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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (8-a)

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No dia 25 de novembro de 1973, o Suplemento Literário do jornal paulistano O Estado de São Paulo dedicou suas páginas 1, 3, 5 e 6 ao centenário de Valdomiro Silveira (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição)
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Imagem: reprodução da página 1 do Suplemento Literário de 25/11/1973

Valdomiro Silveira

Em homenagem a Valdomiro Silveira, cujo centenário de nascimento transcorreu no dia 11 do corrente, o Suplemento Literário reúne neste número colaborações de Bernardo Elis, Tristão de Athayde, Agrippino Grieco, Miroel Silveira e Hélio Damante, nas quais se analisam os diferentes aspectos da obra do autor de Os Caboclos, que é, juntamente com Afonso Arinos, um dos iniciadores da literatura regionalista no Brasil.

Um escritor que tudo sacrificou por uma cultura tipicamente nacional

Bernardo Élis

Entre a última década do século passado e a Semana de Arte Moderna (N. E.: portanto entre 1890 e 1922) (ah, a exigência de marcos!), vários contistas sobressaíram no Brasil, no campo do que se chama regionalismo. Muito vago e contestado, o rótulo regionalismo para nós se caracteriza em dois traços fundamentais.

1 – representa uma forma literária do Brasil tradicional, não urbanizado, refletindo uma sociedade não industrializada;

2 - a camada linguística deste regionalismo está embasada na singularidade dialetal do contexto, numa linguagem singular-rural, enquanto na ficção urbana o estilo nasce da linguagem referencial, do código comum.

Com base nesses traços definidores, as obras ditas regionais se valem de palavras, expressões, modismos, estilo, estruturas próprias da linguagem utilizada pelos integrantes da cultura tradicional, quer sejam no Norte, Nordeste, Sul, Leste ou Centro-Oeste do Brasil. A área de abrangência do regionalismo literário é a mesma configurada por Donald Pierson no prefácio de seu livro Cruz das Almas, onde diz: "Parte considerável do que registramos nessa monografia, sobre a base econológica, a sociedade e a cultura local, é provavelmente característica das populações rurais de todo o Brasil, com exceção das regiões ainda habitadas por tribos indígenas".

Dentre os principais contistas que, além de Valdomiro Silveira (Os Caboclos, Nas Serras e nas Furnas, Mixuangos e Leréias), se arrolam nesse chamado regionalismo, naquele período, citam-se Afonso Arinos (Pelo Sertão),  Coelho Neto (Sertão), Simões Lopes Neto (Contos Gauchescos, e Lendas do Sul), Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e Boiadas) e Monteiro Lobato (Urupês).

Deles, tornaram-se mais conhecidos nacionalmente Valdomiro Silveira, Afonso Arinos e Monteiro Lobato, sendo que dos três foi Valdomiro o menos divulgado. Isso explica-se por vários motivos, desde o fato da tardia edição de seus livros, até o cunho eminentemente dialetal da linguagem que utilizou.

Mas, do exame de sua obra, concluímos que Valdomiro Silveira é um escritor excepcional, que tudo sacrificou à fidelidade a uma cultura tipicamente nacional; não traiu, de concessão em concessão, o ideal de arte que vislumbrava e que conseguiu realizar vitoriosamente.

Seus companheiros realizaram um trabalho muito mais fácil e menos original, pois escreveram num português valorizado por uma requintada técnica estilística, em cujo texto introjetavam, habilmente, vocábulos, expressões ou modismos regionais-rurais. No abuso de tal solução, foram até aquele recurso bastante estapafúrdio de terem duas normas de escrita: uma corretíssima, polidíssima, quando traduz o discurso do autor; e outra marcada pelo dialeto, quando traduz diretamente a fala do personagem regional.

Contudo, a estrutura, o estilo, o espírito da linguagem nunca é verdadeiramente o característico das populações aí integradas. Em virtude do que muito fácil foi aos leitores eruditos e portadores de uma cultura tecnológico-industrial ou cosmopolita entender e sentir a literatura que eles faziam, a qual não fugia aos padrões de linguagem e pensamento que estruturavam o meio de comunicação das classes alfabetizadas.

Homogênea e global – Ao contrário dessa solução de êxito seguro, Valdomiro optou pelo caminho mais áspero, que só um temperamento portador da desambição caipira podia tomar. Valdomiro Silveira utilizou o espírito da linguagem dialetal de uma forma homogênea e global, não só quando falam os personagens regionais, mas quando a narrativa é feita pelo próprio escritor.

Seus contos, pela estrutura, pelo ritmo, pelo tipo de construção frasal, pelas palavras, expressões, espírito e estilo, são elaboradas e construídas com observância cuidadosa da estrutura de pensamento e de cultura do homem regional-rural, ou seja, do caipira.

Naturalmente que isso obrigava muita gente a mudar seus hábitos mentais e, sobretudo, obrigava a gente culta a entrar no universo das camadas pobres, analfabetas, trabalhadoras e marginalizadas do Brasil-rural, as quais sustentavam as nossas glórias de grande produtor de café, açúcar, cacau ou borracha. E, infelizmente, não era muito envaidecedora essa realidade.

De quebra, havia o velho preconceito da língua. Povo colonial, manejando como instrumento de comunicação uma língua importada entremeio negros e indígenas de falares tão diferentes, um dos padrões de nosso orgulho sempre foi falar bem. Falar bem define a posição social. Ora, o caipira ou o dialeto era a utilização do falar incorreto, popular, e isso trazia e traz, de início, uma grande revolta, uma grande intolerância das classes ditas cultas. Tanto isso é verdade que quando se ridicularizava esse dialeto, a obra que assim procedia e procede logo alcança êxito. Era o espírito colonial pondo-se em guarda. Não é por outra razão que a literatura que descambou para o ridículo dialetal – Cornélio Pires et caterva – teve calorosa aceitação.

Malgrado porém isso, Valdomiro Silveira continuava lavrando sua roça. Pertinaz, humilde, consciente. Construiu nesse ritmo toda uma obra na qual o mundo arcaico do caipira está perfeitamente reconstruído com amor e, o que é mais importante, com serena dignidade. Hoje, depois da experiência da Semana de Arte Moderna e do aproveitamento que do coloquial popular fez Guimarães Rosa, já a literatura de Os Caboclos e Leréias não aparece tão imprópria a nossos brios de povo de proveniência europeia e ocidental…

Na literatura nacional, deve-se a Valdomiro Silveira o mérito de haver corajosamente rompido com os "ss", os "rr", os "mm" finais, com a obsessão da gramática normativa portuguesa. Ele valorizou artisticamente uma língua que impera desde o Rio de Janeiro até Cuiabá, passando por São Paulo, e abrangendo o estado do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Sul do Espírito Santo e Norte do Paraná, Sul de Goiás e de Mato Grosso – que, nas linhas gerais, é a língua de cerca de 90% da população brasileira, ontem quase que só rural, hoje infiltrada por toda parte.

