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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-15)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 217 a 225):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

15

Valdomiro Silveira, incomparável mestre da língua portuguesa, contou-me, certa vez, que Martins Fontes, como prosador, impressionava pelo estilo cromático e pelos termos protofônicos. O ilustre escritor de Os Caboclos disse-o com autoridade.

Numa das últimas comemorações do Dia de Camões, sob o patrocínio da Federação das Associações Portuguesas do Brasil, na qual também Martins Fontes tomou parte, Valdomiro Silveira analisou a prosa do vate luso. Não a comentou, porque esse delicado trabalho de crítica literária o obrigaria a longuíssima dissertação, além do receio de fatigar o auditório do salão camoniano do Real Centro Português. Limitou-se à análise fugaz de pequenos trechos de prosa que encontrou nos autos e nas cartas de Luís de Camões.

Desconhecemos quem tratasse ainda desta original tese: a prosa de Camões. Na opinião sábia de Valdomiro Silveira, é rica e cheia de imprevistos; dir-se-ia que Luís de Camões a compunha rodeado de flores, ouvindo as mais desvairadas músicas, aspirando perfumes de todo tom, e vendo, a um tempo, muito mar, muita terra e muito céu.

Assim também Martins Fontes afirmava que a prosódia de Camões era açucarada como a brasileira pela opinião de Eça de Queiroz. O modo de falar camoniano era, pois, brasileiro, como o demonstravam a linguística e a métrica da poesia de Camões, em que imperava a sonoridade latina.

Depois desta original revelação dum prosador num poeta célebre, pensamos no valioso estudo que se fizesse em todos os documentos dos grandes artistas do verso.

Martins Fontes igualmente se nos apresentou sob nova face no seu poliédrico talento de artista, de Cavaleiro da Arte: o prosador. As suas notáveis conferências realçaram certos períodos da sua carreira nas letras. Quando se anunciava que Martins Fontes leria qualquer conferência ou palestra, verdadeiros encantos espirituais, ninguém se esquivava a ouvi-lo, com exceção da sua última conferência, sobre Pasteur, em benefício da Sociedade Humanitária, em que se desgostou porque falou a reduzido auditório, a diminuta assistência que repentinamente engrossou quando se iniciou o baile sob a orquestra de jazz band!!! Nunca mais falou em público.

Martins Fontes tocava em todos os assuntos com varinha mágica, no meio de irradiante simpatia e quente entusiasmo pela Arte de que era sincero cultor e para a qual reservava as horas de ócio ao ofício solene. Sabia dizer as conferências com tanta perfeição, tal colorido e sonoridade, que o libreto, por onde regia a orquestra verbal, não serviria nem servirá a outro maestro.

Ninguém deixava de se arrebatar com o Poeta quando, nas suas memoráveis conferências, nesta e noutras cidades, a sua voz, bem timbrada, em tom de clarim, vibrava, com estrépito, ora finíssima quais flautins suavíssimos, ora forte como trovões formidandos ou fúnebre e ululante, entre soluços de raiva, tédio e dor…

Todo o seu corpo parecia se combinar com o movimento das ideias. Os braços desenhavam no espaço o vulto duma frase descritiva. O tronco oscilava como grossa árvore à ventania, baixo, alentado, sólido, sem perigo de tombar. A cabeça espelhava a emoção que as cordas vocais faziam ressoar estridentes. A face se congestionava. Os cabelos se emaranhavam. Os lábios nervosos se umedeciam.

Vermelho, a suar em abundância, inquieto, como rosa orvalhada ao vento na ponta dum galho, Martins Fontes perorava sob infernal barulho de rufos de tambores, de lancinantes toques de cornetas e clarins marciais, com rápidos estouros de bombas, aos gritos de Glória! Glória!, Glória! Queria glória para todos os gênios da Terra!

Martins Fontes, no desejo desinteressado de permitir o deleite de pura arte àqueles que não tiveram a doce ventura de lhas ouvir da própria boca, reuniu as conferências em vários livros: Decameron, representando os contos; Partida para Cítera, simbolizando o teatro em prosa, é uma alta comédia em três atos, cujas cenas se passam na casa do dr. Pedro Augusto Nollac Vanny, barão de Val-Rose, no Rio de Janeiro, casado, avô elegante à moda francesa do romantismo, com ideias elevadas até o sublime anarquismo, quando, com os netos, tipos modernos da sociedade, esportivos e sem requintes de elegância, cheios de negócios e cotações dos mercados, se reúnem para festejar o aniversário da mais nova e irrequieta netinha, recentemente saída do colégio, organizando-se uma festa de bom gosto parnasiano com a representação do quadro de Watteau, que deu o nome à peça; depois propriamente as conferências – No Templo e Na Oficina; O Colar Partido; O Mar, a Terra e o Céu; Terras da Fantasia; Nós, as Abelhas; Fantástica

Não eram entretanto os seus trabalhos em prosa o que mais o preocupava publicar. A prosa lhe parecia mesquinha e inarmônica para os primores da sua rica imaginação, mas, assim mesmo, o Poeta tinha a possibilidade de criar quimeras, exprimir sentimentos e nos arrastar a sonhos extravagantes, dentro da linguagem deformada, sob rigor austero, terso, clássico, do vocabulário português, imenso, caudaloso, com que se traduzem as mais requintadas cambiantes do sentimento ou da paisagem.

