III – CAVALEIRO DO IDEAL
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Para que se conhecesse, amasse e servisse a Humanidade, planejou-se o Calendário positivista, abstrato e concreto. O calendário positivista
abstrato se constituirá quando a sociocracia estiver em funcionamento normal, constitucionalmente anarquista, como a idealizou Martins Fontes, porque o culto abstrato compreenderá a dignificação da Humanidade, do Matrimônio, da Paternidade, da
Domesticidade, do Fetichismo, do Politeísmo, do Monoteísmo, da Mulher, do Sacerdócio, do Patriarcado e do Proletariado, nas suas mais importantes funções, nas grandes fases do seu desenvolvimento, nos seus elementos principais, dos futuros séculos.
Entretanto, o culto concreto é a dignificação dos indivíduos que concorreram, no passado, para o aperfeiçoamento dos seres humanos.
O calendário positivista concreto ou dos grandes homens se compõe de treze meses, de vinte e oito dias cada mês, ou sejam 364 dias, aos quais se junta um dia se o ano for ordinário, e dois se
bissexto. O calendário tem três categorias de grandes homens. A primeira é a dos chefes de mês. A segunda é a dos chefes de semana. A terceira, a dos chefes de dia. O calendário compreende 558 grandes homens, distribuídos pelas três categorias
conforme a importância de cada categoria.
Os treze meses, ou a primeira categoria, se dividem em: seis meses iniciais correspondentes à Antiguidade; um mês (sétimo) correspondente à Idade Média; seis meses finais à Idade Moderna. A cada
chefe de mês correspondem quatro chefes de semana, e a cada chefe de semana correspondem os tipos secundários de cada dia ou sejam seis dias.
Cada mês começa por segunda-feira e compreende quatro semanas, terminando em um domingo. O dia complementar do ano ordinário (365º) é consagrado aos mortos; o segundo dia complementar do ano bissexto
(366º) é consagrado às mulheres eminentes. O ano também começa a uma segunda-feira. A era positivista foi fixada a 1º de janeiro de 189, começando-se, entretanto, a contagem pelo número fixo 1788. Basta subtrair este número do ano civil da era de
Cristo e se obtém o ano da era Positivista.
Moisés, Homero, Aristóteles e Arquimedes representam, como chefes de mês, a Antiguidade sacerdotal, poética, filosófica e científica, respectivamente. César representa a civilização militar, e São
Paulo o catolicismo. Carlos Magno, na Idade Média, representa a civilização feudal. Dante, na Idade Moderna, simboliza a epopeia; Gutenberg, a indústria; Shakespeare, o drama; Descartes, a filosofia; Frederico, a política; Bichat, a ciência.
Nesta história do desenvolvimento da inteligência humana, vemos que a influência nessa marcha é repartida em um quarto para a Arte e três quartos para a Ciência. Muitos nomes de homens eminentes que
prestaram relevantes serviços à humanidade não figuram no Calendário, que somente cita os que viveram até princípios do século XIX. Este século teve grande eficiência na marcha da civilização que paralisou nos começos do século XX.
No século XIX, desenvolveu consideravelmente o bem-estar material da atividade, passou-se do estado absoluto ao estado relativo da inteligência, fundou-se para o sentimento a religião da humanidade,
cuja moral toda científica se universalizará.
Este era o grande sonho de Martins Fontes, ao empreender a grandiosa tarefa de escrever em verso sobre as 558 figuras do Calendário, num dos momentos mais trágicos da sua vida, explicando o processo
da obra nesta quadra:
Na evolução do nosso Calendário,
A individualidade se apresenta
Por um traço moral, na longa e lenta
Marcha da terra, em surto temporário.
Em cada soneto, Martins Fontes traçaria o perfil de cada figura do calendário, em que os chefes de mês presidem, como os homens mais notáveis do século, a uma teoria, a uma evolução, a uma ciência, a
uma literatura, arte ou política.
Martins Fontes, através destas personalidades, ora citando a contribuição de cada um no desenvolvimento da espécie humana, ora evocando os traços físicos ou episódios da vida mitológica, ou fatos
históricos e geográficos, ou paisagens da época, pretendia explicar a verdadeira história universal da humanidade, para estabelecer a moral científica sob a fé demonstrável, de conformidade com os princípios da filosofia de Augusto Comte.
