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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (9)

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No dia 23 de setembro de 2007, o suplemento Cultura do jornal paulistano O Estado de São Paulo dedicou sua página D-8 à obra do escritor Valdomiro Silveira (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

IMAGEM - Caipira Picando Fumo, tela de Almeida Jr.: engrandecendo a linguagem do sertanejo
Imagem: reprodução, publicada com a matéria

Literatura - Regionalismo:

Valdomiro Silveira e a literatura caipira

Escritor paulista inovou ao transformar em narrador o homem interiorano

Francisco Quinteiro Pires

Valdomiro Silveira é considerado pela crítica o precursor do regionalismo. A afirmação é polêmica e se mostra frágil, sobretudo porque faltam provas cabais a respeito do pioneirismo. Mas a dúvida sobre ter sido mesmo o primeiro não lhe diminui a importância. Esse escritor paulista foi de fato inovador por dar voz narrativa, preservando o dialeto caipira, ao homem do interior do Brasil, no momento em que o País acusava o interiorano e, por extensão, sua linguagem de serem inferiores e de representarem um entrave ao progresso.

"O conto inaugural Rabicho é muito primitivo", diz Enid yatsuda Frederico, professora aposentada da Unicamp e organizadora de Leréias (Martins Fontes, 232 págs., R$ 34,50). Embora haja marcas regionalistas em Rabicho (1894), como a preocupação em traçar as relações entre o caipira e a paisagem local, Enid aponta a separação literária entre norma culta e dialeto caipira.

O narrador de Rabicho não seria o do livro Leréias (1945) que, oculto e mergulhado na oralidade, conta suas histórias e as alheias sem precisar de uma voz apoiada na gramática tradicional. É a mesma técnica potencializada por Guimarães Rosa, leitor de Valdomiro, em Grande Sertão: Veredas, segundo a professora.

Valdomiro nasce em Cachoeiro Paulista, em 1873, e passa a vida entre a capital e cidades do interior. Nomeado promotor público em 1895, muda-se para Santa Cruz do Rio Pardo, onde frequenta festejos, pagodes e funções para recolher vocábulos e expressões caipiras. No entanto, o rigor no registro da fala caipira e da fauna e flora interioranas por Valdomiro não tornava suas histórias provincianas. "A ele interessa mesmo é a figura humana, que em sua obra produz momentos líricos e trágicos muito bonitos", diz Enid. Ao mirar o meio rural, o escritor paulista acerta o que é universal.

E Valdomiro Silveira, ao tentar compreender o ser humano e seus dramas, abre espaço para o caipira, considerado mão-de-obra imprestável, no lugar de quem se preferia o imigrante e contra quem o preconceito linguístico era exacerbado. Não se pode esquecer que Monteiro Lobato, criador da imagem do Jeca Tatu, tratou a brasilidade como sinônimo de atraso, na qual o matuto não passava de um ignorante e preguiçoso, um parasita semelhante ao urupê.

Além de superar a discriminação literária contra o caipira, o autor de Leréias abandonou as tintas ideais de que os românticos se valiam para caracterizar o sertão brasileiro. Ele se preocupou em fotografar a realidade rural com precisão máxima e sem receber a influência de valores europeus. Mas é bom ressaltar que esse processo de ruptura não é puro, pois certa idealização se identifica na prosa valdomiriana. "Tanto o propósito de fidelidade ao universo caipira como a sua idealização inconsciente se embaralham em Valdomiro", diz Célia Regina da Silveira, professora de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). "Ao mesmo tempo em que os aspectos do código social desse universo são tratados com realismo, nota-se que na composição da trama está presente o caipira idealizado", continua.

A representação rigorosa do mundo sertanejo em Valdomiro recebe a influência naturalista de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que chamava de tempos em tempos o colega à sua casa em São José do Rio Pardo para ler capítulos finalizados de sua obra monumental ainda em produção. "Eles partilhavam de ferramentas mentais comuns, em que se privilegiava o sertão, em detrimento do litoral", diz Célia Regina da Silveira.

Segundo a professora da UEL, Os Sertões oferece a compreensão do sertanejo nordestino como um tipo racial que poderia constituir o brasileiro. Valdomiro compara os paulistas a esses nordestinos e, assim, colabora para o advento do regionalismo paulista. E não só. "Para ele, o caipira do Estado de São Paulo teria parentesco com os antigos bandeirantes e, o mais importante, seria o responsável pela criação de uma língua nacional".

