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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-11)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 322 a 329):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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III – CAVALEIRO DO IDEAL

11

Martins Fontes glorificou a vida em seus poemas. Tornou-se lírico na interpretação do sentido verdadeiro da morte. Formulou princípios de filosofia, querendo sondar os mistérios do Cosmos e da Vida. Ninguém enalteceu tanto a Terra, o Universo, o mundo visível e palpável, expressando existência.

Lamentava que o homem, sob a influência nefasta da metafísica, quisesse fugir, voar da Terra, "trocar pela ventura problemática e escassa, mas deliciosa, a felicidade que podemos sentir em seu seio". Fúteis e levianos, chamava aos que não viam que há, neste suposto degredo, alguns momentos de supremo prazer, que valem mais do que uma eternidade de pasmaceira.

E afirmava com a certeza da verdade: - que todas as felicidades da inteligência, do coração e dos sentidos são da Terra. E continuava: "Tudo depende da boa vontade e da atenção de quem vive: a Terra não possui apenas atoleiros; possui também devezas frescas e recantos perfumados, em que se pode fazer reviver a antiga ficção do Éden da Bíblia. Só não ama a Terra quem não a compreende. Ela é a harmonia, ela é o exemplo do trabalho, ela é a lição da ventura".

Como Tântalo da vida, o Poeta vivia a adorar o Sol divinizado no alto, perpetuamente aceso, enquanto seus conterrâneos estão mergulhados nas trevas da noite, amortalhadoras da baixura. Ele costumava falar sozinho, conversando com a Terra, a lhe confessar o seu amor e os seus amores, a contar-lhe os seus pecados. Por efeito da sólida certeza da existência do Cosmos, Martins Fontes definia o Além como curiosidade pelas coisas vedadas, porque deste lado todas as pontes, em roda do homem, estão demolidas.

Punha-se a considerar a simpatia que tinha pela existência na Terra. Naus, caravelas, fustas singram o mar, com as velas aos embalos do vento. Aí vão enfrentando as tempestades ou as calmarias. Nós, entes humanos, quedamos a sonhar porque a melhor viagem é a que se faz em terra, à amurada do cais, vendo partir os outros. A terra é um céu aberto, nas lindas manhãs; no entanto Martins Fontes, olhando o mundo, considerava quanto a vida é vã. A terra, só depois de sofrer, carbonizada pelo fogo, floresce e frutifica. Martins Fontes também queria a sua ressurreição, após tanto sofrimento.

O mistério sobressalta na matéria. Fausto, no seu laboratório, perquire, a horas altas da noite. Ele procura abrir as portas da alquimia. Ao combinar dois simples, deu a catálise. Assim, foram eles quando se viram e como lume, raio, explodiram em surpresa trágica.

A noite se aproximava e o Poeta, ao lado da amante, se exasperava e o horror o assaltava. Tremia. Avançava. Ficava irresoluto. Perguntava à megera quem ela é, que quer, porque se cobre de luto, que astros aglomera nas dobras da manta? A noite amedronta e deslumbra. Os seus olhos reluzem aos insultos das panteras e dos tigres. Quem saberá que és pura, miraculosa, amortalhando o Universo de ouro e de treva?

Martins Fontes deduzia, observava, olhava, analisava o Cosmos, em conjunto. Matemático, exato, positivo, ele descia aos pontos mais íntimos do problema. Juntava inumeráveis consequências no experimentalismo. Chegava, por indução, às soluções definitivas. Ele viu o céu, a selva, o oceano, a terra, o homem, o quimismo, a miragem, e concluiu que a Arte é ímpar, e a Beleza, sendo ímpar, é a glorificação da assimetria.