Começou pela parte mais obscura e misteriosa da história, da qual não restam documentos e sim tradições orais que os historiadores, muitos séculos depois, no-las transmitiram em suas obras. A
teocracia inicial compreende as manifestações religiosas dos representantes dos deuses na Terra, em nome dos quais governavam os povos, de que se originou o politeísmo.
A evolução do politeísmo se processou através do mozaísmo e da mitologia greco-romana com Moisés, Prometeu, Cadmus, Hércules, Teseu, Orfeu, Tirésias, Ulisses, Licurgo, Rômulo e Numa; do bramanismo e
das teocracias egípcia, babilônica, persa, média e as druídicas ocidentais com Belus, Semíramis, Sesóstris, Manu, Ciro, Zoroastro, Os Druídas, Ossian e Buda; através da civilização chinesa com Fó-Hi, Hao-Tseu-Tseu, Meng-Tseu, os Teocratas do
Tibete, os Teocratas do Japão, Manco-Capac, Kameahmea e Confúcio; e, finalmente, através do islamismo, onde os fetiches são substituídos por um deus único, com Abraão, José, Samuel, Salomão, Davde, Isaías, Ioakanann, Arun-Al-Raschid, Abderrame III
e Mafoma ou Maomé.
Esta evolução do politeísmo para o monoteísmo trouxe para os nossos tempos três grandes tentativas de religião universal, que falharam em princípio: o budismo, o islamismo e o catolicismo.
A poesia antiga compreende as manifestações estéticas que surgiram na Grécia com a Arte sob várias modalidades de esplendorosa perfeição, fonte máxima da civilização ocidental: a poesia épica e
lírica com Homero, Hesíodo, Tirteu, Safo, Anacreonte, Píndaro, Sófocles, Eurípedes, Teócrito, Lungus, Ésquilo; as belas artes de origem no desenho com Scopas, Zeuxis, Ictinus, Praxíteles, Lisipo, Apeles, Fídias; a comédia em suas variações de
fábula, sátira e crítica, com Esopo, Pilpai, Plauto, Terêncio, Menandro, Fedro, Juvenal, Luciano e Aristófanes; finalmente a epopeia romana ou a poesia épica latina com Ênio, Lucrécio, Horácio, Tíbulo, Ovídio, Lucano e Virgílio.
A filosofia antiga compreende as manifestações científicas dos geniais pensadores gregos, comoo ponto de partida para as especulações abstratas dos séculos posteriores, conforme progrediam os
instrumentos da indução.
A filosofia se iniciou, no refúgio das ilhas gregas, pelas concepções materialistas e sociais dos precursores do positivismo, com Aristóteles, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Anaxágoras,
Demócrito, Leucipo, Heródoto e Tales, sob o ponto de vista abstrato e sistemático; com Sólon, Xenófanes, Empédocles, Tucídides, Árquitas, Filolau, Apolonius de Tirana e Pitágoras sob o ponto de vista social e moral.
Mas a filosofia grega no continente evolveu, por efeito da intolerância dos tiranos que governavam em Atenas, com os filósofos do monoteísmo, precursores do advento do catolicismo, entre os quais se
destacam os chefes Sócrates e Platão, e dos quais Martins Fontes, na sua obra monumental, somente chegou a citar Aristipo, Antístenes, Zenon, Cícero, Plínio-o-Moço, Epicteto e Arriano...
E Martins Fontes viria até à transição revolucionária sonetizando 558 figuras célebres do Calendário Positivista, em que ensartou 96 sonetos dos quais 13 já tinham sido publicados em outros livros,
aparecidos anteriormente.
Martins FOntes, para elaborar esta obra, nos princípios do ano de 1937, encontrava-se assoberbado de inúmeros afazeres e sem os livros necessários sobre a filosofia de Augusto Comte, em que a sua
biblioteca particular era escassa, porque constantemente fazia dádivas ou emprestava a quem não os devolvia!
A biblioteca positivista estava dispersa desde a morte do dr. Silvério Fontes, cuja maior parte o filho oferecera à Sociedade Humanitária com outros livros de literatura e medicina.
O tempo para as lucubrações poéticas e filosóficas rareava dia a dia, na proporção em que aumentavam os encargos e os compromissos de família. Finalmente, a saúde física sofreu catastrófico abalo.
