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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
João Maçarico

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 4.806, de 30 de novembro de 1897, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 30/11/1897

 

João Maçarico

Já se viu só? Pois o João Maçarico, um home de respeito, que vivia no ermo, mourejando como lhe permitiam as forças dos cinquenta anos, foi dar então em velho gaiteiro? Este mundo anda de pernas p'r' o ar, não tem dúvida! Quem havia de dizer que um filho de Deus, ajuizado como ele, que nunca apreciou as folias do arraial, nem as do mato, virasse pândego e saído feito um moço de pouco idade? Se não foi feitiçaria que lhe fizeram, com certeza não passa de tramoia de coisa-ruim.

Magro e seco desde menino, meio arcado até, c'um senhor nariz que parecia um peixe campineiro, fino e espontado, mereceu o apelido de monjolinho, um pássaro tísico por natureza e de andar duvidoso como o de João mesmo. Esse ditado dum cearense, que teve co'ele uma rusga onça, mas contudo só de bate-boca, ficou-lhe agarrado nas costas e nunca mais o largou. Também, de certo prazo p'ra diante o dono do nome a mo' que não se importava mais que lhe chamassem por tal jeito. Quando gritavam de longe: - João Maçarico? – ele voltava logo a cara escorrupichada, atendendo. Afinal, um conhecimento assim não é que faz dor na gente.

Nunca teve pensão de casar, quando se achou de ponto; olhava as moças do tempo com certa maneira de desprezo, desdenhando, não por que fosse um grande sujeito, rico ou muito bonito, mas por que não encontrava nem uma da sua simpatia; e, acrescentava que isto de se amarrar um a uma por toda a vida é acontecimento que nasce de gostos iguais. Embora houvesse um tal Nico da Venda, que lhe queria empurrar a filha, uma morena essanelada, de olhos espertos de mais, e a viúva do Chico Mogango que punha em riba dele vista cobiçosa de tudo, não ganhou rumo, não tinha embocadura, e ladeou que nem um lambari no açude, nem bem se vai por a mão n'água.

O Nico da Venda, morador por ali assim onde hoje é a Água Espraiada, quando trazia seu povo p'r'a capela, aos domingos e dias santificados, aconselhava-o sempre:

- Olhe, nho João: um home que quer ter sossego e paz na vida, só casando: tá livre de apanhar uma chumbada em contas alheias, ou de fazer uma mal-feita na casa de qualquer picanha à toa. Depois, em chegando a velhice, fica-se adoentado, sem força, e quase sempre sem corage, e é uma boa mulher que serve de alívio e consolo, conversando co'a gente, arranjando uma mezinha, um caldo, um pire de arroz-doce.

Mas o danado foi sempre cabeçudo: respondia p'r'o outro que isso era muita verdade, muito certo, e no entretanto que, p'ra se dar semelhante passo, é preciso ter bons haveres, algum peculiozinho guardado p'r'as horas de necessidade, que vêm mesmo mais cedo ou mais tarde. Embirrinchou, pode-se dizer, estaqueou naquela resolução, e não campeou noiva, apesar que, segundo afiançava por aqui um fulano Tucunduva,mulher é mais barato que égua, porque não hai caboclo que não case, e poucos hai que tenham posses, p'ra comprar uma catirina. E não houve na Praça de São Pedro, nem nas cercanias, cabocla que conseguisse amolecer aquele coração de pedra.

Ora, quem fala paga. O João Maçarico tinha se gabado que não havia de tomar banho de igreja, a mo' que pissuia goza encoberta p'r'essa tenção, agora chegou-lhe a vez: viajando pelo Cinza abaixo, em canoa, caçando as antas e os veados do sertão fundo, contou-lhe um bugre velho, um caiuá manso, que o poder da mocidade voltava c'uma estúcia muito simple. E ensinou que, tendo ou não tendo os cinquenta anos justos, ele João Maçarico visse uma pataca de ovos (tempo em que os ovos custavam três por vintém!), batesse todos numa gamela, até levantar escumarada, e depois chegasse de assento p'r'a gamela, p'ra só sentir a bafage, e nada mais: có esta estúcia, dizia o caiuá, o home mais cansado aguentava três viajadas por noite.