Repito o que afirmei alhures: houvesse um suporte político como houve em Portugal em fins do século XII, quando firmou sua autonomia nacional, e o que se chama hoje dialeto brasileiro se erigiria em língua.

Em artigo de 1941, afirmava Rubens do Amaral que "quando estiver formado o idioma nacional, distinto do português, Valdomiro Silveira será um clássico da língua". Embora valiosa sua contribuição ao idioma, não é apenas por isso que sua obra tem merecimento. Seus contos elaborados com a sobriedade dos autores clássicos portugueses dos séculos XVI e XVII, sem, portanto, empenho excessivo dos recursos estilísticos que caracterizam Afonso Arinos, Lobato, Simões Lopes Neto ou H. de Carvalho Ramos, nem por isso deixam de apresentar o que melhor há na literatura brasileira: a simplicidade, a clareza, o despojamento e, acima de tudo, a poesia e a beleza.

Quem se der ao trabalho de pacientemente (e com simpatia) percorrer as páginas dos livros que deixou, aí encontrará as linhas gerais que marcaram e continuam marcando a estrutura da narrativa curta entre nós. Não quero com isso dizer que Valdomiro foi o inventor dessas estruturas. Quero dizer que teve a sensibilidade e a inteligência bastantes para perceber, fixar e conservar a imensa variedade de construção discursiva existente viva na boca do povo e que os demais autores (com exceções) captaram posteriormente desenvolvidas e aproveitadas na prosa dos contistas chamados regionalistas e nela permanecem até hoje através de Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Adonias Filho e outros.

Males de amor – Há bem uma cadeia sucessória que pode ser assim rastreada exemplarmente. Em Valdomiro Silveira são aqueles cromos retratando o sentimentalismo (especialmente amoroso) do caipira homem ou mulher, eterno apaixonado e padecente de males de amor; esse mesmo sentimentalismo reponta em Monteiro Lobato (Colcha de Retalhos, Uma história de mil anos). Outro tema é do medo a fantasmas e manifestações sobrenaturais: Fogo de Batatá dá muito a forma da estória de Pedro Pichorra, de Lobato, e reponta em Corpo Fechado, de Sagarana, para não citar o abundante aproveitamento do assunto nos demais regionalistas.

Assim como em Lobato vislumbramos Valdomiro, em Guimarães Rosa sentimos a presença de Lobato, especialmente em Sagarana, de onde transcrevemos o seguinte trecho (Corpo Fechado) que lembra A Vingança da Peroba: "Era uma apócrifa e abundante família Veiga, de uma veiguíssima veigaria molambomazelenta, tribo de tropeiros fracassados, que se mexiam daqui p'r'ali, se queixando da lida e da vida: 'Um maltírio' -; uns homens que trotavam léguas a bordo de uma égua magra, empilhados – um na garupa, um na sela, mais um meninote no arção – para virem vender no arraial um cacho de banana-ouro, meio saco de polvilho publo, ou uma pele de raposão".

Inegavelmente, Monteiro Lobato (como G. Rosa nesse passo) tem outra perspectiva do caipira, falando dele num tom escarninho que jamais se encontrará nas obras de Valdomiro Silveira, para quem o caipira era o mais belo, o mais digno e o mais merecedor de respeito dos seres da criação.

Isso tem sua explicação. Valdomiro conheceu a sociedade ou a cultura caipira num período em que ela apresentava ainda grande pujança, num período em que sua desorganização ainda não era muito acentuada pelos elementos perturbadores decorrentes da civilização urbana-capitalista-tecnológica, como a viu e como a viveu Monteiro Lobato, ele mesmo profundamente empenhado em promover a transformação da sociedade para o rumo da industrialização e da tecnologia.

Essa desorganização cultural e social abala hoje todo o mundo rural, como são unânimes em constatar autores como Antônio Cândido (Parceiros do Rio Bonito), Emílio Willems (Uma Vila Brasileira), Donald Pierson (Cruz das Almas), Maria Isaura Pereira de Queirós (O Demônio no Catulé) e outros.

Foi a partir dessa ruptura sociocultural sob o impacto da civilização industrial que aos olhos dos habitantes das cidades a cultura caipira começou a se mostrar ridícula, cruel, degradante, na tentativa de adaptar-se aos padrões culturais da civilização urbana. Martins Pena, inocentemente, criou no meio cultural brasileiro o estereótipo do "Labrego de Minas ou o fazendeirão paulista como fonte de riso fácil para o público fluminense", no dizer de Alfredo Bosi.

Como pensa com acerto Antônio Cândido, a vida tradicional sobreviveu aqui "em muitas áreas, embora mais ou menos alterada. Parece difícil que possa, daqui por diante, resistir à expansão capitalista…". O mesmo se dirá da linguagem caipira, mas com uma diferença: com o intenso êxodo rural, o falar rural está invadindo as áreas urbanas e aí impondo suas normas. Está-se adaptando e se tornando muito mais preponderante, como instrumento de comunicação das vastas camadas proletarizadas. Um reflexo disso é que as normas brasileiras de linguagem (o estilo brasileiro) são aceitas muito mais facilmente, como prova a proliferação de livros de ficção e mesmo de estudos, como o de Luiz Carlos Lessa.

Linha valdomiriana – Como não podia deixar de ser, há ao longo da velha história do regionalismo brasileiro uma tradição que permanece, embora o contexto cultural se modifique, permanência que se reflete nos temas ficcionais. Um deles é a maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, na descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas. Nesse particular, Burrinho Pedrês, Conversa de Bois é bem na linha valdomiriana.

Na construção geral do conto enxergamos em São Marcos (G. Rosa) não apenas tradicional tema de feitiçaria mas preponderantemente um estado de confusão mental e emocional que é o sustentáculo de contos como Sonharada, a parte final de Os Curiangos, e vários outros. Não podemos igualmente deixar de relacionar Quarenta Anos (Mixuangos) com Sarapalha, de G. Rosa. Em ambos, é a decadência física, econômica e moral que irmana os seres humanos.

Dos livros de Valdomiro Silveira, o de maior valor, me parece, é Leréias, que tem por subtítulo "Histórias contadas por eles mesmos" Aí todos os contos são narrativas orais dirigidas a supostos auditores que não dialogam com o narrador. Nesse particular, Guimarães Rosa em Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas aproveitou a técnica do escritor paulista. Aproveitando a linguagem coloquial caipira já se afigurava a Valdomiro que a fala seria um elemento essencialmente de criação artística e não apenas instrumento de informação, ou veículo de exposição de ideias, de valor denotativo.