Em Santos, não havia uma biblioteca pública organizada, nunca a houve, e a da Sociedade Humanitária, com a mudança para novo e majestoso edifício próprio, achava-se em completa desordem e sem
catálogo adaptado. Havia crise na diretoria da Sociedade. O diretor-bibliotecário pedira demissão. A diretoria se encontrava em dificuldade para substituí-lo. Lembraram-se do meu obscuro nome. Infelizmente, eu não podia aceitar a pesada
responsabilidade dum cargo técnico, considerando essa missão de bibliotecário um enorme sacrifício de energias intelectuais, porque não possuía a exigência duma cultura enciclopédica, e não me sobrava tempo para o exercício de gracioso e tão
honroso cargo.
Os diretores da Humanitária não se contentaram com as desculpas e apelaram para Martins Fontes que sempre lhes manifestava o desejo de que a biblioteca se reorganizasse, porque pretendia,
futuramente, utilizá-la para os seus estudos filosóficos.
Um dia, Martins Fontes me procurou no escritório comercial onde eu trabalhava, com a missão de me convencer a aceitar o cargo, pondo à prova a amizade e admiração que eu lhe dedicava. Em rápidas
palavras, quase telegráficas, às pressas, Martins Fontes nada pediu, nada explicou; pura e simplesmente expediu uma ordem. Obedeci, com a promessa da sua ajuda ou cooperação.
Encontramo-nos, depois de tomar posse do cargo, mais tarde, no recinto da biblioteca. São dois salões contíguos, um maior que outro, com entrada por uma única porta, tendo ao fundo larga e alta
janela onde a luz entra a jorros e ofusca a vista, iluminando mal todos os cantos mais afastados. Se aqui Martins Fontes retirava qualquer livro das estantes, corria logo à janela para lê-lo.
Duma vez, Martins Fontes, que conhecia bem o recheio da biblioteca, mostrou-me todas as preciosidades literárias e documentários históricos, em desordem pelas prateleiras, umas repletas e muitas
vazias. Ficamos silenciosos durante alguns minutos, em contemplação dos livros queridos. Pareceu-nos que tínhamos encontrado tesouros, escondidos em misteriosa caverna. Ouro em pó, em barra, joias e alfaias, diamantes raros com brilhos alucinantes,
montes de moedas, enfim, tudo que possa abarrotar de ambição um pobre literato.
Iniciei o inventário do espólio da biblioteca. Comuniquei-o a Martins Fontes, cuja situação lhe causou espanto. A criação desta biblioteca se deve à iniciativa do sócio da Humanitária, José Francisco
de Paula Martins, cujo projeto de organização foi aceito em assembleia geral de 30 de outubro de 1880, mas a inauguração oficial somente se efetuou a 7 de setembro de 1888. Reorganizou-a e desenvolveu-a ouro sócio dedicado e ilustre, Francisco
Portuense Machado Reis; sistematizou-a, colocando-a à altura duma verdadeira biblioteca associativa, Jorge de Sá Rocha; e nestes últimos anos, até 1932, dirigiu-a, com dedicação e inteligência, o ilustre jornalista e escritor Alvaro Augusto Lopes.
A Sociedade Humanitária tinha vendido o antigo edifício social da Rua Amador Bueno para a Cúria Diocesana da Catedral de Santos; e mudou-se para os altos dum prédio à Rua Quinze de Novembro, em
caráter provisório, enquanto se construía o grandioso palácio, situado num canto da Praça José Bonifácio de Andrada, para cuja construção empenhou todo o ativo, e contraiu empréstimos onerosos, sob a promessa de auxílio dos poderes públicos.
A revolução de outubro de 1930, de que saíram vitoriosos os adversários políticos do governo constitucional, na campanha presidencial daquele ano, privou-a desse amparo financeiro, baseado na
percentagem dum imposto alfandegário, quando o prédio estava quase construído, faltando-lhe os últimos retoques decorativos que ficaram suspensos por falta de verba.
Apressadamente, mudaram-se donde se encontravam à Rua Quinze para o novo edifício. Na diretoria da Sociedade se manifestou a crise, de que resultou o afastamento de diretores e a demissão de muitos
sócios. Para completar o pagamento da construção, contraíram vultoso empréstimo hipotecário com o Monte Pio Comercial sobre o próprio imóvel. As futuras diretorias arcariam com responsabilidades muito sérias na administração da Sociedade.
