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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Ânsia antiga

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 4.964, de 8 de maio de 1898, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 8/5/1898

 

Ânsia antiga

O Neco da Prata botou a viola na peitaria e cantou a primeira moda da função. Povo ficou de boca aberta em roda dele, admirado. A parceirama estava que nem mexia, com gosto de escuitar a voz d'um peito limpo assim. E como não tinha a mais pequena arage nessa hora, e a animalada não fazia rumor de qualidade alguma, a pelenga ia morrer nas beirinhas do ribeirão, enternecida de tudo:

Todos os passos cantam bem,

não cantam como a sabiá!

        Chó! Chó! Passarinho,

        chó! Chó! Sabiá:

        que eu canto

        p'ra não chorar!

Só isso, mais nada, mas, porém, toado dûa maneira que só mesmo o Neco seria capaz de arranjar. O pinho, então, quando era p'r' acabar o verso, a mó que gemia que nem um cristão amagoado. As mulheres, escurrupichadas pelos cantos da sala, na escada, na cozinha, tinham fechado a boca por milagre, falando mal e descortesmente: e punham cada olhos no folgazão, que a gente não sabe como não o espatifavam! A candeia de azeite, pendurada num mancebo p'r' uma banda, perto da porta do terreiro, alumiava pouco, já dava uma luz murcha e tremida, sinal que estava desdeixada; o tempo não chegava p'ra se ouvir e aprender a moda nova daquele cantador tão cuéra.

Assim que o Neco rasgou d'uma vez o pinho, arrematando a cantoria, houve um rebuliço, um terramote na casa. Aí que se lembraram da vida, que cuidaram na festa, nas lamparinas, na ceia. O dono da casa, um home de muitos anos, pombo devéra, seu Romualdo, saiu do catira e foi lidar c'os trens de comer; e quem reparasse nele havia de ver que dois pingos d'água lhe paravam um numa ponta, outro noutra do bigode. Coisa que de vez em quando sucede: uma pessoa idadosa recordar-se do que passou, por ouvir um toquinho qualquer, e chorar de saudade!

Seu Romualdo tinha feito uma reza, promessa antiga a Santa Cruz, e depois da reza deu essa festa: toda a rapaziada da Figueira e do Dourado se reunira, os velhos também apareceram, e a gente ficou empinhocada no terreiro, perto da cruz. Capelão, foi o Zé Domingue, que tem um tino onça p'r'estas cerimônias e conhece rezas como ninguém. Logo que acabou a devoção, dispararam um dilúvio de salvas de garrucha. Nesse instante, nem mais e nem menos, levantou-se lá no cocuruto daquele morro a cara da lua, uma lua cor de sangue, muito esquisita, que depois foi ficando cor de rosa e afinal embranqueceu, que foi uma boniteza.

E'ta! Caipirada do Matão! Vocês são mesmo de virar e romper p'r'um divertimento! Seu Romualdo, que se pela por uma pândega, dessas, ria-se a toda hora, alegre por ver os convidados alegres, entusiasmado c'a disposição dos mais. Subiu uns três palmos arriba do chão, c'a moda do Neco da Prata, porque de uns par de meses p'ra cá não se conheceu lindeza tamanha nos pagodes da fazenda e dos arredores. E pegou a remorder a toada, indo e vindo de um lado p'r'outro na cozinha, atabulando a ceia, caceteando a companheira, nhá Thereza, que não sabia mais o que fazer, de tão azuretada.

Enquanto se vigiavam os perparos da mesa, o Neco da Prata, que não quis mais ficar na roda p'r'amor de a laranjada que estava arrebentando, encostou-se no cocão d'um carro que se via pegado c'a porta, puxou sua faquinha da cinta, alisou uma palha, trouxe um coto de fumo da gibeira, picou, que picou, e deu por pronto um cigarro. Ia tirar fogo da binga, já apertava a pedra nos dedos da mão esquerda, em cima da estopa, c'o fuzil na direita, quando sentiu um vulto mesmo rente consigo, parecido uma visão. A primeira coisa que fez foi estremecer um bocado; mas, da vereda que estremecia, persentiu um chamado cochichado, depois dum aceno ligeiro c'um lenço. Caminhou na linha do aceno, e topou peito a peito c'a Maria do Viriato.

Aquele corpo da Maria, tão cobiçado, de tanto tempo, foi ver o calor de uma fogueira, p'r'o Neco, deixou-o bambo, bambo. Ela então ia-lhe explicando que agora estava às ordes dele, afinal chegara o dia que ele desejava com tamanhas paixões e que ela esperava com toda a vontade, mas porém com tamanho medo. Porque o Neco bem sabia (continuava a morena) que o Viriato era um tigre, de zangado; por qualquer miuçalha de nada armava um barulhão temeroso, quanto mais se percebesse a enleada!

O Neco, aí, pôs-lhe as mãos nos ombros e pegou a contemplar os olhos tão pretos que foram a perdição e o desespero da sua vida, esses meses p'ra trás: e como a lua ajudasse, passada pelos vãos de uma arve-de-lagarto debaixo da qual proseavam, ele podia reparar que os beiços dela tremiam que nem os de quem está com febre assezoada.

