CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA -
Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (5-B)
Em uma segunda-feira, 25 de
junho de 1906, o jornal paulistano O Estado de São Paulo publicou, em sua primeira página, este texto de Valdomiro Silveira (Acervo
Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):
Imagem: reprodução parcial da página com o
texto
Crônica
Este Vicentão, acabado a tiro de arma
de fogo em Pirituba, há dias, não é o primeiro e não será o último dos que veremos morrer no pleno exercício de uma valentia aterrorizadora. Entrara
numa venda, com ares de provocação aos circunstantes, e gozava a felicidade de haver-lhes posto grande medo, quando, no galarim do entusiasmo,
afirmou que dali não sairia sem ter esfaqueado a um diabo qualquer.
Se estavam diabos por ali,não é coisa perfeitamente averiguada. Mas um dos circunstantes, por menos
diabo que fosse, não quis ser o qualquer ameaçado por Vicentão: esgueirou-se entre os mais, com todo o tento possível, e, como lá diz essa boa gente
da Água Redonda, paragem onde o fato se dava, abriu o pala.
Vicentão, a crer o que dizem as folhas, não tinha ojeriza especial a quem quer que fosse: mas,
possuído de fúria geral e tumultuosa, entendeu que o fugitivo devia ser o dono da carne a retalhar. Lançou-se empós dele, que saltou uma cerca e
atrás da mesma se escondeu em dois credos, e ia seguindo pela estrada, a procurá-lo com afã.
O fugitivo, porém, teve sorte: porque, na estrada, quando era menos de esperar, apareceu o coitado
de um outro, que não era santo da devoção do perseguidor, e ouviu logo as do cabo. Este pobre coitado, Athanasio de nome, foi perguntado se queria
morrer, e ali naquele lugarzinho: não queria, e afastou-se.
A pergunta era escusada: Vicentão estava resolvido a não se preocupar com a resposta, nem com a
ação do outro, e cresceu contra ele, disposto aos últimos extremos. Athanasio atirou-lhe, a revólver: e Vicentão, que não era homem de sucumbir a
dois arrancos, caminhou ainda uns setenta passos e caiu agonizando.
O caso é um caso simples de noticiário: venhamos nisso. As pessoas que nele figuram, por humildes e
desconhecidas, não levantam em torno de si a poeira doirada que acompanha os grandes e poderosos. A morte do valentão, embora trágica, não saiu
muito da craveira em que se costumam dar as mortes que tais. E a própria estação do crime, notável apenas por ter sido o campo de experiências
admiráveis de um dos homens de mais valor que ainda tenhamos - a própria estação do crime é de secundária importância, pequenina e modesta.
Mas lá se vai, com este Vicentão, baleado a tempo, um sujeito que nos fará não pequena falta. Já
deram cabo do João Brandão, certo dia, numa tocaia ao perto do Jaguary; dizem que o famoso Dioguinho foi liquidado num porto do Mogi-guaçu; o
Quatro-paus teve adverso fado, e sumiu para donde se não volta: qual o tutu que nos resta?
Encarece-se na tradição, valha a verdade, quanto fizeram ou mandaram fazer aqueles homens: do João
Brandão, que se ocupava costumeiramente no furto de animais, contavam façanhas que ele nunca pensou em cometer; do Dioguinho, cujos primeiros
delitos foram fatos de pouco alcance e cometidos com toda a razão, chegaram a assegurar que era gatuno comum; e do Quatro-paus, indivíduo mais
andejo talvez que ofensivo, disseram coisas do arco-da-velha, não imaginadas por ele, decerto, nem nas horas dos mais ardentes sonhos...
Este Vicentão era um homem necessário. Pelas noites intermináveis que agora temos, choradas de
chuva e desconsoladas de frio, o nosso povo da roça com certeza se ajuntaria ao redor das fogueiras, porque a coberta quente é sempre escassa por
esses lares de além, e boquejariam nas proezas do negralhão fabuloso. As mulheres, costurando ou fiando (há quem fie ainda lá fora, vejam vocês que
coisa!), interromperiam a faina, por um instante, e olhariam para o mistério carrancudo das moitas e das capoeiras, com a viva indagação dos seus
olhos muito abertos. E as crianças, reparando nelas, delas se chegariam a mais e mais, um pouco arrepiadas e um todo-nada trêmulas, até que o sono
de Deus as deixasse em ponto de serem levadas para o sereno esquecimento das nove horas de cama.
A safra de raízes não foi das mais abundantes: havê-las-á, contudo, para a fogueira de São Pedro,
ainda. Mas histórias? mas comentários? mas sustos? Disso já não haverá mais e é pena: as narrações temerosas a respeito dos outros já não
impressionam, porque são velhas, e a que se fizer sobre Vicentão já não causará pavor, porque ele não pode surgir, do escuro da noite, entre os
maciços da samambaia ou no sapé das taperas.
Mas não é triste que assim seja?
