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Valdomiro Silveira na literatura argentina
(Especial para O Estado de S. Paulo)
Braulio Sánchez-Sáez
Lá pelo ano de 1924, numa das minhas
viagens a este São Paulo, sempre multiforme e caloroso em expressões de afeto àqueles que dedicam atenção aos seus livros e nos seus homens de
pensamento, foi que iniciei minhas relações, senão com a pessoa de Valdomiro Silveira, pelo menos com as suas obras.
Com efeito, Monteiro Lobato, com esse seu espírito americanista de formidável energia, foi-me
orientando entre os livros que editara, naquela primitiva realização editorial que, com o correr dos anos, viria a ser a casa mais importante de
toda a América do Sul, e que tinha por objetivo principal tornar conhecidos os valores novos desse tempo. Era lá na Rua dos Gusmões, quando essa
empresa começava as suas grandes empreitadas. Conheci, então, muitos escritores novos nessa época, hoje prestigiosos líderes do Brasil intelectual:
Menotti del Picchia, Paulo Gonçalves, Plinio Barreto, Leo Vaz, Veiga Miranda, Gabriel Marques, Sampaio Doria, Julio Cesar da Silva e Galeão
Coutinho.
Posteriormente, Benjamin de Garay (N. E.:
nascido em Santa Fé e falecido em 1943, traduziu para o castelhano diversas obras brasileiras como as de Monteiro Lobato, a partir de 1921)
apresentou-me a outros grupos que já começavam a libertar-se das tutelas correntes: compunham-se de Cassiano Ricardo, Francisco Pati, Sergio
Milliet, Mario de Andrade e outros que faziam parte daquela admirável Novissima, que marcou época na vida literária paulistana e que foi
também a primeira publicação orientada no sentido de conseguir uma compreensão maior entre os escritores continentais.
Quando voltei para a Argentina, Lobato entregou-me entre muitos livros por ele editados, um que me
recomendou muito especialmente: tratava-se de Os Caboclos, de Valdomiro Silveira, impresso em 1920, com singular êxito de crítica.
Esse livro permaneceu em minha casa, colocado na estante dos meus livros do Brasil, durante vários
meses sem despertar maior importância, nem atenção. O meu trabalho na redação de Caras y Caretas não me dava tempo para ler senão as obras
mais necessárias a fim de atender às obrigações impostas. Um dia, porém, don Juan Carlos Alonso, diretor dessa importante revista, chamou-me e disse
que era necessário iniciar uma seção de literatura brasileira, em cada número, a fim de tornar conhecidos os escritores "do país irmão,
completamente desconhecidos". Foram essas as suas generosas palavras. Imediatamente me pus em ação, para poder apresentar um panorama interessante
dos escritores do Brasil.
Em casa coloquei sobre a minha mesa todos os livros trazidos da recente viagem. Dediquei maior
importância aos livros de ficção, tendo em vista o caráter literário da revista. E então surgiram minhas traduções vacilantes, imprecisas, dos
escritores, modernos e antigos, a fim de conseguir criar um afeto de compreensão entre os povos.
Lembro-me bem que o primeiro conto por mim traduzido foi Os Curiangos, de Valdomiro
Silveira; o segundo, Os Selvagens, de Vicente de Carvalho; e o terceiro, Negrinha, de Monteiro Lobato. Confesso que essas três
publicações constituíram um êxito extraordinário, ilustradas em cor pela maravilhosa técnica do desenhista Luis Macaya.
Poucos dias depois, em uma reunião de amigos, Arturo Cancela, então diretor do suplemento literário
de La Nacion, falou-me com entusiasmo de minhas traduções e me pediu que fizesse uma para esse diário e de preferência de Valdomiro Silveira.
Nas páginas do suplemento publicaram-se Historia Antiga e Salvação. Também lograram muito êxito e diversos escritores referiram-se com
palavras de admiração a Valdomiro Silveira e seus dotes de contista regional.
Recordo-me também de uma tarde em que apareceu em minha casa, de passagem, um velho amigo que já
começava a se destacar como poeta e contista. Era Fausto burgos, mestre-escola, que morava na cidade de La Plata e havia sido transferido para um
estabelecimento de ensino no Norte Argentino.
Bisbilhotando entre os meus livros com essa atitude atrevida que todos os escritores têm quando
entram na biblioteca de um companheiro, começou a folhear as obras, falando ao mesmo tempo. Surgiu o nome de Valdomiro Silveira. O livro estava nas
suas mãos e logo passou a comentá-lo.
"Olhe, velho Sánchez-Sáez, esse conto que v. publicou em Caras y Caretas, assim como os dois
de La Nacion, proporcionaram-me inesperadamente um caminho a seguir. Creio que nós, argentinos, precisamos buscar nosso interior longe do
conglomerado falso que nos preocupa. Muitos são os escritores que escrevem, porém poucos acerca de nossas províncias e da vida de nossa gente. É
possível que eu me dedique a isso, alguma coisa assim à Valdomiro Silveira".
