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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Avinha má

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Este conto de Valdomiro Silveira foi publicado na primeira página da edição 4.791, de 15 de novembro de 1897, do jornal carioca O Paiz (Acervo da Biblioteca Nacional Digital - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal O Paiz de 15/11/1897

 

Avinha má

Dês que o Mané Ramo adoeceu, ruim duma vez, a Jeronyma não teve mais sossego. Ela era os tombos da casa já no tempo da saúde do marido; agora, que ele caiu com tamanho enxume e tanta ânsia e não podia trocar uma palha, ela tomou sobre si a tarefa mais penosa do sítio, lidando c'os animais, vigiando os camaradas, determinando o serviço a fazer, uma viração que não dava descanso.

A doença do Mané Ramo veio braba, veio feroz; chamado o curador mais mestre das vizinhanças, o Loredo, observou a cara dele, reparou no enxume e, saindo p'r'um lado, falou p'r'a Jeronyma que tivesse paciência, que se consolasse, pois aquilo não tinha volta, era das que dão pancada de cego e matam duma vereda; mas porém que ela se apegasse com Deus, porque nestes casos, às vezes, do céu é que vem o remédio. E mandou dar ao doente um chá de erva doce, a só por só, como que p'r' aliviá-lo, e nada mais.

A Jeronyma sentiu um baque dentro de si e os olhos, na mesma ocasião, quentes e meio vidrados; depois, como era a única enfermeira que havia de fazer quarto, compôs o semblante, segurando-se, contendo-se, e não arredou pé da cama, a não ser quando tinha de ir aprontar a beberagem ou buscar a comida, uns caldinhos, uma coisa leviana.

Saiu bem certo o que seu Loredo previu: ao cabo de uns poucos de dias, não podendo mais de sufocado, o Mané Ramo pediu que abrissem a janela da morada, que se escancarava mesmo do quarto p'r'o terreiro e era arrodeada de unhas-de-gato que estavam cobertas de flores amarelas despencadas até ao chão; a Jeronyma empurrou a folha, chegou p'ra junto do marido, e ali ficou, banza-banzando; de repente, como ele tivesse um estremeção muito forte, olhou-o, vendo que os olhos se lhe esbugalhavam de um modo temeroso; arranjou-lhe os travesseiros, ao comprido das costas, mas o Mané Ramo, esticando-se todo, só achou tempo de lhe rogar que rezasse por ele, que tinha batido a última hora. E morreu, mal comparando, que nem um carneiro, sem gritar, sem nada.

Hora triste foi aquela! E as outras, enquanto a Jeronyma, estendida quase sem acordo numa esteira da sala pegada, ouvia o canto arrastado das mulheres que guardavam o corpo, entoando o Meus irmãos devotos e outras orações p'r'o caso! Quando a gente que ia conduzir a rede se aproximou do defunto e dava de pegar no catiguá, a Jeronyma por um triz que não rolou também morta, pois tamanha foi a dor e a aflição que lhe afogaram os peitos! Mas o que Deus manda cumpre-se, e a gente amiga botou as pontas do catiguá nos ombros e levou ao Mané Ramo p'r'o cemitério da vila. A Jeronyma conservou-se de pé na porta, no entanto que a comitiva ia subindo o morro que dobra p'r'a capela do Lageado; e assim que nem um vulto se viu mais lá no assente do espigão, que estava claro de mais p'r'a mor de o sol vivo do meio-dia, entrou p'ra dentro, atirou-se a um catre, e chorou tal e qual uma louca.

Ora isto acontece com todas as coitadas que perdem seus companheiros. O que não acontece com muitas é guardarem pelo falecido a mesma firmeza que a Jeronyma guardava pelo Mané Ramo.

Dia veio, dia foi, mês correu, mês novo chegou, e nada de ela se esquecer do finado. Era sair p'r'o terreiro, cuidando das galinhas, que a vista logo se lhe pregava na unha-de-gato da janela, e pranteava em demasiado, por se lembrar que fora ele quem tivera a paciência de trazer do mato o cipó com raiz e tudo e plantá-lo naquele lugarzinho. E assim ia vivendo uma vida de amargura.

Duns tempos p'ra cá, toda tarde, nem bem vinha sentar-se num banco perto da porta que dava p'r'a estrada, um sem-fim, morador do rebentãozal da frente, principiava a piar que não tinha mais volta: aqueles dois pios, doloridos e repetidos num chuveiro de vezes, acabavam por deixar a Jeronyma tão desanimada e fora de si que as lágrimas lhe rompiam dos olhos e rodavam pelo rosto abaixo, quase sem que ela as percebesse; por derradeiro, quando já eram muitas e lhe amargavam na boca, aí sim, levantava-se, encafuava-se na varanda, co'a cabeça entre meio das mãos, e soluçava até mais não poder.