Esta situação da Humanitária comoveu Martins Fontes, pensando que o seu melhor patrimônio, a biblioteca, poderia ficar à mercê de contingências desastrosas. Interessou-se Martins Fontes pelo estado
em que encontrei a biblioteca. Nos dois salões, os livros estavam colocados a esmo, em lugares provisórios, aguardando colocação definitiva nas estantes. Era lamentável o estado de muitos livros preciosos, algumas raridades bibliográficas de
impressores de outros séculos, com as encadernações arrebentadas e o texto rendilhado pelo caruncho. Necessitavam de reencadernação, o que não se fazia há muito por falta de verba orçamental.
Os livros em brochura eram em regular quantidade, principalmente os que se referiam a edições novas que, de conformidade com o antiquíssimo regulamento interno, não podiam ser requisitados, salvo se
algum leitor paciente quisesse dar-se ao trabalho fatigante de procurar em um a um aquele que desejava ler no recinto da biblioteca.
O registro dos livros se encontrava atrasado há vários anos e era difícil ou impossível continuar a registrá-los, em virtude da paralisação de todos os serviços em consequência da mudança. Seria
preciso refazer o registro de todos os livros, aproveitando-se os apontamentos sobre a procedência.
A sala de leitura ficava noutra sala, ao lado da biblioteca, onde colocaram duas largas e extensas mesas repletas de jornais e revistas, e cercadas de cadeiras. Numa saleta do funcionário da
administração puseram o fichário onde o consulente ia procurar na ficha ou verbete o nome do livro, porque o catálogo impresso existente estava em desacordo com a nova e arbitrária colocação nas estantes.
Nesse verbete, a indicação do lugar do livro, na biblioteca, era incerta. Somente à custa da memória do funcionário que lidava com os livros é que se adivinhava o lugar onde os puseram
provisoriamente. Os verbetes no fichário de aço, por sua vez, podiam desaparecer ou se estragar com o uso diário de todos os consulentes.
O precioso arquivo de jornais e revistas, sem estantes nem armários, ficava em ampla sala do primeiro andar. Ali, jornais e revistas, colocados no chão, amontoavam-se de mistura com livros da
administração, relatórios e colecionadores de documentos, alguns móveis inutilizados e utensílios da limpeza.
Quando Martins Fontes tomou conhecimento do meu relatório verbal, pediu-me um plano de reforma, sabendo que me dedicava a estudos de biblioteconomia. Numa gloriosa tarde de verão, do ano de 1933, no
Hospital do Isolamento, depois do almoço domingueiro, à varanda, sentados em poltronas de vime, sob um sol claríssimo e o chilreio da passarinhada no parque, onde as árvores levemente balouçavam, estudamos, ambos, os vários sistemas de organização
de bibliotecas que eram aplicados nas principais e mais importantes bibliotecas do Brasil: a Biblioteca Nacional, o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, a Biblioteca Pública do Estado e a da Faculdade de Direito de São Paulo.
Concluímos que o sistema decimal seria o mais prático e eficiente para a reorganização da biblioteca da Humanitária, porque permitia classificar os livros com a aplicação simbólica de algarismos e
sinais de ligação, dividindo os conhecimentos humanos em dez classes convencionais, cuja subdivisão em dez décimos de cada classe representa uma segunda classe dos conhecimentos gerais, e assim sucessivamente, indefinidamente. Este sistema seria
aplicado na biblioteca.
Foram apresentadas à diretoria da Sociedade várias propostas de reforma dos livros de registro e movimento, das fichas de requisição, do horário do expediente, do próprio regulamento interno, além de
outras modificações nas salas vazias para serem utilizadas nesse trabalho. A diretoria aprovou as propostas. Iniciou-se a 4 de abril de 1933 a reorganização da biblioteca sob a minha direção e sob a orientação de Martins Fontes.
Tínhamos dois problemas a resolver - a colocação e a classificação.
Para a colocação dos livros nas prateleiras, devíamos escolher duas formas: pela dimensão ou pela ordem de assunto. Escolhemos a forma de colocação pela dimensão, porque economizaria espaço e daria
soberbo aspecto ao recinto que seria preparado também para sala de leitura, a fim de que se conseguisse longo arejamento durante o dia, com duas janelas e uma porta, abertas.