Os contos de Leréias, sem  exceção de nenhum, principiam por um travessão indicativo de diálogo direto, como é o princípio de Grande Sertão: Veredas. Vejamos alguns. Com Deus e as Almas o narrador é o personagem principal, que fala na 1ª pessoa, sob cujo ponto de vista, não de todo onisciente, decorre a história. O tom é de quem recorda fatos passados a alguém que os ouve e que, no conto é a antiga amante do narrador – a Pratinha. O conto se apoia no estribilho: você não se alembra, Pratinha? – recurso com que o autor cria em nós a presença da interlocutora, sem mencioná-la, e ao qual a interlocutora nunca responde. As recordações são demasiado precisas para um fato tão remoto, com os pensamentos encadeados de forma perfeitamente lógica.

A mesma técnica do estribilho é aplicada noutra composição igualmente valiosa – Bruto Canela, que significa Bruto Ciúme, no qual o ritornelo é "Na Chica 'tava só serenando".

Resignado é um conto bem mais complexo, sendo ainda narrativa oral dirigida a auditor inexistente. Seu ponto de vista inicialmente é o do narrador-personagem, mas nele se intercala o ponto de vista do passarinho tietê que funciona como o alter ego do narrador, através de quem o personagem expõe seus sentimentos numa forma direta. Se no começo do conto o tempo é o pretérito, do meio para o fim passa a presente – agora, quando o narrador entra num solilóquio ou monólogo à moda hamletiana.

Aquela Tarde Turva pode ser considerado o melhor conto do autor. Narrativa oral, entestada pelo travessão, contada a interlocutor não participante do diálogo, em tempo pretérito, com visão não totalmente onisciente. As recordações desejadamente exatas e os pensamentos da personagem narradora não se constroem à base do monólogo interior.

Seguindo o modelo de Resignado, o conto apresenta narração feita pelo personagem principal e momentos há em que ele se dirige ao interlocutor mudo, a quem trata invocando o pronome você (vancê). É um artifício que usa para quebrar a monotonia do tom coloquial, ganhar intimidade e tornar o discurso mais direto e real.

Solidão e saudade – Os estados emocionais, talvez pela simpleza infantil das palavras e imagens empregadas, são recriados pateticamente com grande poder poético, descambando para uma fantasia próxima do sonho ou do delírio ou do assombramento, com conotações supersticiosas, como o caso das cabras tocadas pelo misterioso rapaz, com quem o personagem entabula um diálogo não menos misterioso, inclusive na coincidência de estarem mortas ou atingidas pela desgraça quase todas as pessoas por quem ele pergunta ou indaga.

Por fim, atormentado pela dúvida, lanceado pelo tradicional recato caipira em assunto sentimental-sexual, arrisca pedir notícia da amada com quem sonhara durante os anos de solidão e saudade, e em busca de quem voltara à cidade.

Pela expressão chula e canalha, a resposta do informante é de uma brutalidade mortal.

Na parte final, à proporção que o conto cresce em dramaticidade, também cresce o poder expressional do estado de alma do personagem-narrador, embora tudo se faça no plano do lógico e do linear. Sem embargo do ódio, talvez orgulho ofendido, que endurece o coração, o final é de grande ternura, cheio de amor. E a derradeira frase escrita desvenda um mundo que não foi dito, nem declarado.

Aqui a linguagem é menos instrumento denotativo, é menos veículo de informação, para essencialmente elemento de recriação de um mundo artístico (numa contestação às perguntas de Fausto Cunha ao final do capítulo Regionalismo, de A Luta literária).

Nos demais livros, a forma geral das narrativas é do narrador onisciente, que usa a 3ª pessoa, não tendo a linguagem do autor enquanto narrador a preocupação precípua, como acontece em Leréias, de reconstituir todo o universo mental do homem rural.

No conto Truque (Mixuangos), a técnica é diferente: é o diálogo direto, tendo como fio condutor muito frágil a presença intermitente da moçoila, filha do jogador,  a qual se vale da preocupação do pai com a mão de truque para fugir na garupa do namorado. E o aproveitamento admirável das vozes usadas até hoje no carteado rural mais estimado dos caipiras. Se em vez de registrar vozes caipiras houvesse o autor se valido do linguajar urbano, estaríamos (com pouca diferença) em face da técnica hoje tão usada por Luis Vilela e neste não menos louvada.

Nas Serras e Nas Furnas – Frisando ainda a permanência de temas, vamos encontrar O Saudade, que é o contrário justamente de Boi Velho, escrito por Simões Lopes Neto. E por falar de persistência temática, bom é não esquecer Pena de Pato (Mixuangos), considerado por todos os estudiosos do escritor paulista uma de suas mais líricas produções e que, no fundo, é o mesmo motivo da Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis, da mesma forma Amor, que abre o volume de As Serras e As Furnas, é o mesmo tema da solidão humana que serviu de apoio a um dos mais belos e universais contos de Tchekov (1886), Angústia, e que certamente Valdomiro Silveira não conhecia ao tempo da feitura da sua história.

Embora ao tempo que o autor vivia no interior paulista (antes de 1905) ainda não fossem muito contundentes as injustiças sociais, muitos contos são de denúncia de injustiças ou de protestos contra a exploração do homem, como Gunga-Muquixé, Ultimo Corpo e alguns mais prenunciadores do neorrealismo modernista.

Leréias, se bem que póstumo, é inegavelmente o coroamento da experiência literária de Valdomiro Silveira, desde aquele subtítulo – "Histórias contadas por eles mesmos". Parece que é a primeira tentativa de realizar uma prosa artística na língua caipira, o que significa uma coragem imensa em afrontar os guardiões da falsa integridade e incorruptibilidade das belezas e virtudes da Última flor do Lácio.

E pode haver maior glória do que essa de vermos, nós os seus admiradores, seus contos reunidos em antologia e reeditados após 80 anos do aparecimento das primeiras produções?

É o reconhecimento da perenidade de sua arte.

Valdomiro Silveira

Imagem publicada na página 1 do Suplemento Literário de 25/11/1973

Regionalismo e universalidade

"… ninguém até hoje o ultrapassou na perfeição do gênero"

Tristão de Ataíde

Já acentuamos, com respeito a um livro de Afonso Arinos, a importância que tomou em nossa literatura o movimento sertanista. E a fonte maior, se não única, dessa corrente literária é o regionalismo.

Nossa história colonial e monárquica foi uma lenta conquista e defesa da unidade nacional.

A Colônia soube evitar o mal irremediável das colonizações diferentes, e essa unidade de colonização a salvou do desmembramento.

Veio, portanto, o Império encontrar um País, mas teve de formar uma Nação, tarefa igualmente de aproximação e harmonia. Onde o todo perigava não se podia cogitar das partes, senão para trazê-las à coletividade necessária. Se com a República e o seu federalismo político pôde expandir-se francamente esse espírito regionalista, que sempre existiu (basta lembrar a ação das Câmaras Municipais no esforço da independência), mas só então encontrava terreno propício para o seu franco desenvolvimento.