Interrogando os astros, analisamos o mecanismo do mundo. Estudando e percebendo, o cálculo dói no cérebro. Para o espírito, medindo, os anos-luz equivalem a menos dum segundo. O olhar perlustra todo o espaço, vendo quanto a ciência é fátua. E rugimos sobre a Torre de Marfim, no silêncio das noites. Apesar da infelicidade do homem e dos vícios e crimes da Guerra, só o Mundo consola do pavor de morrer. Desprezando a mentira, redimindo a felicidade no amor, certificando-se de que tudo é ilusão, o mundo faz que o beijo nos conforte. Que o mundo seja sempre o mesmo inferno, e ele, Martins Fontes, sofresse a tentação do fruto proibido. Ele o amava assim, vivendo, envenenado, porque tudo que era bom lhe inspirava pena, por ser puro.

Martins Fontes atingia ao ceticismo e quase à descrença da realidade física. A realidade nos insatisfaz, disse, e queremos, absurdamente, abandonar a Natureza. Ansiamos pelo irrealizável, pelo desconhecido, pelo invisível, intangível, irreal, que nos atraem. O homem, fraco e frágil, no seu tormento, sente a atração do maravilhoso e anseia conhecer o infinito. Sonha e quer. Para ele não há prazeres porque a hiperfísica o arrasta ao lendário, e a ultraquímica o confrange sempre, desesperando-o quando percebe que é tudo areia. Mas, na treva, o incognoscível se entremeia de miragens. Tudo ilusão e mentira, porque é procurar o impalpável no invisível.

Nessa fuga do nosso universo sensível, queremos nos deslumbrar com a ultrafísica e a hiperquímica, pesando a luz, decompondo o espectro solar, com a anestesia pela luz que é mais completa que o ultravioleta e o infravermelho, a conquista máxima da ciência porque consegue provocar o sono e prolongar a vida até cem anos.

O Poeta cantará o perfume da claridade, os aromas sonoros, a aparência das coisas, a matéria em trans-irradiância. A humanização nos tortura. Alterando as formas, sonhemos o impossível e povoemos a terra de fantasmas. Espiritualizar-se-á o Universo.

Assim, Martins Fontes tentaria a descrição da supraessência em palavras aladas, longe da terra onde deixaria o corpo. Supunha-se que a razão vacilasse na alvura do espaço em semissonolência. o fluído, cor de rosa, se desenrola. A alma despreza, foge do corpo e se evola em ondas etereais. Este era o sentido da vida infinita e transcendente, indefinida e eterna. Tudo é vida e força envolvente, obedecendo aos mesmos princípios, conquanto de aparência deformadora. A potência do todo trabalha na reforma individual. Na corrida vertiginosa, nada se perde, apenas se transforma. Num segundo morrem milhões de vidas, imperceptivelmente, tão profundo é o seu poder. Sofremos sem saber a causa, mas prevemos que, como síntese do mundo, cosmicamente a morte não existe.

A vida se compara ao mar cujas vagas se erguem, rugem, e depois rolam e desaparecem. Encrespa-se em ondas que se desfazem na investida louca. Por maior fúria da tempestade, a sua força dura um segundo: anula-se e se nivela na vala comum. A vida é uma ignomínia porque se mata para comer, sendo sepultura.

Conhecer o erro e reincidir nele, ser feroz e se desprezar, não há ferida mais tétrica nem tortura mais trágica. Jamais nos livraremos do crime de viver? Sim. Há três caminhos para fugir deste pavoroso atascal - o suicídio, a solidão e o sonho. A cinza, a poeira, cadavérica e esquálida, nos horrorizam a vida inteira. Tudo se anula sem que nada se oponha. A graça volátil na flor se muda em peçonha ou lodo. A vida se condensa no pó. O espírito se abisma nos seus suplícios trágicos. Fora melhor ser cego de nascença, sonhando sempre, do que ver como vemos.

E o poeta viu nascer a vida, se expandir o calor e rufar o coração como tamboril. E quis nadar, bramir, voar na fumaça. Correr, vibrar, luzir entre perfumes e sons, emanar-se da artéria em mil aparências, ser a própria matéria. A liberdade é contingente, fica presa à matéria. Através da Beleza, centuplicamos os nossos tentames, e, anarquistas, esperando, amando, e sendo humanos somos escravos. Na vida nada nos liberta, o espírito se cansa, em seu estreito círculo, em busca da altura.