Vinha mês, ia mês, aquilo repetia-se ao escurecer, sempre e sempre.

Umas vizinhas que moravam à distância de chamado, então, sabendo que a pobre se amaguava assim, logo que o sol estava morre-não-morre, procuravam distraí-la, trazendo a criançada e cantando uma porção de versos alegres pelo trilho fora. Topavam c'a Jeronyma no dito banco, sozinha, pondo os olhos aguados na serraria batida dos últimos raios do sol: e puxavam por ela, brincavam, faziam grandes estripulias e terramotes, sendo tudo em pura perda. A Jeronyma respondia:

- Deus te pague, Julia! Deus te faça feliz, Jinuaria! Muito obrigada, Chiquinha! Eu bem sei que vocês querem tirar o meu sentido das tristezas, mas é 'toa" Pois não tá ali aquele malvado do sem-fim, que tanto me bole c'o meu coração, piando de semelhante maneira? Aquele sem-fim, ou saci, não sei bem como se chama, é que não consente que eu me esqueça!

As outras ainda teimavam co'ela.

- Deixe disso, Jeróma! Pois quem foi, foi, tá no reino do céu desfrutando um viver mais melhor que este nosso, implorando perdão p'r'os nossos pecados, decerto. O que adianta agora você mortificar-se p'r uma coisa que não tem mais remédio? Console-se, campeie outra sistema de pensar, que essa não serve!

Tudo escusado: a Jeronyma era uma fortaleza na sua saudade pelo Mané Ramo.

Afinal, depois de sofrimentos muito doidos, que não serenavam mais, que se exasperavam à hora da raiva, aos pios da avinha malfazeja, resolveu um dia cortar a causa desses aumentos de mágoa. Um pássaro mata-se, não foi p'r'outro efeito que se inventou a pólva e o chumbo e as espingardas! Havia de calcar fogo naquele sem-fim; ao menos a saudade seria mais pequena, quando ele não estivesse no rebentãozal, pia-piando por essa forma.

Chamou o tomador de conta do sítio, o Geraldo, um caboclo já tordilho, que também ainda se queixava de a morte lhe haver roubado uma filha de quinze anos, tempos atrás, e mandou que ele carregasse uma troxada que tinha no cabido do quarto dos arreios. O Geraldo, que foi na horinha sabedor do intento da patroa, limpou a troxada, assoprou pelos dois canos, desatarvancou os ouvidos da ferruge, e carregou-a com duas cargas de três dedos cada uma, pólva três-efes e chumbo do meio; botou escorvas raiadas nos ouvidos, puxou os gatilhos, viu que os cafanhotos regulavam direito e cada cão parava bem no descanso e no atirador, apertou as escorvas e entregou a espingarda.

A Jeronyma tinha uma pontaria muito certeira. Em vida do Mané Ramo, caçava seguidinho c'uma taquari que ele lhe dera de presente, na volta d'uma viagem, e saía até, antes da comida, p'r'apear muitas vezes uma pomba legítima da caneleira do quintal e aprontá-la ainda, ou p'ra pegar mais depressa um frango ou um leitão.

Saiu no rumo da erva-de-lagarto, onde o sem-fim chorava toda tarde, moitou atrás duma touceira de capim-fino, e esperou que o sujeito botassea a voz. Não tardou muito, o sem-fim cantou c'um porte de pio comprido e angustiado que nem tinha propósito: a Jeronyma pôs bem atenção nele, depois ergueu a arma, apontou um tempão, fez fogo – e o pássaro caiu num embromado, que nem uma trouxa.

- Agora (vinha ela dizendo), agora já posso ter um tiquinho de paz!

E como a lua principiasse a clarear, já no meio do céu, a Jeronyma, quem sabe se pela primeira vez depois que se enterrou o Mané Ramo, riu com certo gosto; caminhou ligeiro p'r'a casa, entrou p'ra dentro e dormiu essa noite d'uma enfiada.

No outro dia, assim que o sol baixava, a Jeronyma foi tratar das galinhas.

Estava encostada na cerca do terreiro, olhando umas redadas de pintos novos, quando ouviu uns pios de sem-fim, a coisa mais desesperada deste mundo, na direção duma capoeira p'r'os fundos do quintal. Aí não pôde ter mão em si; despencou a chorar como mantecata, c'os peitos tomados e oprimidos.

E o Geraldo, que viu o momento em que ela atentara na fala do pássaro, veio p'ra junto dela e disse-lhe c'a voz meia sumida:

- Qual, nhá Jeróma! Aquela avinha é ver mesmo a saudade que a gente tem: a mó que morre n'um lugar p'ra resuscitar n'outro. Saudade não se mata: ou ela morre por si ou mata a gente!

Valdomiro Silveira

(Os caboclos)

Imagem: reprodução da página 1 do jornal O Paiz de 15/11/1897

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