O João Maçarico comeu, que comeu carne de anta, de macaco e de onça, que afirmam ser todas de alt sustância; principalmente moqueava os bugios e os monos e lambia os beiços, com o petisco; demorou quarenta dias na expedição matando jacutinga pelos barreiros, que era uma barbaridade; (agora jacutinga é mesmo um pássaro bisonho, abobado, que se mata por brincadeira nesses caçadões da mataria); voltou remoçado, com sangue na guelra, viveza nas meninas dos olhos e firmeza nas juntas; e logo que se viu no retiro, a par com o ribeirão da Canjarana, pertico de S. Pedro, tratou de aprontar a receita do bugre do Cinza.

Aquilo foi uma coisa em demasiado! O freguês ficou mais sacudido que um rapaz de espora curta, valente que até dava medo, comendo que nem tinha altura, tarbalhando com uns talentos de espantar, uma maravilha! Todos os vizinhos reparavam na mudança e paravam de boca aberta: um home que vivia percurando o chão para se enterrar, de tanta fraqueza e desânimo, avivado e forte assim!

Pois, p'ra encurtar razões, entendeu-se c'os pais da Salustiana, uma china de espavento, e, preparados os papéis e feitos os pregões, casou-se um belo dia. A Salustiana era uma moça avariada, conforme rosnavam certas línguas malinas da redondeza, e os pais alegraram-se por demais, quando se descartaram dela: aquele marido p'r'a filha caíra-lhes do céu! Depois, um cristão que não tinha boca p'ra ofender seu semelhante, c'um gênio manso de verdade; era idadoso, isso era – mas o estrago que a noiva tinha penderia por igual no lado duma balança, se fossem a peso as duas qualidades.

A princípio, muito que bem, tudo correu em santa paz, a gosto e prazimento de todos, até da Salustiana, que se espantava de ver um velho teso naquela proporção; parecia um mico, mal comparando. Mas o que é bom logo acaba, o João Maçarico desmereceu outra vez, perdendo as carnes e o brilho das meninas, cobrindo-se de pés-de-galinha mais fundos pelo rosto, uma tristura!

Trabalhava no ofício, não pôde mais suster-se de pé em frente ao banco da carpintage, escolheu outra profissão, que foi a de lenhador. E daí em seguida varava quase que os dias inteiros na capoeirada ou na mata virge, aprontando os feixarrões e crindiúva, ou de caiúia, ou de ceboleiro, ou de embira-de-sapo, que levava de encomenda p'ra as fazedeiras de sabão, por serem esses paus muito bons p'ra cinza de barrela; os manejos macotas de tapiá, de guapeva, de guamirim, de pindaíva, p'ra os fogões; as braçadas de varas de canjarana, ou torada de coração-de-negro, de taiúva, de canelão, p'r'as cercas; e ia ganhando a vida por essa forma.

A Salustiana, de primeiro, não desgarrou, foi fiel p'r'o seu marido, foi de todo o cuidado: mas uma china como a Salustiana, ché! – não pode deixar de não se esquecer das suas obrigações, dês que não tem amor ou não tem medo ao seu companheiro. E um dia… Nem foi um dia, foram logo uns par de dias de uma vereda só, marcou lugar de encontro p'r'o Zeca do Pica-pau, e enlouqueceu de tudo.

O Zeca do Pica-pau, passada a soneira do repente, largou dela: e a Salustiana recebeu o Manequinho, o Valentim, o Zé Ricardo, um dilúvio deles, um por um. Caiu, que foi um desespero. E o pobre coitado do João Maçarico estava só serenando na labuta de sol a sol, p'ra sustentar a malvada da sirigaita.

O rumor da sem-vergonheira foi bater até aos ouvidos de seu vigário. Seu vigário, um padre muito direito, não gostava que as ovelhas do seu rebanho (assim falava nas práticas do domingo) se perdessem que nem a Salustiana. Por isso, querendo sugigar o mal e prevenir o futuro, e encontrando-se uma vez c'o João Maçarico, que vinha embodocado por debaixo dum mundão de coivaras, mandou que ele apinchasse p'r'o chão a pauzaria, e quis puxar co'ele uma prosa por estas palavras:

- Ah! João Maçarico, como é então que você pode trabalhar aguentando tamanhas galharadas?

- Trabalho, seu padre – respondeu-lhe o outro: trabalho, e bem satisfeito da vida, com favor de Deus.

Seu vigário, que não calculava que um cristão não sabe de certos acontecidos da casa, que certos acontecidos correm sempre em segredo, saiu resmungando:

- Pois se é de seu gosto, arrume-se: o que é de gosto regala a vida.

E desapareceu na volta da rua que leva p'r'a igreja, c'oas orelhas quentes, e brabo, que ia tinindo!

Valdomiro Silveira

(Os caboclos)

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 30/11/1897

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