Na inconsciente dispersão, no caos, no Cosmos, mais do que a liberdade, somente se alcança a Delivrança. Se o mundo é obra dum criador sarcástico, se o homem tem compreensão da animalidade de perpetuar a vida, lembremo-nos de que chorar não basta porque em breve nos extinguiremos. É preferível saborearmos, devorarmos, engolfando-nos na luz, bebermos o vinho do amor, enfim, amar, gozar, aplaudir, não nos esquecendo de que, se nos embriagamos agora, o castigo é atroz e a morte se aproxima.

O homem descobriu a cintila, e luta por prendê-la, encofrá-la para lhe iluminar a gruta protegendo o lar, glorificando a vida. Assim, o homem inventou o fogo, sem Deus. O homem, ser pensante e sofredor, nesta vida inconcebível, é um escravo. A espécie não repousa, insatisfeita. A vida na terra é um bolor. Condenado à morte, apressa o final da comédia, procura a paz do túmulo, sem promessa de alguma esperança. Em outros mundos não há nada do que existe na terra - o nosso destino se identifica ao da fermentação. Vibrionários, passageiros, sujos, obedecemos, loucamente, a fenômenos inexplicáveis.

A vida é triste e trágica. Enganemo-nos de tal forma que nos convençamos de que realizamos a beleza em palavras e atos. Inspirando-nos em o mais puro ideal, leguemos as obras sonhadas. Amar e idealizar são consolações na miséria deste mundo. A ilusão nos torna semideuses e nos persuade de que é verdadeiro o invisível.

O homem, reafirmava Martins Fontes, é, pela sua constituição, uma parcela mínima na unidade do Cosmos. Vem dum túmulo, vive num túmulo e volta ao túmulo. Somos conjugações do movimento eterno e revelações da vontade. Somos, sem importar o elemento ou a forma, a variedade da unidade, contingentes produtos do momento. Agitamo-nos, forças ou formas, desde a flor ao lodo, a nascer, a perecer, renascendo cosmicamente, e sendo as mesmas partículas do todo que se governam pelas mesmas leis, com que rolamos para o mesmo fim.

Martins Fontes ignorava o nome da força que, fulminante e incessantemente, metamorfoseia tudo no mundo e na vida. A conquista do ideal não é o termo da empresa que, na ânsia do além, conduz ao fundo das origens. Essa força intenta unicamente exterminar e, para o renascimento, faz, desfaz e refaz. A consciência e a razão soltam blasfêmias, imprecam pela voz das mulheres que se separam dos amantes.

Essa força representa um cenário de teatro, o drama trágico e mágico da vida, no qual não há piedade. Ao acaso, molda a matéria no momento exato, dando preferência à dor. Verifica-se que o homem não é a sua finalidade. Somente esboça e nada forma e tudo tenta sempre diferente. Melhor seria a destruição total, como queria Vargas Vila.

Martins FOntes fala ao seu semelhante, depois desta digressão exposta com lealdade. Dirão dele que era um verbalista, o último dos românticos. Ele apenas foi o mais possesso dos ateus que amou Prometeu, compreendeu a Anarquia ao sonhar a liberdade humana, mas isso foi por compaixão, porque era o Nirvana que ambicionava.

As dores cerebrais nos enlouquecem e nos perdem, e nada valem injúrias. Vejamos o desfile dos que rugem presos na treva: Vigny, Leconte, Madame Ackermann, Leopardi, Shelley, Byron, Diderot, Antero, Maupassant, Lucrécio. A ilusão nos dirige e nos arrasta. A podridão, causa da vida, é eterna na mentira da sorte. Tivemos consciência em não nos perpetuarmos, mas o caminho é o suicídio, maldizendo-se a vida que tornou o amor gêmeo da fome.