A consciência já fixada de todo permitira, cada vez mais, às parcelas, a consideração de si próprias, de sua importância e diferenciação: daí também data, como não podia deixar de ser, o regionalismo literário. A mentira literária, que o romantismo erigira em dogma, como realizando paradoxalmente a expressão mais sincera dos temperamentos, cedera então lugar à obsessão da verdade – tudo estava no documento, no fato, na visão direta das coisas.

O prestígio secular da fantasia se apagava perante o valor crescente da observação. Já não eram florestas encantadas, criaturas de lenda, incidentes romanescos, estilos figurados que dominavam a literatura, mas o meio ambiente, as figuras reais, as ações possíveis e a verdade das palavras.

E o regionalismo literário nasceu, naturalmente, dessa transformação do espírito público e dessa nova orientação estética, contando com uma longa cópia de cultores, onde se destacam nomes com os de Valdomiro Silveira, Alberto Rangel, Rodolfo Teófilo, Catulo Cearense, Alberto Deodato, Gustavo Barroso, Xavier Marques, Alcides Maia, Hugo de Carvalho Ramos, Simões Lopes Neto, Mário Palmério, Bernardo Elis, Guimarães Rosa.

Um dos primeiros que lançaram, entre nós, esse movimento literário, de Valdomiro Silveira pode-se afirmar, desde logo, que ninguém até hoje o ultrapassou na perfeição do gênero. O primeiro caráter do regionalismo, como o próprio termo indica, é ser estritamente local, tanto na paisagem como nos tipos e na significação. É da concentração do seu âmbito que lhe vêm a força e a repercussão. Não é paradoxo dizer que o regionalismo tanto mais se estende quanto mais se restringe. Achando-se no polo oposto ao da literatura universal, pode chegar, por vias antagônicas, a uma ressonância análoga.

A literatura universal interessa todos os homens, de civilização semelhante, porque contém o que neles há de eterno e comum. Todos a compreendem porque todos nela se reveem.

O regionalismo literário, ainda que em menor escala, em virtude do seu modo de expressão menos acessível, interessa também a todos, porque fixa o que há de absolutamente antagônico entre os vários ambientes e os diferentes tipos humanos. Já não é a afinidade mas a repulsa que prende. Entra em jogo aquela atração dos contrários, que nem só no amor se exerce, estimulada por um sentimento fundamentalmente humano: a curiosidade. Esta procura, com avidez, toda contribuição nova ao conhecimento e à sensação.

E o regionalismo, se o é de verdade, possui um segundo caráter básico: a originalidade. Mas essa originalidade não pode ser obtida por meios arbitrários e muito menos deixada à fantasia do autor. Deve, pelo contrário, provir de um esforço especial de observação e de isenção, que formam o outro requisito primacial da literatura regionalista: o realismo. Esse gênero traduz sobretudo o aspecto exterior das coisas, ao contrário da literatura universal, que o é  justamente porque penetra e exprime o íntimo delas.

O regionalismo é a própria realidade em suas manifestações locais e espontâneas. Desde que nele se sinta a fantasia literária do autor, a preocupação simbólica, filosófica,social ou outra qualquer, da obra, ou a deturpação da realidade por elementos exóticos, perde o regionalismo o seu principal caráter literário.

Pois bem, na obra de Valdomiro Silveira vamos encontrar esses três elementos básicos – realista, original e local. São contos de um extraordinário objetivismo. Por mais que se busque não é possível encontrar a pessoa do autor.

Não considero falso nem paradoxal o conceito de Anatole France, de que o artista, por mais que faça, só consegue traduzir na arte a sua própria alma. Apenas, pode essa alma confundir-se com a vida das coisas alheias a ponto de se as não poder distinguir.

É o caso de Valdomiro Silveira. Se faz caipirismo literário, sem o menor grau de artifício, é que viveu e deixou de viver a vida que anima os seus contos. Viveu, e a traz portanto gravada no coração; deixou de vivê-la, e pôde então observá-la, compreendê-la e traduzi-la, como só é possível a quem olha as coisas de fora e de cima.

Literalmente, sentir é a consciência de ter sentido. Viveu, porém, essa vida com tanta absorção e deixou de vivê-la com tanta lucidez, que nela se dispersou, e a vida que anima esses contos é a da sua alma revivendo, irreconhecível e transubstanciada, no próprio ambiente local.

Não se sente, portanto, o criador nesses quadros sucessivos e flagrantes de absoluta veracidade. As próprias descrições da natureza são feitas em notas tão sóbrias e de tanta propriedade que evocam irresistivelmente o quadro esboçado. Da mesma forma que as figuras humanas vivem livremente nesses contos, parece que a natureza é a própria a manifestar-se, enchendo a obra com todo o áspero encanto de sua vaidade.

Não há quadros poéticos, crepúsculos preparados para receber as melancolias virginais, manhãs de incêndio ou noites de pedrarias, a natureza soturna ou festiva que faz geralmente o fundo dos quadros literários.

Há, pelo contrário, uma natureza dura e incolor, tal que deve seguir antes os olhos dos "caboclos" que nela vivem. Esses "caboclos", por seu lado, surgem ao longo dessas páginas nos seus aspectos menos favorecidos ou carregados. E a própria vida local, trágica por vezes, outras cômica, aqui revoltante de dor ou injustiça, feliz mais adiante, mas quase sempre passiva e uniforme na sua monotonia.

Em certos contos, vem sem que nunca se sacrifique a mais estrita veracidade, atinge a emoção ao mais alto grau de ressonância. Camunhengue, por exemplo, é um conto terrível, na sua atroz sobriedade de linhas. Essa sobriedade é um dos grandes elementos no realismo de Valdomiro Silveira. Não comenta, não se detém em explicações, não acentua os momentos de comoção e interesse. O leitor que sinta com sua alma e penetre com sua compreensão, tudo o que se contém de profundo e original nessa humanidade tão estritamente regional e verídica.

Essa originalidade e esse regionalismo são, como vimos, os dois outros caracteres que apresentam esses contos, ambos derivados da perfeição com que atingem ao realismo. A verdade não é necessariamente original; longe disso. No caso o é, pois espelha sentimentos, raciocínios, costumes, expressivos de uma gente privada de maior contato civilizador, guardando por isso os seus caracteres espontâneos, ainda que simples ou triviais.

Um dos grandes, se não o maior elemento dessa originalidade, está na língua em que é escrita a obra e especialmente na que é empregada nos diálogos e espelha fielmente o próprio falar caipira. O "dialeto caipira", cuja sistematização foi feita por Amadeu Amaral, possui em Valdomiro Silveira seu grande fixador literário. Sempre acompanha sua obra longo e precioso vocabulário, mas o mais saboroso, o mais original, o mais sugestivo, é a própria construção dos períodos e o corpo flexível e perfumado da frase. Quanta forma nova e expressiva de dizer não há de passar dessa linguagem popular para a língua culta!