Em seis meses, com assistência diária, conseguimos dispor os livros nas estantes numeradas, começando pelas prateleiras de cima, em giros elipsoidais, da esquerda para a direita, com os livros
menores e leves. Os livros foram medidos um a um, pela altura, em milímetros, dando-se às prateleiras um espaço equivalente. Desta forma uniformizamos a quantidade de prateleiras em cada estante. Os livros ascendiam gradualmente, milímetro a
milímetro, nas prateleiras, e desciam nas estantes até os livros maiores e pesados, rentes ao chão. Mediram-se aproximadamente dez mil volumes.
A biblioteca da Humanitária, com um catálogo de emergência e onomástico, em que se registraram somente 1.663 obras de vários assuntos, predominando a literatura, reabriu-se solenemente no dia 14 de
outubro de 1933, quando a Sociedade comemorou o 54º aniversário de fundação, que foi a 12 de outubro de 1879.
A desinfecção foi outro problema que mereceu a atenção de Martins Fontes, porque os livros requisitados e lidos em casa dos sócios ficam sujeitos aos percalços das infecções, pelo uso ou pela
natureza do meio, girando de mãos em mãos, ou de quantas pessoas lhes queiram tocar, como o papel-moeda.
Martins Fontes, em caráter de delegado da saúde pública, opinava que os livros se desinfetassem por imersão em qualquer solução corrosiva, petróleo, gasolina, naftalina líquida, ou em estufas com
desinfetante vaporizado. A experiência demonstrou que o uso da naftalina foi ineficiente na exterminação do caruncho, quanto mais dos micróbios malignos. Passado o efeito rápido pela evaporação da naftalina, o caruncho renasce para continuar a sua
obra devastadora da cultura e da civilização humana, desrespeitando os sagrados textos de obras raras da literatura e da ciência... As estufas, iguais às que se usam no Serviço Sanitário, ainda eram o melhor processo de desinfecção de livros em
serviço público.
A classificação dos livros, para se elaborar o catálogo geral, ideográfico, onomástico e didascálico, se procedeu imediatamente após a colocação, e compreendia os livros da Sociedade e os livros que
pertenceram aos sócios beneméritos, Maia Filho, dr. Benedito de Moura Ribeiro e dr. Silvério Fontes, em estantes especiais, seguindo a mesma disposição das outras.
O problema da classificação pelo sistema decimal de Melvil Dewey, célebre bibliotecário de Boston, impunha pessoal habilitado e especializado, com certa cultura literária e científica. Isso era
impossível se conseguir porque a Sociedade não possuía recursos para contratar esses técnicos. Recorri à prata de casa: os meus estudos de biblioteconomia e os humildes auxiliares da Sociedade, suficientemente instruídos nas escolas primárias, o
máximo de instrução que puderam obter, mas com força de vontade para aprender o que se lhes ensinasse.
O trabalho de recatalogação seria árduo e demorado. Muitas horas com poucos livros e alguns anos para examinar e classificar dez mil volumes aproximadamente. Mas todos estavam animados de boa
vontade. Bastava.
Martins Fontes, quando assistiu ao início da obra, titubeou, quanto à possibilidade dum catálogo breve de todos os livros, de que tanto necessitava. Era um inventário completo daquele espólio.
Teríamos de seguir uma ordem de trabalho, paulatinamente, para que não se desperdiçasse tempo.
Simultaneamente, procedia-se à seleção rigorosa do arquivo de jornais e revistas, ao empacotamento pela ordem cronológica, e remoção, para a biblioteca, de revistas literárias e científicas. Todo o
arquivo foi transferido para o salão da biblioteca, aos montões pelo chão, a fim de se poder dirigir e fiscalizar o trabalho, onde funcionava também o serviço de catalogação.