Apesar da sua descrença, Martins Fontes, junto à sepultura de sua avó, meditava e implorava "a mais grata das graças da ventura". O ente que sofre e chora, aspira à paz da consciência, em cujo caminho se alcança a verdade do Nada. Olhando o céu, suplica-se a paz de espírito, a serenidade "de quem vive a sonhar, de olhos abertos".

A perfeita alegria está na dor. Tudo é miragem, ilusão que dura um dia. Todos coparticipamos dos desgraçados inconsoláveis, com ânsias de almas puras. Como nos diz o Evangelho, a dor é tudo e nada há fora dela. A natureza, sem dor, é miragem. A causa da dor é desconhecida porque é a razão da humanidade. Amemos a dor. Os que choram são felizes porque sofreram, amaram.

Aos cem anos, o poeta Valmiki morreu desiludido do mundo que interpretou, desde as origens, em versos imortais. Morto, as formigas lhe invadiram o corpo e o devoraram, até deixar o esqueleto descarnado. Enquanto houver quem sonhe e ame, ouvir-se-ão as canções de Valmiki, até que um dia também se extinguirá a dor humana.

Intenta-se a ilusão. Longe dos miasmas mundanários, o Poeta plasmava, em rimas de ouro nos versos, as miragens do enfeitiçamento eterno. Ele cantava e no entusiasmo e explosão do seu temperamento, concebendo sonhos incríveis, povoava o planeta de fantasmas. Em loucura lúcida, na dor, ele, desafortunado, infeliz, ateu, quase alcançou a essência búdica. Ele amava e sofria. Como artista, nada mais era que um incréu cheio de piedade, ou um velho e místico anarquista, porque viver é exercer a piedade, resumir a Esperança e sonhar a Delivrança.

Amar é se aniquilar, renascer, perpetuar o coração aflito, pressentir o Infinito. Morrer é ter sido e legar qualquer flor, é ressurgir noutra forma e em aparência diversa, glorificar a vida. A floresta negra e híspida é menos má que aquele que ri, mas oculta a inveja. E o poeta preferia o inverno aos homens. Na sociedade estólida nada vale. Em cada gume ou aresta, temos a sensação da hipocrisia. É preferível a crueldade do frio e da fome à vileza disfarçada do homem.

Na paz da solidão, a sós, vemos que um rochedo vale mais que um sermão. E por isso, Martins Fontes quis que houvesse um convento de frades ateus, como ele o era, onde suavizassem o mal da vida, os doentes da existência, a mais triste e cruel das doenças. Esses frades, junto ao mar, na montanha, sem esperanças nem destaque, viveriam em paz na investigação da ciência, unidos, fraternais, livres. Há asilos de velhos e de crianças desamparadas. Deviam também fundar a estância do cerebral sem pão. Martins Fontes teria batido à porta da Casa da Descrença, como aquele que num hospital atura a miséria da vida, a mentira do mundo.

Martins Fontes se horrorizava com a ideia da velhice, a decrepitude, a deformação dos encantos físicos: a pele a se engelhar, os cabelos a caírem ou a se embranquecerem, as dores reumáticas, a arteriosclerose, as dietas, os cuidados contra os resfriados e as pneumonias, as memória fraca, a vista cansada, o coração com altas pressões, a rabugice, enfim a miséria física total, suspirando-se pela morte. Era, pois, preferível morrer do que suportar o horror da velhice ou da doença que, para um herói, é ofensa mais desprezível que o sofrimento.

Martins Fontes, romântico e sonhador, ao sol do seu ideal, queria rolar do céu fulminado como um condor, ou morrer, sorrindo à sorte, por um segredo, por um beijo ou por amor dum amor, e perdoar a quem o assassinou varando-lhe o coração a punhal.