Em tais livros se reflete diretamente, corajosamente, a grande evolução do português transplantado. Para os que sorrirem dessa língua "abastardada", lembremos o desdém que haveria de votar um filho do Latium, se ressurgisse, às várias corruptelas, hoje enobrecidas e nacionalizadas, do seu formoso idioma.

O tempo geralmente se encarrega de vulgarizar as utopias e os absurdos. Por ora, a linguagem dos "caboclos" de Valdomiro Silveira não passa de um dialeto, mas de um saboroso dialeto.

Reprodução viva e palpitante da realidade, perfeita concentração e expressão local, originalidade espontânea e pitoresca, tudo concorre para fazer dos contos de Valdomiro Silveira uma pequena joia modelar de regionalismo literário.

Membros do governo Armando Sales Oliveira no dia da posse (21 de agosto de 1933). Valdomiro Silveira - quarto da esquerda para a direita - é o secretário da Educação e da Saúde Pública

Imagem publicada na página 3 do Suplemento Literário de 25/11/1973

Waldomiro Silveira

Agrippino Grieco

Grande é o mérito regional e dialetal da obra de Valdomiro Silveira.

Sem comichão de glória, sem procurar gerir comercialmente a sua fama, sem fátua arrogância intelectual, simples, modesto e avesso à ruidosa publicidade, satura-se da realidade próxima e vivente e, com um admirável talento narrativo, sempre conciso e preciso, faz-nos ver, claramente vistas, a sua terra e a sua gente.

Esse efigiador de almas sertanejas, escritor de alma vegetal, não é um empresário de fantoches rurais, talhados pelo último figurino andaluz ou normando e movendo-se em cenários de papelão pintado, num ambiente de grosseira cartonagem de teatro. Tudo vive em seus trabalhos. Plástica e temperamento de personagens reais.

Comparsaria de medíocres: o inevitável meio termo, o animal humano, tal qual é. Mas também figuras de exceção, bem marcadas por Deus ou pelo Diabo: facínoras sanguissedentos e matutos dotados de uma espécie de santidade filosófica. No elemento feminino, raparigas que parecem saídas de um retábulo religioso e velhas bruxas dignas dos mais extravagantes caprichos de Goya.

Seu sertão não é de cromolitografia e seus caboclos não são caboclos de salão, engravatados e endomingados, para uso dos que só admitem literatura elegante, aristocrática. Nada de pastores de tapeçaria ou de vitral. Os tipos desse auscultador da vida são como ele os encontrou em seu recanto: ingenuamente bons ou ingenuamente ferozes.

Desconhece o preconceito do belo exclusivo: só obtém o ideal à força de realismo e, se encontra a beleza, é porque começou por procurar a verdade.

Isto, aliás, reconhecem os nossos melhores julgadores, tal o meu querido Ronald de Carvalho, que, ainda há dias, em palestra comigo, o deu como o precursor de todo o sertanismo às direitas que se faz por aí. Vicente Licínio Cardoso acha em sua prosa um ritmo superior ao das mais lindas trovas populares e acha mesmo que muitos dos nossos poetas acadêmicos morrem em confronto com esse lirista sem rimas.

Sim. Todos os elogios merece o prosador a quem Euclides da Cunha leu o manuscrito inédito dos Sertões, sabendo a que seguro juiz literário se dirigia, o contista cujos trabalhos Olavo Bilac quase chegava a decorar.

Com essa ternura pela terra que é a seiva dos seus contos, transforma-os, graças a uma nobre amizade amorosa da inteligência, em admiráveis resumos humanos, impregnados de ironia e piedade, de malícia e melancolia e, acima de tudo, dessa fina sedução que é como um sorriso posto no papel.

A imitação do real converte-se-lhe em criação contínua. Romântico em várias passagens, porque o real também comporta a sua dose de romantismo, sobram-lhe efeitos de comicidade, não tanto de palavras, como de situações e caracteres. Traços típicos que definem temperamentos, atitudes que nossa memória visual retém para sempre.

Gosto, medida e delicadeza mesmo ao tratar de assuntos rudes. Protagonistas e figuras episódicas igualmente apanhados em flagrante. Embora evite copiar os vinhateiros galantes de George Sand ou os vaqueiros arcadianos de Gonzaga, une encanto e força e sabe infundir não sei que secreta poesia nos tipos em que há superabundância de vida animal.

Certo candor sutil, certa frescura menineira de impressões como só as possuem os líricos autênticos. Alguns dos seus garotos são minúsculos faunos perdidos nos matagais paulistas, junto à trapoeraba, ao "picão florescido", ao "caruru de semente" e "ao ora-pro-nobis com um grande viço de fartura e de sombra“, sob o voo de "algum tísio ou patativo assustado", às horas mais quentes, em que se levanta da estrada "uma fumaça clara com vivos de fogo".

Quanta graça nos pequenos namorados caipiras, que já se casam de brincadeira nos brincos infantis tal a simpática Jurutí, que crescera ao lado do airoso Belarmino, "com ele brincara o surupango e o que-pau-é-este, perseguira os ninhos de tico-tico pelo piquete de grama-seda, trepara nos arvoredos, montara nos poldros e nos garrotes, armara juquiás de taquara-póca, em cujos filhos muita rolinha e muita pomba-cascavel entrou para nunca mais sair"!

A par dessas figuras de idílio agreste, velhos roceiros solenes como patriarcas, criaturas que parecem emergir, como troncos centenários, da luz e da paisagem locais, parecem feitas da mesma composição geológica do sítio em que nasceram.

Dissimulando-se à sombra das personagens, procurando fazer arte honestamente objetiva, ele nos oferece sempre lindos instantâneos morais que são verdadeiros achados e prosa simples, de linda prosa antológica. E, sem intenções pedantes, transmite a tudo o que escreve, quase sem o saber, quase sem o querer, um valor filosófico e etnográfico que lhe converte a obra de arte em precioso documento científico.

Esse civilizado, amigo dos ignorantes, culto sem ser livresco e amando folhear a gente do povo, seus livros prediletos, conseguiu aclarar como ninguém aqui o drama e a comédia rústicos. No gênero é o nosso clássico. Descobriu a sua maneira e trouxe algo de novo às nossas letras esfalfadas na imitação aos modelos europeus. Pela seriedade, fidelidade e intensidade artística, ultimou aqui uma obra regional análoga à de Giovanni Verga na Sicília.Artista na plena posse de si mesmo, ainda longe da decrepitude mental, Valdomiro Silveira continua a produzir e é em seus contos que, entediados pelos sertanistas da Avenida Central, vamos refrescar os olhos e o coração desejosos de uma verdade brasileira.