Impressionava mal o ambiente daquele biblioteca em estado de desmoronamento. Na mesa dos serviços de catalogação, distribuímos os trabalhos: um examinava o estado dos livros, anotava a classificação
do assunto que procurava no índice ou no prefácio ou numa leitura ligeira do texto, determinando-lhe o valor quantitativo e qualitativo; outro fazia as fichas ou verbetes, onde eram anotados, à máquina de escrever, o nome do autor pelo apelido ou
sobrenome, o nome do livro e do editor, a data da edição, a quantidade de volumes, a classificação decimal e o número de ordem na estante e prateleira; outro registrava os verbetes no livro apropriado, seguindo as anotações do anverso e do verso;
outro, finalmente, distribuía os verbetes no fichário, primeiramente pela ordem de classe - obras gerais, filosofia, religião, ciências sociais, filologia, ciências puras, ciências aplicadas, belas artes, literatura, história e geografia, com a
segunda classe de conhecimentos e a subdivisão de língua, somente, e depois pela ordem alfabética dos autores dentro de cada segunda classe ou subdivisão decimal.
Para simplificar e atender à emergência de pessoal pouco habilitado, foram desprezados os sinais de ligação com outros assuntos (adição, pontos de vista e relação), de situação u de lugar e tempo, e
de forma do livro ou documento.
Em pouco tempo, os jornais, em pacotes, foram removidos para o arquivo geral definitivo. E, durante quatro anos, trabalhei, com a assistência de Martins Fontes, no serviço de reorganização da
biblioteca, na esperança de apresentar o catálogo ideográfico, tanto o geral como o particular referente aos livros do dr. Silvério Fontes, a fim de que Martins Fontes pudesse consultar os livros de filosofia positiva, dispersos e ocultos, e que
foram doados à Humanitária.
Todos os dias, de manhã, às oito horas e meia pontualmente, alegre como os sabiás e bem-te-vis palradores, ia Martins Fontes à Humanitária, nome que sempre usava ao se referir a esta Sociedade dos
Empregados no Comércio de Santos, onde, solícito, atendia, em primeiro lugar, aos sócios doentes, depois aos amigos para a palestra agradabilíssima.
Na sala das consultas do Posto Médico, sentado à mesa, de caneta em punho, com o bloco das receitas à frente, Martins Fontes, quando de bom humor e pilheriador, chamava os clientes por supostos
nomes, polissilábicos, com sílabas complicadas, cheias de Y, W, K. Se algum precisava de injeção ou intervenção cirúrgica, ambas dolorosas, Martins Fontes contava anedotas picarescas, algo apimentadas, e as gargalhadas estridulavam, gostosas,
amenizadoras, com que se esqueciam dores e tristezas. Momentos rápidos e felizes da vida.
Depois da assistência clínica no Posto Médico, passava à biblioteca, onde ele consultava os livros para tirar-lhes notas, lê-los rapidamente, de pé, curvado sobre a mesa, com o pince-nez nos olhos,
atribuindo à idade o uso de "cangalhas". E acariciava os livros, ou vinha cheirá-los naquele mundo biblial, onde, então, discutíamos os mais transcendentes assuntos de ciência, filosofia, literatura, sociologia, sobre os quais Martins Fontes
dissertava com a autoridade dum professor catedrático.
Todas as vezes que Martins Fontes entrava na biblioteca da Humanitária, voltava-se para as estantes onde se encontram os livros que pertenceram ao seu ilustre pai, dr. Silvério Fontes,
contemplando-os com saudade. Outras vezes, aproximava-se deles como se fosse abraçar velhos amigos, alguns recordando a sua infância e os bons tempos de estudante. E manifestava a todo momento o desejo de que os seus livros também viessem se
enfileirar ao lado dos de seu pai, para cooperarem na obra de cultura popular, a que se dedica a Humanitária.
Martins Fontes, agora, vinha buscar os livros que tratassem da filosofia de Augusto Comte. Queria rever os antigos estudos, para encetar uma obra literária de consagração ao maior filósofo de todos
os tempos, cuja sistematização das ciências revolucionou o campo científico.
Martins Fontes andava empolgado com a ideia universal da fraternidade humana que a moral positiva formulou no sentido de norma de conduta dos homens na Terra. Escreveu algumas poesias para o livro
Nos Jardins de Augusto Comte, às quais juntou muitas que transferiu de outros livros seus, todas inspiradas nesses estudos profundos, em que colaborava, cheio de entusiasmo, através de cartas sapientes e ardorosas, o erudito escritor e filósofo
sr. Ivan Monteiro de Barros Lins, com quem Martins Fontes se correspondia, desconhecendo-o pessoalmente, mas considerando-o seu amigo íntimo e mestre ilustre do positivismo.