Martins Fontes sentira que chegava às portas da velhice com o espírito vencido. Apavorava-se à lembrança do cérebro amolecido e da renegação do Ideal libertário e ateísta, orgulho supremo da sua carreira gloriosa de poeta e filósofo. E, como procedera Renan, protestava, antecipadamente, contra tudo que o cérebro o obrigasse a dizer ou que produzisse em tal fase imbecil da vida, e contra todos que o supusessem crente de religiões, pois

... não devemos combatê-las,

devemos nós, com superioridade,

já que, a induzir, buscamos a verdade,

reputá-las inúteis, esquecê-las.

Os nossos olhos se deslumbram quando pervagam pelo céu estudando o mistério das estrelas. São ridículos os indivíduos que, sem sabedoria, combatem a ideia da existência de Deus.

Martins Fontes buscava a leitura dos livros de filosofia na ânsia de conhecer o pensamento dos filósofos sobre o mistério da morte. Não havia mistério. A morte é o aniquilamento da matéria viva, orgânica, que se torna inorgânica para alimentar os embriões dos seres vegetais; o Além não existe: foi a conclusão das induções sobre o problema da vida.

Na praia silenciosa, entre montanhas, Martins Fontes costumava meditar apavorado, na força latente e invisível no fundo do oceano onde se produzem agitações esquisitas. A água, potencialmente, tem a fortuna de ser tão serena quanto forte, mesmo dividida. Chega-se à conclusão, angustiosamente, de que a explicação da vida está na morte.

Um cadáver jaz sobre a montanha, ao sol do meio dia, decompondo-se. A vida, sob o calor da força deletéria, a efervescer, rutila no ar. Arte o defumadouro. O sol fecundador faz desabrochar a carcaça como uma flor. A caveira ri do Eclesiastes que diz, em liturgia, na Quaresma, que somos pó e ao pó voltaremos um dia. Jamais se viu vanglória igual à nossa que nem a morte se desfaz. O pó se vê. Anulamo-nos inteiramente, sendo menos que pó, porque somos fumaça. Guardamos a memória da agonia, vendo uma luz acesa qualquer, durante o dia, metendo-nos medo, enquanto o sol dardeja. O ouro é fúnebre e fosco. A chama imóvel se esbate e vela a imagem do Belo, sombria e de crepe. A chama, fogo-fátuo, que ilumina os túmulos, vem dos olhos da Morte, vigiando.

Notamos que o mundo só corrompe e ilude. Pelas brenhas, vagamos e ninguém nos ouve. A morte nos arranca as grilhetas, absolve, preserva e desirmana, libertando-nos no infinito. A morte conduz a porto de salvação os náufragos da vida que vagueiam pelo mar alto. Os que amamos, depois de mortos, serão mais amados, porque viveram santificados no amor.

Nos sombrais do sertão, amarelando os píncaros, vemos apenas a claridade do sol que desaparece. Ecos. Soluços.. Compreendemos, em tanta serenidade, a anunciação do Nada, invadindo-nos a lividez da morte. A esperança murchou. Os mochos piam. Ao anoitecer, o ar toma tonalidades fulas. Aspira-se a poesia dos nelumbos, dos lótus negros da melancolia.

O Poeta conta, então, que teve um sonho cheio de encanto. Era uma paisagem terrível de monotonia mineral. Um palácio de colunatas áureas se levantava entre piscinas e cascatas de fantástica Babel. As cataratas se erguiam em torrentes de cristal e altas muralhas metálicas. Naias gigantescas e belas se miravam nas águas azuis dum tanque circular, que corriam de canais verdes e róseos. As pedras refulgiam. Grandes espelhos refletiam as ondas mágicas de luz. Rios caudalosos de ouro vazavam-se, por céus matizados, num sorvedouro de rubis e de diamantes.

O Poeta fez passar, domado, um mar feroz sob um túnel de pedrarias, cujas águas eram rútilas e ardentes. Sem sol, com a própria luz que refulgia, pairava infinito silêncio, em constante agitação. O Poeta acordou horrorizado, quando a fria treva descia sobre o mundo. Noite de inverno, a lua se eleva no céu donde cai a neve; a árvore nua chora à chuva. O luar exala langor profundo.