Proseavam longe da casa umas dez braças, p'r'uma banda do paiol, e só mesmo quem fosse muito desconfiado ou muito especúla, era capaz de calcular que os dois se reuniram tão vizinhos c'a festa. O Neco percurava assossegar a amante, mas qual! A Maria era só aquela tremedeira! Por último, vendo que ela estava assustada e medrosa de mais, ele pregou-lhe um pito acochado:

- Ah! Nhá Maria! Então é assim que vancê me quer bem? Pois, se me estima de verdade, escusa de tar que nem uma varinha de taquari, bule-bulindo p'r'a mor de o vento. Quem tem amor não deve de pensar no perigo. Vancê nunca ouviu dizer que, quanto mais perigoso, mais gostoso? Olhe, nhá Maria: não se atemorize à toa; lembre-se do verso que fala: um home nasceu p'ra outro, a sorte Deus é quem dá. Nho Viriato…

Neste repente houve um rebuliço macota na sala do fandango. A moça, nem bem lhe bateu nos ouvidos semelhante guaiú, correu p'ra dentro, esquipado e violento como uma veadinha. O Neco teve tempo só de recambiar o corpo e sumir numa touceira anexa à arve junto de que se achava: e saiu um pelote de gente p'r'o terreiro, fazendo uma gritaria que não tinha mais jeito.

Era uma briga séria. O Viriato, que já andava político de dias, c'um tal Serrador, passou beirando co'ele e puxou pigarro da goela. O Serrador não gostou da leréia, disse-lhe uma liberdade, o Viriato rebateu-lhe com outra, e a coisada principiou braba de tudo. Num momento tiveram que romper p'ra fora, porque a cabocloada enrolou-se co'eles, num pacote, e abriu.

No terreiro, a fúria aumentou, que foi uma disparidade! O Serrador, que era senhor d'uas mãos deste porte e duma destreza perigosa, deu logo de dançar e corcovear perto do outro, feito um tamanduá-bandeira nosujo. E o Viriato, que já se via ocasionado duma vez, corria em riba dele, virava, que virava, c'um refe na mão direita, mas em pura perca de tempo, que o Serrador era mesmo ventana, ver uma cobra.

Mas, porém, houve uma hora tirana: o Viriato, com certa manha e tramoia, foi levando o Serrador até junto do carro que estava entestado c'a parede da casa, encurralou-o a conta inteira – e ia passar-lhe o refe, sem apelo nem agravo, pois o Serrador tinha só destreza, e no mais era um perrengue, magricela e franzino – quando o Neco da Prata pulou no meio da história, falando çolerado:

- Ora já se viu que desmancho sem propósito! Vocês vêm p'r'a festa de seu Romualdo armar um banzé deste feitio? Quem quer rixa escora o parceiro na estrada, não é na casa dos mais, principalmente si'tá de favor, como agora. Larguem mão disso, é melhor!

O Viriato buzinou, que foi uma tristeza. Disse as do cabo p'r'o Neco, arreliou-se em demasiado. E o Neco, assim que não pôde mais, assim que viu que nem um companheiro lhe assistia, apaziguando o brigador (falava desta maneira), não teve remédio se não recuar dois passos p'ra trás, segurar um fueiro do carro, e descê-lo com vontade nas munhecas do Viriato: uma das pauladas acertou-lhe no chato da cabeça, e o Viriato caiu redondo no chão, feito um macuco, apesar que ainda revolvia o refe p'r'o ar.

Tudo ficou ali num silêncio que dava altura de se ouvir ûa mosca. Mal apenas o ofendido gemia um pouco; p'ra mais longe, sim, os animais disparavam, relinchando, espaventados. Foi perciso que o próprio Neco falasse:

- Home! Vocês não serviram p'r'apartar as dúvidas, sirvam ao menos p'ra me prender, que eu 'tou na alçada da justiça, reconheço.

E os moleirões dos fandanguistas, corridos, envergonhados, chegaram p'ra perto dele, passsaram-lhe uma corda nos braços, amarraram-no, imediato, no tronco da mesma arve-de-lagarto à sombra da qual ele tinha conversado, fazia poucas horas, c'a Maria, que agora o olhava da porta, c'a suspiração tomada, quase louca.

Trataram de levar o preso no sofragante. Ele perpassou pela Maria, deu-lhe adeus:

- Adeus, nhá Maria, vancê me desculpe, sim?

A Maria sentiu um nó na garganta, não pôde arresponder-lhe.

Ele falou mais baixico, assim meio resmungado:

- Nhá Maria, pode-me esperar, que eu falo logo a minha livração, e volto. O caboclo morre, não tem como não morra. E eu escolhi uma casião muito boa, vancê bem viu!

Depois, quando a comitiva 'garrouchão, ele foi cantando, cantando, até desaparecer na dobra do morro. Dobraram o morro, e a Maria inda escuitou, muito tempo, o finzinho da moda:

Que eu canto

p'ra não chorar…

Valdomiro Silveira

(Os caboclos)

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 8/5/1898

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