Martins Fontes me mostrava aquelas cartas e recitava as cartas e telegramas ou telefonemas que enviava de resposta, com os seus livros de versos. Ivan Lins incitava-o com largos elogios á sua arte
poética. Martins Fontes, aguilhoado pela maior autoridade no Brasil em filosofia positiva, redobrava de energias mentais, apesar da sua vida agitadíssima, preso a deveres de família; trabalhava com rapidez apavorante, sem descanso, com descuido da
própria saúde abalada, escrevendo montões de versos, parecendo de improviso para quem desconhecesse que as poesias se compunham de memória depois de torturante e longa concepção, através da inquietação e do tumulto em que vivia, sem a paz nem o
silêncio criadores duma biblioteca.
Martins Fontes tinha horror aos improvisos em arte. Líamos, comentávamos e emendávamos juntos as últimas produções, cujas cópias deviam seguir para o Rio ao sr. Ivan Lins, com urgência, a fim de
receber a crítica antecipada. Os originais, datilografados em folhas soltas, tinham tantas emendas que o próprio autor se sentia desanimado para copiar a limpo, tudo, novamente. Entregava-os, então, ao dedicado amigo Abraão Neto, que se encarregava
de datilografá-los com extremo carinho e com a máxima perfeição. Dir-se-a um livro impresso, em brochura, meticulosamente revisto, pronto para circular.
Após três meses, Martins Fontes me comunicava, com voz abafada, mostrando na fisionomia sinais de profundo abatimento físico, pálido, nervoso, as mãos trêmulas, que iria iniciar outra obra,
continuação da anterior, sob o título Calendário Positivista. Precisava, urgentemente, duma bibliografia sobre a filosofia de Comte, que a biblioteca da Humanitária devia possuir, porque supunha que lhe oferecera todos os livros de
positivismo, do pai. Infelizmente, os livros da biblioteca ainda não estavam, naqueles meados do ano de 1937, todos catalogados. Só no fim do ano ficaria pronto o catálogo. Era impossível atendê-lo.
No entanto, cataram-se todos os livros que naquele mundo íamos encontrando, entre encadernações e brochuras, livros, folhetos, revistas. Dos livros que pertenceram ao dr. Silvério Fontes e doados à
Humanitária, o Poeta retirou os dois volumes da obra Le Nouveau Calendrier des Grands Hommes, edição de 1893, ue trazem a biografia de todos os componentes do famoso calendário, organizado por Augusto Comte. Seria a fonte principal dos temas
para o seu Calendário.
E começaram as buscas nos dicionários preciosos da Humanitária, às pressas, de que eu lhe mandava todas as notas, a lápis, telegráficas, muitas vezes transmitidas por telefone. Não havia tempo a
perder. Martins Fontes, nessa época de efervescente atividade literária e filosófica, deixara-se dominar por fúnebres pressentimentos. Queria também iniciar comigo a tradução do livro adorado - Inducciones - de Pompeyo Gener, de quem já
também tinha tratado a tradução, em São Paulo, com um amigo, do livro La Mort et le Diable.
Em nada adiantavam os pedidos de descanso nessa febre louca de produzir. Um pensamento o obcecava: o Ivan Lins esperava ansiosamente pela obra máxima, o Calendário Positivista. O Poeta não
queria que ninguém esperasse por ele... O seu Ideal o arrebatava. Verdadeiro delírio.
Assim a religião da Humanidade o interessava como um refúgio a uma ilusão do seu ideal magnânimo, pelo qual queria que todos se amassem como irmãos, que fossem livres e cultos, enquanto lá fora da
sua Capela de sonhos os homens se digladiavam, no século da civilização, como feras brutas e estúpidas. Isto o atormentava; trazia-o inquieto e acabrunhado. E muito mais, pensando que várias gerações trabalharam tanto para deixar o fruto das
suas meditações, o resultado dos seus estudos, em benefício da posteridade. Acumularam acervos incalculáveis de obras científicas e literárias. Conseguiram progressos sociais. Sofreram e morreram pelos ideais de liberdade.
Quando se aguardava um mundo melhor, no século XX, em seus primórdios, nestes quarenta anos iniciais, no caminho da mais perfeita organização da sociedade, eis-nos sob o terror de negras tiranias,
imersos na vergonhosa submissão passiva.
Como aquele coração sofria, apaixonadamente, as dores do Universo! Era assim a vida!? |