E sem perder o tom e o gênio da língua, com o encanto e o sabor do vinho velho, espumoso, a prosa de Martins Fontes é a do grande artista que dá à vocalização o acento predominante da musicalidade do assunto, variando-o tal como ele próprio varia desde a mais leve e grácil frase de amor, em cicios morrentes, ao ascender da orquestração, forte, retumbante, clangorejante, a estalar, a esbravejar, igual às ondas altas no oceano azul, brancas espumas de raiva, medonhas, troantes.

As conferências ou palestras são quase todas sínteses de longos estudos, à volta de qualquer ideia central. No decorrer das suas leituras, Martins Fontes tinha o útil processo de anotar pensamentos, citações históricas, vocábulos peregrinos, resumos ou pequenas transcrições.

Acumulava a bibliografia de precioso material e quando o tempo ou a emergência surgiam para o devaneio, Martins Fontes arquitetava a palestra, entremeada de citações dos poetas, dos escritores, e de muitas poesias, a fim de ilustrar ou comprovar a sua argumentação indiscutível, ou de anedotas alegres para estimular a atenção dos ouvintes, aos quais lhe condoia vê-los cabecear de sono ou bocejar de tédio, aturando, em longa tortura, conversa fiada, maçuda e monótona.

Para o grande Poeta, "as conferências eram recitais, aulas de dicção, pretextos para dizer versos, concertos de poesia, e deviam ser sempre uma palestra ligeira e linda, ou alegre e leve, onde se borboleteia sobre vários assuntos, fazendo a flor do tema preferido e fácil fluir à flor da prosa".

Seria enfadonho desenvolver uma tese, minudentemente, quando apenas se quer distrair a assistência; além disso, a clínica médica não lhe permitia o método indispensável ao trabalho de qualquer profissão. O médico, sacerdote clínico, sem exceção, é um mártir. Para que alguém, exercendo a Medicina, possa escrever literatura, é preciso conter três dons fenomenais ou possuir todos três ao mesmo tempo, como Martins Fontes: força de vontade inquebrantável, fé artística e orgulho luminoso e desvairado de leão ferido a se estorcer na treva.

Então a prosa se assemelhava à marcha triunfal dos verbos, candentes, embaladores, ardentes, luminosos, ricos, sonorosos, e ao desfile dos substantivos pomposos, desacompanhados ou abraçados a adjetivos finos, aristocráticos, de vestes lucilantes e rubras. Empregava a frase curta. Quando se alongava, ia, a cada passo da pausa, virgulando com a graça do ritmo de formosa melodia.

Toda a multidão dos assuntos era cuidadosamente arrumada no silêncio do gabinete de trabalho, à volta dos livros e dos cadernos de notas. E Martins Fontes admirava (quantas vezes mo confessou!) e praticava o acabamento, nunca poupava esforços para apresentar os trabalhos literários na melhor forma possível. Não desejava que seus escritos se parecessem às construções de prédios com andaimes e taipas, mostrando o vigamento de cimento armado ou os tijolos das paredes sem reboco nem pintura.

Temia as improvisações que fazia em espaço angustiante de tempo, para atender aos amigos, em trabalhos assimétricos, irregulares, precipitados, desarmônicos. Sentia-se feliz a conversar. Adorava os serões à lareira, como se usava nos lares da velha Inglaterra, onde se educa a família a ouvir histórias e contos, curiosidades científicas e recordações de viagens, entrechos de romances, comédias e anedotas.

Torna-se profissão rendosa, para a qual se exige: imaginação pirotécnica e voz deliciosa. E a palestra será, então, apenas amável, suave distração, prazer fugaz que faça sentir ou refletir, mudando-lhe o ritmo com versos apropriados, porém sem nunca fatigar, tendo habilidade na escolha do tema, afeiçoado ao público, ao momento, à sala.

Assim pensava Martins Fontes, assim ensinava e professava como insigne mestre de retórica. Conversar é divagar. Isso é o melhor encanto da vida, afina os costumes, apura as inteligências, melhora as consciências pela reciprocidade dos sentimentos, como licor saboroso, obriga-nos à sociabilidade, a viver em bando como os pássaros.