Euclides da Cunha desvendou um Brasil diferente daquele que se pautava pela Rua do Ouvidor, no Rio, onde se achava a última moda parisiense. Era uma estocada no francesismo reinante entre os séculos 19 e 20, que influenciou Coelho Neto e Olavo Bilac. Valdomiro Silveira percorre a mesma senda, e engrandece o passado e os valores brasileiros, dos quais sentia saudosismo. "No conto Pala Aberto, de Leréias, o passado figura como tempo feliz e o eu, protagonista da narração, encontra-se no presente em estado de desequilíbrio interior e desarmonia com o ambiente rural", diz Célia. Valdomiro percebera o início do processo de desestruturação da cultura caipira tradicional nos primeiros anos do século 20.

A superprodução de café era um sintoma do capitalismo que avançava sobre o campo. "Valdomiro é um dos primeiros a identificar a desagregação do mundo rural, o tempo das coias em harmonia estava condenado", explica a professora Enid Yatsuda. Segundo ela, o escritor paulista não pode, porém, ser considerado um crítico do ideário capitalista, já que sua crítica está fundada em critérios de natureza emotiva e instintiva.

Em vida, Valdomiro publicou Os Caboclos (1920), Nas Serras e nas Furnas (1931) e Mixuangos (1937), todos esgotados. As obras planejadas para publicação Mucufos, Caçadores e Sina de Nhara estão desaparecidas. Exerceu cargos públicos como o de deputado federal e secretário estadual no governo Armando Sales de Oliveira. Morreu em 1941, sem ver Leréias publicada, a obra que mais prezava.

O AUTOR - Foi deputado federal

Imagem: reprodução, publicada com a matéria

Trecho

Parece coisa que inda 'tou vendo o Tibúrcio, aquele negão meio bobó, que andava esfarrapado p'ro centro dessas ruas, na quentura do sol ou na força das águas, dando gritos soturnos. Às vezes, quando 'tou suzinho nalgum ermo, em hora ansim de mais sussego, inté me representa escuitar uns guinchos finos, desguaritados da vozona grossa e carregada que ele soltava de repente, pondo pavor nos outros. Eu sempre 'maginei, a só por só comigo, que não haí coisa mais triste que andar um cristão p'ro mundo, sem companhia de jeito nenhum, sem o sapé dum rancho p'ra tapar o chão da orvalheira da noite, mal comido e mal drumido, c'a frieza do desânimo no fundo do coiração.

Mas porém a sorte do Tibúrcio, p'ra mim, foi mais negra que quantas eu vi na vida. Não tinha pai nem mãe, não tinha ninguém por si; trocava o dia pela noite, enveredando p'ras estradas, fora de horas, nûa meia carreira, como quem levava pressa; amanhecia alagado ao sereno, sentava nalgum barranco, pescava seu pouco, numa cochilação estabanada e sem paz, voltava nos pés p'r'a vila: e neste vai-e-vém cresceu e ficou velho, sem não sentir a idade, ver um poldro que a gente larga no campo reúno, e véve sem lei de freio, e iguala sem levar sela, e fica erado sem preceito de qualidade nenhuma...

Imagem: reprodução, publicada com a matéria

Na página 6 de sua edição de quarta-feira, 4 de junho de 1941, o jornal paulistano Folha da Manhã publicou esta análise, de Rubens do Amaral (ortografia atualizada nesta transcrição - acesso em 7/6/2014):

A COLABORAÇÃO NACIONAL:

Valdomiro Silveira

Rubens do Amaral

Em 1937, quando apareceu Mixuangos, de Valdomiro Silveira, dediquei-lhe, no rodapé Livros e Idéias, algumas linhas. Hoje, reproduzo-as nestas colunas, como homenagem ao grande contista, que não teve a imortalidade conferida pela Academia Brasileira de Letras, mas terá a da admiração crescente dos contemporâneos e dos vindouros.