Presenteio-o com Os Caboclos, que ele me agradeceu com entusiasmo. Alguns dias depois, outro
amigo do interior, nada menos que De Salta, pedia-me também referencias sobre Valdomiro Silveira e solicitava as suas obras. E agora quem se
interessava não era senão don Juan Carlos Dávalos, poeta profundo e apaixonado por sua terra, que também começava a criar algumas narrativas e
pequenos estudos sobre as características do Norte Argentino. Mandei também a Dávalos o livro de Valdomiro Silveira, atendendo ao seu desejo.
Passaram-se os anos. E as novas produções de Fausto Burgos, assim como as de Juan Carlos
Dávalos, seguiram caminhos diferentes aos que traçavam anteriormente. O carinho pela terra natal, o exame das características do ambiente do Norte,
assim como também o vocabulário das gentes dessas províncias estavam refletidos nas obras desses grandes escritores. Particularmente em Fausto
Burgos, que seguiu passo a passo a lição de Valdomiro Silveira, resumindo de forma idêntica os costumes e as características do caboclo, seus
sofrimentos, suas alegrias, suas esperanças, na própria língua em que eles se entendiam.
Tanto Valdomiro Silveira como Monteiro Lobato tiveram uma influência capital na geração argentina
de 1920. Valdomiro Silveira revelou uma importância pouco conhecida pelos escritores anteriores, o que equivale a dizer o amor à vida do interior do
país.
Foi sem dúvida aceita a forma do escritor paulista e tenho plena segurança que muitos dos contos
publicados nas revistas argentinas, durante o período de 1924 a 1930, influenciaram nos escritores jovens. Fausto Burgos é uma prova evidente disso,
assim como também Juan Carlos Dávalos, especialmente no seu livro Viento Blanco, apesar de impresso em 1922. Já nessa época, Benjamin de
Garay publicara muitos contos de Monteiro Lobato, e daí a razão da influência deste escritor paulista no escritor argentino.
Quando Fausto Burgos principiou a publicar seus contos e narrativas nos suplementos literários de
La Prensa, de Buenos Aires, acreditei encontrar em alguns deles os traços peculiares a Valdomiro Silveira. Examinava atentamente o livro
Os Caboclos e via nele a essência do escritor argentino passo a passo seguida, admiravelmente, e não restava dúvida da influência que aquela
obra nele exercera de maneira indiscutível.
Certa ocasião atrevi-me, baseado na amizade que sempre me uniu a Fausto Burgos, a perguntar-lhe o
efeito que causara em sua formação a obra de Silveira, e a sua resposta foi definitiva, afirmando que o escritor paulista "descobrira um manancial
secreto da literatura dos costumes de seu país, ao qual se entregava com todo o entusiasmo".
Como Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira penetrou na literatura argentina. Negá-lo seria ocioso.
Todos aqueles jovens que se reuniam, lá pelo ano de 1920, sob o olhar paternal de don Lorenzo Rano e de sua editora, fomos, nas várias viagens que
realizamos nos anos de 22 a 28, influenciados pelas letras paulistas, durante as visitas a este florescente Estado e a Monteiro Lobato & Cia., ponto
de reunião da juventude literária de São Paulo.
o voltarmos de novo a Buenos Aires, tanto Nicolás Olivari, Lorenzo Stanchina, Luis Emilio Soto,
Salvador Alfredo Gornis e Pedro Juan Vinale, como eu mesmo, estávamos todos impregnados do movimento criador paulistano. E o interessante do caso é
que, mesmo dentro desses grupos e no círculo de nossas relações, fomos associando aos nossos sentimentos o entusiasmo de outros escritores que não
haviam estado em São Paulo ou no Brasil, tais como: Leonidas Barlera, Fausto Burgos, Juan Carlos Dávalos, Elias Castelnuovo, Donato Antonio
Robertacio - o maior contista de minha geração; Juan López de Molina, Horacio Nani, Ernesto Morales, Alvaro Yunque, Julio Fingerit, Enrique Gonzalez
Tuñon e Pedro Herreros.
O humorismo causticante de Monteiro Lobato é patente em Nicolás Olivari e Enrique Gonzalez Tuñon, e
algumas vezes em Pedro Herreros e Alvaro Yunque. A psicologia dos Caboclos, tão magnificamente interiorizados em Valdomiro Silveira,
deparamos, embora com nomes diferentes, em Fausto Burgos, em Juan Carlos Dávalos e, em menor grau, em Enrique Amorin.
Muitos contos desse pequeno livro de Valdomiro Silveira encontrei traduzidos e publicados nas
revistas argentinas e posso afirmar, com segurança, que todo ele foi apreciado em castelhano, por muitos e diferentes escritores que, por sua vez,
encontraram nesse autor nova essência de conto, orientado num sentido de modalidade racial.
É indiscutível que Valdomiro Silveira, tanto no Brasil como na República Argentina, deixou muito de
seu caráter e de seu estilo, posto que, como já vimos, escritores de forte personalidade como Fausto Burgos e Juan Carlos Dávalos se interessaram
por esse autor. Isso, no entanto, não significa que eles o imitaram. A imitação só se ajusta às inteligências chatas e soporíferas.
A morte dessa singular figura será sentida dentro de seu positivo valor, não somente na terra
paulista, como também por todos nós, "jovens de 1924", que aprendemos uma lição de patriotismo ao nos familiarizarmos com a vida e os homens do
campo argentino. |