E eis porque Martins Fontes amava as palavras. Proferiu-as em idioma português, com ligeiros entalhes de palavras, frases ou versos de língua francesa. O culto ao idioma luso ocupou a vida inteira de Martins Fontes.

A língua portuguesa encontrou em Martins Fontes um dos seus maiores paladinos. Escrevia-a com pureza imaculada. Floreava-a de recamadas sutilezas de estilo. Conhecia a fundo a literatura provençal e clássica. Elas lhe temperaram o aço da pena com que idealizava e criava a obra poética que vislumbramos em Cavaleiro do Amor. Além disso, era bom prosador e conversador emérito.

Martins Fontes aplicava, entretanto, mais cuidado à poesia que à prosa. Considerava a prosa o rodapé do monumento que construiu com as pedras preciosas dos seus poemas. Aproveitava a prosa nos esboços das poesias e dos poemas, nas anotações e comentários dos livros prediletos, nas conferências, como já disse, para serem lidos ao público com heterogeneidade de assuntos, sob a preocupação de não enfadar, entre os constantes arroubos de eloquência e o cascatear de vocábulos onomatopaicos, delineando figuras e paisagens. Mas o monumento ficou incompleto com os sonetos do inacabado Calendário Positivista, o cibório do seu Templo de Partenão.

A técnica de Martins Fontes era completa e perfeita. Dentre os poetas brasileiros contemporâneos, julgo-o o maior virtuoso das palavras. Desconheço quem o equipare ou supere. A língua portuguesa refosforeja, rutila, relumbra, abrasa, como numa bigorna, na pena dum grande rendilhador de sutilezas estilísticas.

Futuramente, quem desejar saber a fundo o idioma português, lerá, estudará a poesia e a prosa de Martins Fontes. Ele reúne todos os estilos, do simples ao sublime. Quando não fossem os temas, inspirados na mais pura arte, havia a exuberância de linguagem, a riqueza vocabular, a criação de palavras que tornam Martins Fontes mestre da língua. São raros os poetas que conseguiram reunir tantas perfeições em seus trabalhos literários – forma, linguagem, assuntos, erudição, sentimento.

Na obra vasta de Martins Fontes, encontramos, em tumulto, todas as questões da ciência, da filosofia, da estética, da sociologia e até da música. Ainda assim, era um dos mais brasileiros entre os poetas nacionais, pela língua que escrevia e pelo temperamento que o dominava. Ele encarnava com sinceridade o espírito da coletividade brasileira, mas se afastava do fanatismo patriótico para exaltar a Arte Universal, compenetrando-se do internacionalismo da cultura humana.

O culto à língua portuguesa se criou pelo convívio fraternal dos notáveis escritores e filólogos Valdomiro e Agenor Silveira, dois irmãos beneditinos que o ensinaram a servir e a amar a língua, sem segredos para o seu saber, enobrecida pela pureza da sua arte, dois ourives sacerdotes.

Mestres e Remestres na gaia-ciência de bem falar e de bem escrever o idioma luso. Esta foi a consagração de Martins Fontes, genial discípulo, a Valdomiro e Agenor Silveira, de quem recebeu perene influência no estudo fervoroso dos clássicos da literatura, através dos poetas e dos escritores provençais e trovadorescos da Idade Média, dos quinhentistas, gongóricos e árcades da época clássica dos tempos modernos, dos românticos e realistas dos tempos contemporâneos.

Magnificat! Glória à língua portuguesa! Possuímos magnífico instrumento de expressão e de uso literário – o harmonicorde, organum-harmonium da língua portuguesa, e devemo-lo ao pequenino e glorioso Portugal.

Martins Fontes lamentava o descuido da nossa mocidade em estudá-lo com afinco e manejá-lo com sabedoria. Afirmava existir, na terra, duas línguas somente capazes de traduzir todas as manifestações inumeráveis da inteligência, em ritmo nobre, em estilo fino, em forma puríssima – o francês e o português. A munificência do mar só se compara à do nosso idioma formosíssimo.

Quando Martins Fontes se lembrava do Poeta do Mar, repentinamente, alucinado, enlouquecido, assaltava-lhe a tentação suprema, a demência sublime, o desvario, a ponto de, para em altissonância exprimir o seu sonho, aspirar a ser Camões, augir em Luís de Camões. Astralizava-se. Transfigurava-se. Ardia-lhe dentro do âmbito do peito, no sol do seu coração, a luz santa do Ideal, o fogo longevo de milhares de heróis, a pujança de milhões de ondas encapeladas! O mar da raça, o oceano da Humanidade, no resplendor da língua portuguesa, em sua máxima formosura, encarnou-se em seu verbo.

Foi benemérita a influência de Valdomiro e Agenor Silveira; um, sacerdote do culto a Camilo; outro, do culto a Camões, dois ínclitos gênios do idioma, em toda a sua magnificência. Na interpretação dos clássicos, reside o segredo da língua portuguesa, sem desprezar o conhecimento direto da gramática e do vocabulário que nada valem sem aquela.

