Que vontade a Maria Penereira não tinha de ter um filho! Vivia rezando p'ra S. Bento, a bem dizer dia e noite, e S.
Bento não fazia conta dela, a mó que. Promessa e mais promessa, jejuns em louvor de quanto santo conhecia, resguardo e rejume louco, dava tudo em
água de barrela, dizendo mal. Fosse por culpa dela, ou do Nastacio, com quem morava, verdade era que dentro de três anos nada tinha arranjado.
Andava caindo no desânimo, duma vez, duma vez, quando, em rezão duns barulhos caseiros, largou do Nastacio e foi campear a querência antiga, a casa
dos pais.
Foi pouquinho, o tempo que passou na querência antiga. Pissuía um coração mole, enrabichou-se de repente por um
tropeiro que navegava dos Três Ranchos p'ra cá e de cá p'r'os Três Ranchos, por nome Juquinha Hortensio. Beteu as asas, um belo dia, e arranjaram o
ninho ali p'r'o Chico Marques, mais p'r'ali, mais p'r'além, por aí assim. Ê! Lá! Vida boa, a que eles gozaram! Só Deus c'os anjos poderão saborear
uma vida semelhante.
As orações da Maria Penereira na certeza tiveram mais fervor, dês'que ela pegou de amores c'o Juquinha Hortensio:
na certeza, porque, revirados poucos meses, ela principiou a sentir enjoos de estamago, entojo por quanta coisa havia, tonturas e outros sinais de
esperança; revirados mais uns dias, mais uns poucos de meses, de de engordar à vista de todos; correram trinta dias por um mês, mais um, mais outro,
e S. Bento afinal teve compaixão da Maria, mandando-lhe um filho bonitinho que era uã maravilha.
Aconteceu o que havia de acontecer: a criança foi levada à igreja, batizada por Bento – mas não chorou quando o
padre lhe botou sal na boca. A mãi, que estava junto,sentiu um baque no coração, porque é ruim quando o que vai p'r'a pia não estranha o amargo do
sal. Mas o sacramento chegou ao fim, ela segurou o filhinho, beijou-o, beijou-o, um dilúvio de vezes, e troteou p'r'a casa, que não era tão nas
vizinhanças, pois uma légua e um quarto não se vencem c'a ponta dos beiços. O menino enrolado numa roupa muito linda e enfeitada de fitas de quase
todas as cores, nem mexia, parecia ir dormindo.
Quando frontearam a venda que tem p'r'o lado esquerdo, na encruzilhada, a irmã da Maria Penereira, que estava ali
de pouso, chamou-a e desejou ver o nenê. A Maria bem quis dizer: - Qual, Valencia, é melhor deixar o coitado romir seu sono sossegado! -, mas não
teve ânimo e entregou-o dormindo à Valencia. A outra desembrulhou o xale que o encobria, reparou firme no rosto mimoso, fez uma cara alegre e
risonha e disse:
- Ah! Que belezinho, Maria, que belezinho! Eu, se tivesse um capanga assim, até me contemplava a mais feliz de
todas as mulheres! E tem um dormido tão manso! Ah, que graça, que encanto!
Ora, quando a Maria Penereira entrou em casa e foi pôr o pequetito na cama, o pequetito ficou co'a cabeça descaída
p'r'um lado, amolengada e sem jeito. Ela cuidou que fosse sono, arranjou o travesseirinho, amaciou a colcha, deitou-o: mas a cabeça pendeu p'r'uma
banda, que nem um trapo meio pesado, os olhos entortaram-se, a boca frangiu-se d'um modo esquisito. E aí a pobre da mãe, deatinada, clamou a céus e
terra que o Bento estava nas últimas, morre-não-morre, e que aquilo não passava de quebrante.
Por volta da meia noite, mais ou menos, a criança fechou p'ra sempre os olhos, passando desta vida p'r'a outra,
feito um cuitélinho. A Maria, a princípio, não sabia que pensamento havia de escolher, dentre tantos que lhe alvoriçavam o espírito aloucado de dor:
mas, quando, tendo posto mais atenção no vulto do filho morto, viu ainda aquela triste cabeça como que desconjuntada, começou a chorar e soluçar
alto, perdidamente.
Os galos já estavam violando, a noite era de lua. Ela conservara-se de pé junto da cama, tremendo como um ramo de
folhas noviças, que o vento sacode, cada vez que os gemidos a queriam estrangular. Aí então afastou-se de soco, com os cabelos arripiados e um fogo
temeroso nos olhos, gritando:
- Foi aquela desgraçada da Valencia que botou quebrante no meu filho: foi aquela bica à toa, aquela juruveva,
aquela potranca danada! Mas há de me pagar, há de me pagar tamanha desventura que me dá!
Tomou o filho morto nas mãos, saiu pela estrada, sozinha, corre-que-corre. Ninguém pôde ter mão dela, a violência
era de mais. Seguiam-n'a de longe. Assim que se aproximava da venda da encruzilhada, já ia aos brados chamando pela irmã:
- Ó Valencia! Valencia!
A Valencia, acordada assim fora de horas, aterrorizou-se, escondeu-se bem nas cobertas. Mas logo que reconheceu a
voz da irmã, voz cortada de lágrimas, saltou da cama, pinchou um xale à cabeça, rompeu na porta.
A lua ia empalidecendo, queria enfiar a cabeça no seio da montanha mais alta que se via duas léguas em roda. E a
Valencia, vendo o jeito desmantelado da irmã, cujos peitos se levantavam e baixavam a todo instante, como se fossem dois pulmões que estivessem
latejando, chegou p'ra perto dela. O Juquinha Hortensio e as mais pessoas que a tinham acompanhado ainda vinham a umas cem braças.
Neste artigo a Maria Penereira, pondo com muito cuidado o filhinho em riba de um pranchão rente da casa, atirou-se
à Valencia, agarrando-a pelo pescoço, apertando-lh'o c'umas unhas que pareciam tão afiadas como as do canguçu. E rugia, que rugia:
- Você botou quebrante no meu filho, ordinária! Você botou quebrante no meu filho, lagacha!
A Valencia debateu-se, sufocada, tremeu, estremeceu, endireitou-se toda, ficou depois toda convulsa, depois rija
que era ver um defunto.
E assim que o Juquinha Hortensio puxou a Maria, contendo-a pela força bruta, ela fez menção de ajoelhar-se,
rogando:
- Pelo amor de Deus, deixe que eu mate aquela malfadada!
Arrastaram-na para longe. E de longe ela gritava ainda, até desaparecer na baixada do caminho:
- Ah! Piguancha sem sangue, você botou quebrante no meu filho!
Valdomiro Silveira
(De um livro inédito de conto, Os Caboclos)