Há pessoas que se parecem com estas paragens. Ao longe, ouve-se uma canção e um órgão sonoro que enche de saudade. A fumaça se eleva em forma de serpente que se enrosca num corpo nu, mas, ao querer abraçá-lo, se desfaz. O vento geme. O trovão reboa. Chove. Melancolia. Monotonia.

E surge no horizonte, aos olhos amortecidos do Poeta, a visão dum jardim da morte. O jardim branco, de palidez fúnebre, de alvura de marfim e nácar, parecia um cemitério silencioso. A paisagem, ao luar e no silêncio, dava a impressão de outro mundo. Viam-se, pelas aleias tenebrosas, filas de araucárias, salgueiros e chorões. Havia flores de todos os países, rosas, violetas, narcisos, gloxíneas, magnólias, opúncias, hemerocales japonesas.

Nas alamedas, o incenso dos jacintos se misturava ao perfume dos cravos e verbenas. As orquídeas pendiam dos ciprestes. Nos canteiros, as iríades e crisântemos floresciam. No fundo das piscinas se desenhavam, espelhadas, as sombras das casuarinas, de onde se espiralavam os repuxos de água que desabrochavam no espaço, ao luar, como valisnérias brancas e largas.

Nas ruas, clareiras e gramados do parque, entre flores, moitas, silvedos e madressilvas, aparecem estátuas de namorados aos grupos. O Poeta, no jardim, sem escutar os seus passos, sob o pavor dos pesadelos, com a cabeceira eriçada, fez uma prece à noiva morta, lembrando-lhe os beijos que lhe deu outrora, e por quem suporta a angústia de viver na terra, podendo ela lhe dar a ventura de se deixar ver, ao menos uma vez, naquele exílio. Nisto, ela surge, em veste seráfica, e lhe fala:

- Esperava-te há muito neste jardim da Morte, que muitos chamam o Jardim dos Poetas e do Amor, onde há séculos se encontram os amantes para recordar os amores e as saudades, aos beijos, ouvindo versos, cujas vozes eternas e inspiradoras poderemos ainda escutar; dá-me o braço, sentemo-nos num destes bancos, e evoquemos o passado, vendo e escutando os namorados.

E ao luar, nos seus trajes seculares de brocados e sedas níveas, divisaram-se os perfis angélicos de Francesca, Julieta, Ofélia, Beatriz, com seus amantes. Eles iam e vinham, aos pares, como estátuas animadas, paravam nas penumbras e se fundiam depois nas sombras. O poeta contemplava esta realidade mirífica, como se fosse uma paisagem musical, cheio de ventura, ao que aquela que ele amou na terra lhe disse:

- Para viver aqui, deve-se praticar um bem: deixar, na terra, um cântico "que purifique a alma de alguém"; e será teu amigo aquele que, julgando-se interpretado na tua dor, chorar contigo de amargura e de prazer, sentindo o amor que te deu sofrimento; volta ao mundo, já que a vida é um sonho transitório, e continua a versejar, porque, depois da morte, como recompensa, virás viver neste jardim da lenda e do amor, onde os poetas são divindades. Adeus!

A imagem da amante se diluiu no luar e ele desmaiou, tal como cai um corpo morto, ou tal como aconteceu a D. Juan Tenório quando viu sair um enterro da Igreja do Pilar e, perguntando quem iam sepultar, lhe responderam que a Don Juan, conde de Maranha...

Noite, em alto mar. No céu, de brancura fúnebre, refagulham as ardentias como estrelas. No cemitério, as ondas sepulcrais se abrem vazias. O solitário Império se enche de fantasmas. Será a vida o nada, a morte? O Poeta na amplidão do oceano envelhece ao luar shakespeariano. E quando se envelhece, lê-se o Fausto de Goethe. No desespero da inanidade do mundo, pede-se, ardentemente, a morte. Fausto é o poema dos vencidos, feito de arrependimentos e da compreensão do mal de haver nascido, e dos que se aniquilam, renunciam e se suicidam.