Verdade não raro melancólica e que se nos transmuda-se assim podemos dizer – em amargo refrigério, como ao lermos o conto de piedade tolstoiana, sobre o mísero Cancã, escorraçado da sua lavoura por um administrador voraz, exatamente quando o feijão, por ele plantado e cuidado, "enrodilhara bem, alastrara pelo chão, pesado de vagens cheias". Que lacrimosa amargura a do pobre-diabo, expulso do seu pequeno paraíso verde!

"E (vejam este fecho inolvidável) houve tanta lágrima, e tanta queixa e tanta importunação, que mais tarde, como já desse de pretejar a barra do céu, e a teima não cessasse, foi preciso chamar uma escolta de seis soldados que mandou sair aquele vagabundo, desaforado e cabeçudo, para além das porteiras da fazenda…"

A Manhã, 28/6/1927.

Valdomiro Silveira aos 7 e aos 17 anos e em 1904, com sua noiva Maria Isabel Quartim de Moraes

Imagem publicada na página 5 do Suplemento Literário de 25/11/1973

100 anos de literatura

Miroel Silveira

Neste 1973 não se comemora apenas o centenário de nascimento de meu pai, Valdomiro Silveira, mas também o centenário de publicação de Nuvens Multicores, livro de poesias com que meu avô João batista da Silveira iniciava a transmutação de uma tradicional linhagem agrária em clã de escritores (v. Spencer Vampré, Memórias para a História da Academia de São Paulo). Essa linhagem valparaibana remonta documentalmente muito para trás do bandeirante Carlos Pedroso da Silveira, que em 1700, na cidade de Taubaté, exercia o cargo de provedor da Real Fundição (Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genealógica, tomo II, de Pedro Taques). E apresenta uma peculiaridade simpática, demonstradora do forte arraigamento dos vínculos familiares: em livro de registros que passou de geração a geração desde 1730 (v. Um Precioso Manuscrito in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XXXIII, 1937), aparecem anotados todos os nascimentos, casamentos e mortes ocorridos de descendentes a descendentes, até nossos dias.

Mas em 1873, antecipando-se ao próximo declínio do Vale, João Batista da Silveira já abandonara o torrão e viera para São Paulo, enfrentando corajosamente seu curso superior, já casado e pai de dois filhos, o segundo dos quais era Valdomiro.

Além dos versos de Nuvens Multicores publica Vanguerve, poema herói-cômico em cinco cantos e estrofes camonianas, e a sátira política A União e o Barão. Inventivo, brilhante, hábil orador, interessava-se também por Medicina, chegando a escrever em francês um livro que autoridades científicas da época receberam com louvores, tanto aqui quanto na Europa – Le Fantôme de la Diathèse.

Seus seis filhos varões seguiram-lhe os pendores literários: Valdomiro, Alarico, Agenor (a Trindade de Ouro, como lhes chamavam), Nestor, Breno e João. Nestor, inteligente e estudioso, já fazia os preparatórios de Direito, quando aos 16 anos faleceu vítima da epidemia de febre amarela que lavrou em Casa Branca. Breno também morreu jovem, já segundo-anista da Faculdade do Largo de São Francisco, onde, brilhante orador e jornalista, líder estudantil, deixou  inúmeros e saudosos admiradores. Breno secretariava também a revista Cri-Cri, e trabalhava n'A Tribuna de Santos, a convite daquele jornal, deixando bem marcada na imprensa a sua passagem.

Valdomiro é o escritor decisivo de nosso regionalismo, "o seu clássico", conforme o definiu Tristão de Ataíde. Alarico sempre foi o cidadão probo e atuante, dono de vasta cultura que prestou os mais relevantes serviços à administração seja municipal, estadual ou federal durante todo o governo Washington Luís. Realizou uma obra monumental, a Enciclopédia Brasileira, de que o Instituto Nacional do Livro nos deu apenas uma primeira e pálida amostra: parte da letra A do Dicionário de Brasileirismos, registro fiel e erudito de todas as especificidades em que nosso idioma se apartou do Português. Agenor cultivou primorosamente o idioma (os Quatro Contos, em linguagem quinhentista; colocação dos pronomes) e fez poesia maior, sendo seu este soneto de que ouvi Martins Fontes indagar a Valdomiro: "Não será este o mais belo soneto da língua portuguesa?

Antes de vir ao mundo eu era nada.

Na noite imensa do não-ser jazia;

Porém, não sendo, nada me afligia.

E tudo era uma paz abençoada.

 

Hoje sou. Que é que sou, nesta morada

Onde se permanece um breve dia,

E onde raro se logra uma alegria

Que não venha de dor acompanhada?

 

Humilde ser, serei somente enquanto

M'o permitir aquele prazo incerto,

Em que é forçoso mergulhar no olvido...

 

Se eu amanhã faltar, não haja prantos.

Das misérias terrenas já liberto,

Ser-me-á não-ser o prêmio de haver sido.

João (João Silveira Júnior) fez poesia e teve larga atuação no jornalismo, secretariando durante anos o Correio Paulistano. Seu filho Breno (Breninho), iniciando a terceira geração dos Silveiras escritores, espalhou talento por jornais e revistas, em crônicas, contos e poesias, fixando-se depois na arte de traduzir, a propósito da qual publicou um livro modelar.

Duas filhas de Alarico, Dinah Silveira de Queiroz e Helena Silveira, passaram a formar na primeira linha da ficção brasileira, presentes também vigorosamente no jornalismo e na TV. Um filho de Agenor, Cid Silveira, além de acatado economista, é poeta, como o pai.

Na faina do porto gemia o guindaste,

jogando no pátio de pedras, de xofre,

a mercadoria pendendo-lhe da haste,

dezenas de sacos de pedra de enxofre.

 

Os trabalhadores das docas, externos,

não usam camisa, mas faixa na ilharga.

Trabalham nas furnas do maior dos infernos,

porões tenebrosos dos buques de carga.

 

O ar é empestado, sufoca, dá nojo

o pó amarelo, pesado, que dança

por cima dos homens que arrancam do bojo

do barco, esse enxofre que ao porto se lança.

 

E o porto, ressoante de silvos, é teatro

de cenas medonhas, protestos, clamores!

Mas como o cargueiro sairá logo às quatro

prossegue o trabalho dos estivadores.

 

Gaivotas inquietas esvoaçam à tona

das águas oleosas do estuário parado.

E finda o serviço só quando, com a lona

se cobre o profundo porão esvaziado.

 

Mas logo no dia seguinte, de novo

começa o trabalho, com pragas e cantos.

É heroica a existência dos homens do povo,

dos trabalhadores das docas de Santos.

(Poesias - Livr. José Olympio Editora, 1944, Rio).

