Foi debaixo de uma chuvinha persistente e mangueira que o Neca Alves voltou do capoeirão, ao fechar da tarde,
carregado de palmas de guaricanga e de folhas de samambaia das miúdas. Um ameaço de sol doirava o fundo do poente, que logo, entretanto, se
acinzentou de novo, até que a barra da noite, menos escura, talvez, que as nuvens do alto do céu, se foi alastrando pela costaria verde-negra das
montanhas. Urrou, pelas sofraldas, e voz melancólica e pausada das vacas errantes: e de longe lhe respondeu, vingando o morro todo trêmulo das
touceiras de jaguara, o bramido áspero de um touro costa d'África.
O Neca era um mestre dos natais daqueles centros. Em três léguas em volta ninguém sabia pôr a mão num presépio nem
puxar uma reza como ele. Catava quanta barba-de-velho pendia das árvores heradas, pelos campos-cobertos; quanta folhagem esquisita nascia à beira
dos córregos: e até - coisa que fazia piedade! - os ninhos que podia topar, dos sabiás, joão-de-barro e dos tico-ticos indiscretos. Fazia o jrau a
um canto do alpendre, armava um empalizado junto d'este, compunha e concertava os musgos e as flores a todo o arranjar, lançava ao fundo a
manjedoura, e tinha um jeito todo seu de colocar os cássicos animais que viram, logo ao nascer, a linda criancinha de Belém, que foi Nosso Senhor
Jesus cristo.
Assim, pendentes sobre a palha seca e aos lados da cumeeira, com os rostos muito risonhos voltados para o berço
rústico, os anjos pareciam mandar ao galo que cantasse, ao boi que mugisse e ao carneiro que balasse brandamente, por não estorvarem o sono plácido
do filho de Maria Nazarena. E via-se bem que o carneiro e o boi e o galo não tinham vozes agudas, porque mais se ocupavam em olhar para o doce vulto
infantil que tinham diante, cercado de flores agrestes, de mangas, de cajubis, de pingos-d'água e de marmelinhos.
Era um verdadeiro mutirão, o preparo do presépio: cada qual dos convidados trazia uma novidade ou uma surpresa,
como rosas raras naqueles ermos, jabuticabas atrasadas, galhos vermelhos de café-murta em pencas. A Risoleta, o pancadão do bairro, alva e engraçada
como um lírio de ribeirão, trouxera agora um braçado de tábuas e ramalhetes de bariricó ladeados de maravilhas. O Neca, vendo-a entrar assim,
admirou-se:
- Tábua, aqui, siá dona? Eu cuidei que isto só dava na minha terra, p'r'as esteiras que a gente vende nas festas e
neste rincão só tinha o piri, que p'ra mim é uma planta cansada!
Ela corou ligeiramente; não tanto como as maravilhas que trazia nas mãos, mas decerto muito mais que o namorado,
quando lhe disse tais coisas: que o Neca Alves, um tostado de Serra Acima, era quebra e decidido para pensar e dizer... Começou a ajudá-lo, então: e
Nosso Senhor, se pudesse ver, acordando de repente e com olhos que entendem, toda flor e toda fruta que lhe foi posta ao lado, teria de estranhar
que na terra de sua natureza pudesse haver uvaias e araçás, oficiais-da-sala e sumbaré.
Num certo momento, encontraram-se as mãos de ambos. Era natural, na continuação do trabalho: e, contudo, a dela
tremeu de leve, a maneira de uma juruti que a aragem toca, e ele pediu-lhe desculpas, serenamente, como quem sabe que vai ser logo desculpado. Nada
mais que isto: e, apesar de ser tão pouco, a Risoleta já não foi mais, de então por diante, o alvo lírio do ribeirão, porque inteirinha se fez
rosada como a flor do pessegueiro. Foram chegando os vizinhos: a manjedoura mais ficou sendo um jardim e um mercado de frutas, que manjedoura, onde
havia cordas e trapézios em que brincavam crianças, umas viradas para o menino Jesus, outras sungando a outras.
O dono da casa apareceu afinal, rengo e pesado, arrastando pelo chão socado a sua erisipela doida e barulhenta.
Quem o viu, triste e entregue no meio de toda a alegria espalhada no alpendre, ficou logo também triste. Mas houve quem procurasse combater a
impressão de mágoa que se ia entranhando no povo:
- Ué, seu Caetano, você 'tá que nem moça da roça, c'uma perna fina e outra grossa?
Ele voltou-se para o caipira alegre, e seus olhos tiveram um grande olhar de comovida renúncia. O caçoísta ficou
sério, aproximou-se, pôs-se a examinar o pé inchado do doente, e concluiu, solene como numa conferência:
- E não é que o home 'stá mesmo c'a erzipa das brabas? Mas porém isso não vale nada: atuche-lhe uma banharada de
arve-de-lagarto, uns panos molhados em cozimento de erva-lanceta que numa volta de mão 'tá pronto p'ra outra. Exp'rimente só!
