí foi-se abaixar um tanto p'ra lhe dar uma buquinha (neste ponto o coitado do Tónho fica a mo' que espantado e meio sambanga)… quando se escuitou um rumorzão desesperado, e ele viu que uma luz, assim como a da lua, ia passando pelas telhas da cumieira, de vagarzinho, até sumir de tudo.

Tudo isto eu sei por boca do Tónho; mas por aí você vê que quem quer bem, quer na vida e quer na morte. Quem nos dirá que sá Minervina não aparece p'r'ele só porque 'tá sentindo sodade lá nesses mundos de Deus? Ora a sodade, você bem sabe, dói mais tempo e mais fundo que o talho dum faconaço!

Valdomiro Silveira

(Das Seréias) (N. E.: SIC: o nome correto é Leréias)

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 16/7/1899

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