Valdomiro Silveira. |
Em outra segunda-feira, 30 de julho
de 1906, o mesmo O Estado de São Paulo publicou, em sua primeira página, este texto de Valdomiro Silveira (Acervo
Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):
Imagem: reprodução parcial da página com o
texto
Crônica
É coisa quase santa o remorso. Por
estas ou por semelhantes palavras, os melhores doutores da Igreja o louvam, chegando algum a dizer dele que, bem dirigido e ponderado, pode vir a
ser o começo de uma vida justa, quando não a reforma e o conserto de um bom espírito levado a extravios.
De Arsenio, por exemplo, que fora compelido francamente ao deserto por uma voz misteriosa, e que lá
se abalizara na prática das mais completas virtudes, de Arsenio, limpo ermitão, se diz que um dia pecou horrendamente contra a carne. A vítima de
seu pecado foi certa moça conduzida, para a aprendizagem do bem, ao ermo em que ele vivia; aterrorizado pelo que fizera, juntou pecado a pecado e
crime a crime, dando a morte à pobre moça, que assim desapareceu de vez, não podendo acusá-lo a ninguém.
O predestinado monge, contudo, foi em tanta maneira arrependido do que praticara; sentiu lá no
coração, tão a dentro, as penas do remorso; chorou tão amargas lágrimas; rezou tão contínuas orações; cometeu tão extremados benefícios aos que dele
se acercaram depois: que por santo foi tido afinal, como santo morreu, e tem honras de santo pela cristandade.
Mas deve-se chamar a isto um remorso oportuno: chegou a tempo e hora, sem manchas de negro e sem
sorvar, como os frutos ainda verdes, sem pedaços mirrados e secos, à maneira dos excessivamente maduros. Melhor conheceria a doçura do bem fazer e
as delícias de uma consciência repousada quem, de repente, quando menos podia esperá-lo, se atirou à profanidade de erro máximo e tentou encobri-lo
a poder de monstruoso e bradante delito.
Vimos nós, entretanto, aqui há dias, um remorso deslocado e temporão. Fulano, empregado da Central
corre ao posto do Braz com o fim resoluto de contar ali coisa de vulto: seus modos, seu olhar, seu cabelo, talvez arrepiado, estão a denunciar um
homem cujo espírito anda agora vertiginoso. Não achou quem procurava; demanda, quase a correr, o delegado de que necessita; a voz,
atropelando-se-lhe na garganta, custa a vir e vem chorosa; enfim, apaixonado e cheio de tristeza, entrega-se à prisão porque acaba de matar a
Beltrano, guarda-freio da mesma Central.
O delegado, com saber diariamente de mortes de toda a categoria, manda lavrar o auto, detém o
confidente, destaca, para vários pontos, agentes policiais, que vão descobrir Beltrano, ainda meio apalermado, é certo, mas vivo e são como um pero.
Beltrano explica em duas frases o acontecido: topando com seu inimigo Fulano, onde quer que fosse, este, colhido de medo pânico, deita a correr e
dispara-lhe cinco tiros de revólver. Logo cinco de pancada, e que não o atingiram!
Rebuscarão os homens da lei a fria verdade nas duas narrativas: na do que se ofereceu à prisão, na
do que foi o atirado. Uns pretenderão que o medo de Fulano, assim contado, veio depressa demais e com tiros também demais; estes darão por certo que
Fulano, agredido, não teve remédio senão usar os extremos da defesa; e a uns e a outros a lei deparará alguma guarida, embora pequena, de onde
acusarão ou defenderão a seu sabor...
A nós o que nos pesa e molesta é o ter sido o remorso temporão. Se houvesse para ele justa causa,
correria tudo bem; o réu, apresentando-se e declarando-se, já tinha meia absolvição como é de estilo, e para o diante ninguém ousaria lançar-lhe em
rosto que foi um matador vulgar. A consciência, a princípio amargurada como a de todos os que não estão afeitos a incursões no código penal,
ir-se-ia aquietando aos poucos até sossego absoluto: a mes-[...(linha ilegível no original)]
rebates de arrependimento desarrazoado.
Mas o inimigo, que ele julgava morto e remorto (como lá diria o bom Castilho), aparece vendendo
saúde. Continuará, provavelmente, seu inimigo. Preparar-lhe-á desaguisados e aborrecimentos. Não é impossível que se faça encontrado com ele e,
valido por outros, o deixe em termos de ir para lençóis de vinho. É possível que, à falsa fé, num beco, à noite, se vingue a punhal ou a qualquer
instrumento assim gelado.
Fulano, que sentiu um belo movimento de alma, terá remorso de ter tido remorso. Entenderá, entre
si, que deveria ser mais destro, menos apressado, verdadeiramente firme na pontaria. Haverá por tolice a caminhada rápida que fez, aquele dia, para
desobrigar o seu coração perante a lei, com grave e sincera confissão de delito. Experimentará o mal-estar que oprime a quem lhe não sucedeu em
qualquer empresa. Verá que foi ridículo.
Então, como nada há neste mundo que mais doa que o ridículo, Fulano derramará lágrimas de sal puro,
recolher-se-á cada vez mais em si mesmo, como um caracol enojado da luz, e pedirá com certeza (só porque o ato lhe não veio em tempo idôneo), o
supremo benefício da morte para sarar esta miserável amargura da sua vida...
Valdomiro Silveira. |
|