Fazia-se estridente a gritaria dos grilos e dos gafanhotos, fora. Viam-se brilhar no céu, muito nítidas como
pregadas num veludo já gasto, as maiores estrelas: que as outras, fraquinhas ou desconsoladas, não se animavam a aparecer na profundeza daquela
noite de festa. Levantou-se o tempo, mas a horas que os galos principiavam a bater as asas e a cantar, espaçadamente ainda. E como o Neca se pusesse
em frente ao presépio, e ajoelhasse, todos ajoelharam também, numa grande agitação de bancos e prucas arrastados, num forte rugir de saias e de
calças cheias de goma.
Começou a reza. O Neca era afiado para aquilo, sabiam-no todos: mas, fosse lá como fosse, não tinha a voz tão
segura como sempre, distraía-se às vezes, estava um capelão de meia pataca. Engrolou a maior parte da ladainha, resmungou outra parte, liquidou a
obrigação tão depressa como pôde, e sentiu no peito um doce alívio, quando, chegando aos últimos versos da cantoria necessária, ouviu no terreiro o
estrondar dos tiros de garrucha e de rouqueira. Ergueu-se, avizinhou-se das Três Pessoas, fez uma reverência ao Menino Deus, beijou-o: e saiu.
Já trilavam as violas, roncavam os violões, e uma animosa sanfona fazia ouvir, da cozinha, o seu repertório fanhoso
e curto, quando os convidados se chegaram ao presépio e foram deixando esmolas e retirando frutas e flores: que elas são sempre capazes de fazer
feliz a quem quer que seja, nas virações da vida... Como fosse aumentando o movimento nas cercanias do presépio, e crescesse também o rumor, surgiu
da noite um macho crioulo, pinhão, muito inhato e rabicó, de piques nas orelhas, e pegou a trocá-las ao pé da porta, contemplando extasiadamente o
povo, cheio de bichos e de anjos nos negros olhos pasmos.
Pouco durou, porém, aquela contemplação: os guapécas que andavam cercando a mesa, onde já se viam lourejar os
quartos de leitão e os franguinhos assados, saltaram ao pobre do burro, sinão quando, e ele de novo entrou na noite, a trote seco, zonzo e meio
cadeira. Muito tempo ainda se ouviu, de mistura com os primeiros cantados, o ladrar bravio dos cachorros e a tropeada fugitiva: e tudo se afastou,
afinal, até se confundir com a barulheira do córrego do Lourenção, que as chuvas recentes tinham engrossado.
Quem tirou o primeiro coreto foi o Caetano, embora estivesse increnco e pesadão desde já muitos dias atrás:
Aos amigos
um brinde é feito:
reina a alegria
em nosso peito.
E a rapaziada cantava deliciadamente o conhecido estribilho:
Grato licor,
Alegre e jocundo,
Que todo este mundo
Desafia a amor.
Uma velha, rodeada de crianças, contava a história do nascimento de Cristo:
- O galo, antão, cantou por este jeito: "Jesus Cristo nasceu!" E a vaca preguntou-lhe: - Adonde? E o carneiro
arrespondeu: "Em Belém".
Mas a festa não ia boa: faltava-lhe o Neca Alves, que era todo enlevos e mimos com a Risoleta. Já lhe chamavam
puxa-puxa, coisa com que ele dava um cavacão sem altura; já diziam que tijolo e azeite daquele feitio, era desaforo de mais: e houve um senhor muito
saído, que, às escondidas dele e dela, os prendera um ao outro a poder de alfinete de fralda.
E a conversa dos dois era esta, por fim:
- Quando eu lhe vi, nhá Risoleta, est'ro dia, na casa do Carmo, de vestido cor de rosa e cravo branco no cabelo, e
tive que vir-me embora, já voltei mais seu do que meu: fiquei logo latejando si havia de lhe pedir por minha boca ou mandar soletrar uma carta, si a
carta devêra de ser p'ra você ou p'r'o seu pai.
- Tanto faz, seu Neca: a gente querendo, já vê que ninguém pode contra. Eu queria, não é? Já tava meio caminho
andado...
- E adonde foi que você me disse que queria, ou ao menos, me deu a entender essa vontade?
- Quem quer bem adivinha pensamento; era da sua intenção que eu saísse anunciando que lhe tinha amor, ver esses
piás que carrega tabuleta de circo de cavalinhos?
Apontava a manhã fresca e rubra. O sol mostrou-se com pouco. Houve tremuras de orvalho na grama-seda do piquete,
porque ventava rijo. E o macho pinhão, ao longe, encostado à cerca de canjiquinha, dirigia para a casa de morada um olhar muito repassado de
tristeza e saudade. Toda prata da grama foi sumindo, envergonhada, porque todo o ouro do sol deu de roda e pelo chão.
- ...E que casamento bonito, não é nhá Risoleta? Bonito e singelo... feito o Menino
Jesus...
Valdomiro Silveira
Imagem: reprodução parcial da página 146 da
revista de 25/6/1921 (Acervo Brasiliana/USP)