Apenas dois filhos de Valdomiro seguiram a carreira literária: Isa Silveira Leal, a quem a Câmara Brasileira do Livro por três vezes distinguiu com o Prêmio Jabuti, pelos seus romances para o público juvenil, e eu. Um sobrinho nosso, ensaísta e contista, Ênio Silveira, mais conhecido por sua atividade editorial, assume agora, já na quarta geração, essa missão de continuar pensando e escrevendo, refletindo e propondo. Um estigma vocacional que vivemos com orgulho e humildade, voltados para os outros que, não sendo de nossa família, também são nossos irmãos.

Visita de Olavo Bilac à cidade de Santos no dia 15 de outubro de 1915, durante a qual houve festa no Teatro Moderno e Valdomiro Silveira foi o orador. Na foto (sentados), da esquerda para a direita: Heitor de Moraes, Valdomiro Silveira, Martins Fontes, Amadeu Amaral, Olavo Bilac, Alfredo Pujol e José de Freitas Guimarães. Atrás, entre outros, Roberto Moreira, Armando Prado, Nilo Costa, Octacilio Gomes e Gelasio Pimenta

Imagem publicada na página 6 do Suplemento Literário de 25/11/1973

Valdomiro Silveira e o nacionalismo caboclo

Hélio Damante

Alarico Silveira, no seu conhecido prefácio a Os Caboclos (SP, 1920), feito sob a forma de carta ao editor monteiro Lobato, datada de Santos, 23 de julho 1920, atribui a Valdomiro Silveira o título de "criador da literatura regional do Brasil"!. Isto porque até 1896, quando apareceu no Diário Popular seu primeiro conto, Rabicho, não consta a Alarico "que nenhum escritor brasileiro manifestasse qualquer pendor para o regionalismo".

Não é bem assim. Para não sairmos dos limites de São Paulo, e bem antes dele, Paulo Eiró, António Joaquim da Rosa (barão de Piratininga), o general António Couto de Magalhães, José Joaquim Machado de Oliveira e Júlio Ribeiro (morto em 1890), fizeram literatura regional paulista, embora não cultivassem o conto e empregassem, geralmente, a linguagem clássica.

Como contista regional é que Valdomiro Silveira parece deter o pioneirismo em São Paulo, trazendo à cena o linguajar caipira, como se verifica das datas de seus contos. Precedeu assim a Cornélio Pires (mais moço do que ele), cuja Musa Caipira é de 1910. Mas, do mesmo modo que Lobato e ao contrário de Cornélio e Amadeu, revela certo pudor da palavra "caipira", preferindo em seu lugar "caboclo".

Com o desenvolvimento de São Paulo, o termo caipira, antes motivo de certa ufania, como o fora o mameluco das priscas eras, tornara-se pejorativo. Um livro, na época, chamado Os Caipiras, seria simplesmente considerado anedótico. No próprio vocabulário que, a exemplo de Cornélio em sua Musa, acompanha Os Caboclos, V. S. define-o com esta conotação que só agora vai desaparecendo: "CAIPIRA – o homem ou a mulher que não mora na povoação; que não tem instrução ou trato social; que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público". D'onde caipirada, como ação de caipiras. E entretanto, esse extrato do nosso povo, cuja resistência dialetal às mudanças sociais é notável, não se limita ao tabaréu. Produziu uma inteligência, um clero, uma classe política…

Por outro lado, soa a palavra caboclo – que literalmente significa mestiço – muito mais poética e forte do que o prosaico caipira, que não tem nem mesmo o correspondente feminino, tão doce, de cabocla ou caboclinha (que se subentende morena, moreninha), por sua vez glorificada por Ribeiro Couto.

O recurso literário, porque foi um recurso literário, não rouba a V. S. o lugar que lhe cabe de "epígono da literatura regional em São Paulo". Frase de Amadeu ao dedicar-lhe, ao lado de Alberto de Faria e Cornélio Pires, O Dialeto Caipira, também de 1920. Com Amadeu, Cornélio e Lobato, Valdomiro traria para a literatura, quiçá para a imortalidade, um singular tipo humano e seu universo de valores.

Nem se perca de vista, que o caipira era uma imagem do brasileiro autêntico na cosmopolita São Paulo, a qual se ofuscava pela projeção súbito ganha por esse outro esquecido da civilização litorânea afrancesada: o sertanejo. Talvez em redescobri-lo e apresentá-lo ao mundo, em suas virtudes e defeitos, estivesse uma revanche paulista, a opor o nosso roceiro à figura glorificada do sertanejo – "antes de tudo um forte" – emergindo como um gigante das páginas de Os Sertões, da obra de Arinos ou de Coelho Neto.

O caipira Valdomiro – Valdomiro Silveira era nele mesmo um caipira, refinado pela Academia de Direito, as lides forenses e políticas, o convívio dos clássicos e da intelectualidade da época, que tinha em Santos, sua terra de adoção, uma verdadeira elite. Não negaria, o vale-paraibano de Cachoeira, suas raízes na "serra-acima", raízes ainda da que é certamente a mais numerosa (e das mais notáveis) família literária do País, os Silveira de primeira, segunda e terceira geração.

No seu delicioso livro de memórias, Isabel quis Valdomiro (SP, 1962), Maria Isabel Silveira, esposa de Valdomiro e que se estreou aos 80 anos, conta um episódio, que ilustra a tese. Os antepassados dos Silveira tinham o costume, típico do paulista do Interior, de anotar em cadernos as principais ocorrências da vida familiar. Seria talvez uma reminiscência de suas origens nobres (os Silveira estão na Nobiliarquia de Pedro Taques). Tais anotações, como as "cadernetas de venda" e os registros dos negócios em geral, constituem repositório, não de todo explorado, da história social de nossa gente.

Assim encontramos no citado caderno este registro, transcrito por Isabel (p. 180), feito por Luís Antônio da Silveira, avô de Valdomiro, sobre o nascimento do pai do escritor na Vila da Cachoeira: "Naçeo meo Filho João no dia 24 de Fevereiro de 1850, forão seos Padrihos meo cunhado Joaqm Franco de Toledo e madrinha a mulher do mesmo".

Fiel às origens, Valdomiro Silveira abarca como escritor os horizontes de seu vasto mundo, que se ia despertando pelo apito-do-trem e logo mais o ronco dos motores. Assiste, pois, razão a Alarico quando, na citada carta-prefácio, assinala que a linguagem do povo roceiro captada pelo contista, "aquele forte pico dialetal", que constitui inestimável contribuição à moderna Sociolinguística, compreendia uma área "passante de 200 mil quilômetros quadrados". Toda a área velha do Estado e trechos do Sul de Minas, divisas do Paraná e Norte fluminense.

A área onde floresceu a civilização caipira, de que V. Sa. Seria um dos mais autênticos intérpretes.