Quando estiver formado o idioma brasileiro, distinto do português, Valdomiro Silveira será um clássico da língua. Ninguém com mais acuro e tenacidade estudou o dialeto paulista, no seu vocabulário e na sua sintaxe, construindo uma literatura que espelha, em todas as suas páginas, a fala da nossa gente. Nos seus livros, se outros documentos mais não houver, poderão os gramáticos do futuro reconstituir o estágio atual da nova língua, no período em que, perdendo o que tinha de bárbaro, ao contato da cultura, pareceu recuar quando na verdade triunfava em consagrações literárias que são marcos de vitória. O vernáculo lusitano e o linguajar caipira desgastam-se mutuamente, um como esmeril que se reduz, outro como pedra que se lapida. A resultante será, com a ajuda imprescindível do tempo, a língua brasileira, neta da latina, orgulhosa da sua estirpe, mas emancipada numa maioridade que encherá o pai Portugal de mágoa e soberba.

Esse trabalho de lapidação é o mérito de Valdomiro Silveira. Outros se limitam ao garimpo, colhendo gemas que serão o nosso tesouro. Valdomiro as recolhe para facetá-las e, como um joalheiro artista, engastá-las no ouro da sua prosa, fabricando joias da literatura brasileira. Seus contos, Os Caboclos, Nas serras e nas furnas, agora Mixuangos, não tem as asperezas da mata virgem e bruta. São antes jardins formados com as nossas árvores e com as nossas flores, mas simétricos, aparados, bonitos. E, ainda, certo de que o dialeto caipira é um rebento lateral do português falado no tempo da descoberta e do povoamento, retoma o fio da tradição soterrado pela poeira dos séculos e imprime à sua forma um perfume quinhentista que seria paradoxal se não tivesse prosápia legítima.

Mas a forma não é tudo. Um conto é um pedaço da vida. E Valdomiro, nos seus contos, retrata a vida dos caboclos com a fidelidade e um fotógrafo e com a arte de um pintor. Não só nos episódios, que parecem todos contados por quem os tivesse presenciado na realidade: as almas que os representam existem tais quais, conhecemo-las nas nossas vilas e nos nossos sítios, já lhes falamos, já as observamos, já as sentimos. São exatamente assim. Parece que o escritor passou a existência debruçado sobre elas, como Fabre sobre os seus insetos...

Mixuangos, editado pela Livraria José Olympio, apareceu quase silenciosamente, como outros livros de Valdomiro Silveira, que é discreto e tímido como bom paulista. O meio, por sua vez, formado de outros paulistas, também reservados e medidos, não tem ressonância. E por isso é que esse grande contista, tendo glória entre as elites, ainda não tem celebridade entre as massas. Falta-lhe a dose de cabotinismo que hodiernamente assegura o êxito nos carrilhões da publicidade. Faltam-nos, a nós outros que também escrevemos no espaço restante entre as fábricas e as fazendas, os entusiasmos tropicalescos que bimbalham nas torres das igrejinhas.

Há nissso, entretanto, um bem. Os contos de Valdomiro Silveira não são obra apressada que se lance por ambição ou vaidade na voragem editorial, onde desapareça em turbilhões transitórios após rápido boiar de corpos leves e frágeis. São lavores pensados, sentidos e trabalhados com zelo e honestidade, com talento e amor, para que fiquem. E ficarão, como monumentos da literatura paulista, plantados na rocha de Piratininga, sólidos na sua estrutura, luminosos na sua beleza e na sua espiritualidade.

Ainda neste livro, ali postos pelo editor, leem-se referências de Humberto de Campos, Menoti del Picchia, Agripino Griecco, Plínio Barreto, Tristão de Thayde e João Luso, a obras anteriores de Valdomiro Silveira. Referências como ninguém as mereceu maiores no Brasil. Não são palavras de benevolência. Não são gestos de cortesia. Não são expressões de camaradagem. São afirmações de uma admiração férvida que, vindo de onde vieram, bastam para consagrar a reputação de um escritor.

Se S. Paulo não fosse um compartimento estanque no Brasil, Valdomiro seria, há muito, um nome que viveria em todos os corações, de Manaus a Porto Alegre, como o do nosso mais apurado contista regional, que nenhum outro excedeu, em qualquer tempo e em qualquer lugar. E a Academia Brasileira de Letras já o teria chamado ao seu grêmio, com espontaneidade e com empenho, para coroar um valor autêntico, de ouro puro, honrando-se na honra que lhe conferisse, em eleição nascida da mais rigorosa e da mais bela justiça.

Imagem: detalhe da página 6 com o texto

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