Brasileiramente com "V" – Escritor festejado desde a última década do século passado, o regionalista Valdomiro Silveira só aparece em livro em 1920. Não é uma hipótese descaroçoada de que a Guerra tenha-o espicaçado a reunir sua obra literária, como uma afirmação de nacionalismo. Alarico Silveira (cit.) emprega, com outras palavras, a frase hoje em voga da descoberta do Brasil pelos brasileiros: "vai ensinar muita coisa do Brasil aos brasileiros de agora". Nem parece outra a razão de ser da obra definitiva do contista, desdobrada em quatro títulos.

Depois do indianismo, do romantismo e do ufanismo, a seu tanto melífluos, surge sob a capa do regional a procura de uma afirmação nacionalista, tendo como objeto o homem brasileiro autêntico e sua linguagem viva. Toda uma escola já se formava nesse rumo, aos embates da campanha de Bilac e da Guerra, que dava razão à pregação do poeta. Valdomiro Silveira faz-se um dos seus expoentes, além de precursor, talvez o mais típico no campo do regionalismo paulista.

De que havia nacionalismo nisso, prova-o a sua preocupação de assinar o nome brasileiramente com "V" e não com o "W" saxão ou germânico. Guardo entre os papéis de família um velho testemunho desse zelo: a carta que escreveu em 1919 a meu pai, Francisco Damante, então mestre-escola em Bom Jesus dos Perdões e estreando-se como folclorista. Até aqui inédita, reproduzimo-la, para concluir, numa homenagem ao centenário do inconfundível a. de Os Caboclos:

"Santos, 20-III-1919

"Meu caro confrade, sr. Francisco Damante:

"recebi há dias e li com muito prazer, a sua interessante brochura Na Roça. Alegra-me ver que há patricios de talento, como você, empenhado em fazer valer, nas letras, a belleza de nossa vida rustica e a vivacidade do falar caipira.

"Dou-lhe os meus parabens pelo exito da estréia. Agradeço-lhe, de coração, a gentileza da offerta e a generosidade das palavras que contêm a sua dedicatoria. Só lhe peço que nunca mais escreva o meu nome, germanicamente, com W…

"Amº e admº, Valdomiro Silveira".

"Peço que nunca mais escreva meu nome, germanicamente, com W..."

Imagem publicada na página 6 do Suplemento Literário de 25/11/1973


CRONOLOGIA

1873 – A 11 de novembro nasce Valdomiro Silveira no Vale do Paraíba, em Senhor Bom Jesus da Cachoeira, Termo de Lorena, hoje Cachoeira Paulista. Seus pais são João Batista da Silveira e Cristina Carlinda de Oliver Silveira. Do lado paterno tem por avós o capitão Luís Antônio da Silveira e Maria da Conceição de Toledo (que são primos). E do materno, o médico espanhol Fernando de Oliver e Alzamora e a mineira Aureliana Ferreira de Magalhães.

1880 – O pai João Batista forma-se em Direito. Sendo nomeado promotor público, parte com a família para Casa Branca,pequena cidade a 266 km da capital paulista. Valdomiro, com 8 anos, começa a tomar contato com a natureza e o homem da roça.

1887 – Aos 14 anos, Valdomiro publica no Bem Publico de Casa Branca o seu primeiro soneto, A Estátua.

1890 – Daí em diante, traz a público ora versos, ora prosa. A 17 de setembro aparece a sua poesia Convite n'O Estado de São Paulo. Estuda os clássicos portugueses, Botânica e Ornitologia. Escreve em jornais do interior crônicas sobre Casa Branca, sobre assuntos políticos ou literários.

1894 – Publica no Diário Popular de São Paulo o primeiro conto caboclo, Rabicho, a 13 de setembro, sagrando-se pioneiro do regionalismo literário.

1895 – Com quatro distinções, é eleito orador da turma pelos colegas, forma-se em Ciências Jurídicas a 10 de janeiro e Ciências Sociais a 8 de abril. Parte para Santa Cruz do Rio Pardo, sertão a esse tempo, lá exercendo a promotoria pública durante dois anos. Envia uma narrativa sertaneja ao matutino carioca O Paiz, que a publica na primeira página. Alguns contos endereçados a Bilac também são publicados em A Bruxa e O Filhote da Gazeta de Notícias, do Rio.

1897 – Todos os contos d'Os Caboclos, Nas Serras e nas Furnas, Mixuangos e Leréias, ele os escreveu entre 1895 e 1906. Excetua-se Desespero de Amor, especialmente composto para a Revista do Brasil, em 1916. E cinco contos produzidos já no fim de sua vida, em 1936, para completar o livro Leréias: Na Ilha da Moela, Ué!, Bruto canela!, narrativas caiçaras. Aquela tarde turva passa-se em Cubatão. Cantador, são reminiscências de Casa Branca relatadas entre os jacatirões da serra de Santos. Valdomiro colaborou durante anos n'O Estado de São Paulo e n'A Tribuna de Santos, escrevendo contos e crônicas.

1899 – Conhece em S. José do Rio Pardo "Euclides da Cunha, um admirável indivíduo…", e se torna seu amigo.

1905 – Casa-se com Maria Isabel Quartim de Moraes e fixa residência em Santos. Valdomiro aceita o convite de Martim Francisco para juntos trabalharem.

1906 – Conhece Martins Fontes, que fica sendo seu grande amigo.

1909 – Fundada, também com o seu concurso, a Academia Paulista de Letras, nela ocupa a poltrona n. 29, tendo por patrono Paulo Eiró.

1920 – É editado o seu livro Os Caboclos por Monteiro Lobato e C.

1928 – 2ª edição d'Os Caboclos pela Cia. Editora Nacional.

1932 – É em Santos o líder civil da guerra constitucionalista. Valdomiro se torna presidente da Federação dos Voluntários em Santos.

1933 – Com grande votação, é eleito deputado pela "Chapa única por São Paulo Unido". Mas desiste da cadeira à Constituinte Federal por ter sido convidado pelo dr. Armando de Sales Oliveira para a Secretaria da Educação e da Saúde Pública de seu governo. Toma posse em agosto. A 21 de dezembro passa para a Secretaria da Justiça e da Segurança Pública.

1935 – A 2 de abril solicita demissão desse alto cargo. E a 8 de abril assume a cadeira de deputado à Constituinte Paulista para que fora recentemente eleito. Mais tarde ocupa a vice-presidência e a presidência da Assembleia Legislativa do nosso Estado.

1937 – Publica o livro Mixuangos – Livraria José Olímpio Editora. Perde o seu querido amigo Martins Fontes no mês de junho. A 10 de novembro a ditadura getulista consuma um novo golpe fechando as casas de leis. O escritor paulista torna à sua casa à beira-mar.

1941 – Não logra ver cair a ditadura, pois vem a falecer a 3 de junho. É sepultado no cemitério do Paquetá, em Santos.

1945 – É publicado seu livro Leréias, histórias contadas por eles mesmos, pela Livraria Martins Editora.

Veja mais:

Conto Bocó-de-mola, de Valdomiro Silveira, também publicado neste suplemento

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