E Martins Fontes, guiado pelos mestres queridos, Valdomiro e Agenor Silveira, ao mesmo tempo dois grandes intelectuais: um escritor, outro, poeta; adquiriu a cultura clássica da língua e expressou a sua gratidão em dois poemas glorificadores da língua e da literatura – A Floresta da Água Negra e Pastoral.

O amor à língua de Camões crescia quanto mais a praticava e mais se aprofundava a desvendar-lhe os mistérios. Censurava os que a desaportuguesam, a descabam, a deszelam, porque supõem as regras da gramática esdruxularias, zarandalhas, miscandilhas, nonadas, coisas de quitiliquê, de cacaracá, de quichiligangue, de quiqueriqui.

Martins Fontes mereceu a recompensa de celebrar a língua portuguesa na plenitude da suprema formosura porque lhe queria muito, a estudava como iniciado, amando e exercendo a Arte com orgulho, porém sem vaidade. E assim se exprimia quando grandilouvava o mestre do classicismo – Agenor Silveira, o douto filólogo de Quatro contos e Colocação dos Pronomes, o notável garimpeiro de Ouro de 24, da inesgotável mina do idioma luso-brasileiro.

Agenor Silveira, poeta de adorável lirismo em Rimas e Versos de bem de de mau humor, coração magnânimo, tão bondoso que Martins Fontes o comparava a um santo, dizia-lhe quando lia em primeira mão os seus versos recém-concebidos no mesmo dia, que as vozes e locuções da antiga língua portuguesa merecem ser revividas, moedas preciosas afastadas da circulação, depois de longo e inexplicável desuso, as quais "ainda hoje nos enchem a vista, consolam o tato e deleitam o ouvido com a nitidez dos seus cunhos e cruzes, com o peso e o som do metal".

Nisso o discípulo foi fiel, seguindo-lhe as lições com o uso dos vocábulos ricos e raros, de que encheu, abundantemente, os versos e a prosa. Obrigações do estilo impunham a Martins Fontes a criação de palavras novas ou a adoção de brasileirismos. Esses termos eram, em grande parte, derivados ou compostos de palavras simples, vernáculas ou latinas, constituindo esse processo de invenção, nas mãos de Martins Fontes, manancial grandioso de joias da língua portuguesa, com a utilização de incalculáveis afixos. Para os brasileirismos, Martins Fontes recorria a Valdomiro Silveira, o criador e revivedor do vocabulário paulista.

Valdomiro Silveira, um dos maiores escritores da atualidade, no Brasil, e primoroso poeta infelizmente inédito, possuía duas modalidades de estilo nos contos regionais – o clássico e o dialético. Escrevia e conhecia a língua portuguesa com a mesma sabedoria da de Rui Barbosa. Criou um vocabulário regional, transplantando, graficamente, o linguajar caipira para os diálogos ou monólogos dos contos. De fato, a nossa literatura regional é um ramo distinto da portuguesa, e nem por isso deixamos de nos utilizar do mesmo idioma, enriquecido de novos étimos.

Como há duas nações, Portugal e Brasil, que falam e escrevem no idioma português, naturalmente não se excetuaria aquela desse enriquecimento, desde que nesta ainda não se operou radical transformação das raízes filológicas. Dar-se-ia se, por qualquer catástrofe, Portugal desaparecesse, como a Grécia antiga e o Império Romano.

Por dolorosa arrelia a certos nativistas intransigentes, seríamos obrigados a esperar muitos anos, talvez séculos, para o idioma atingir à fixação dum novo linguajar, depois de profundas transformações fonéticas e morfológicas, com o aparecimento dum gênio literário da força de Homero, de Virgílio, de Dante e de Camões que, nas épocas respectivas, consolidaram as línguas grega, latina, italiana e portuguesa.

Já não bastava a ciência filológica que determinou as leis naturais da simplificação ortográfica, e surgiu essa invenção maravilhosa, a radiotelefonia ou a televisão para eternizar e expandir a língua portuguesa. E quando, entre estas nações, se estabelecerem poderosas estações de radiotelevisão, ouviremos, vendo-se quem fala, ou canta, com radiante alegria, uma voz conhecida e amiga, uma voz compreensível e nossa.

O sotaque e a variação sintática não criaram idiomas. Pertencem ao estilo e ao caráter de cada indivíduo e de cada região, com seus usos e costumes peculiares. A língua portuguesa continuará a viver, bela e viçosa, firme nas raízes greco-latinas, cada vez mais avolumada de neologismos luso-brasileiros que passaram pelo crivo da filologia.

Sempre se explicou assim o horizonte da nossa literatura, e os artistas, escritores e poetas a honraram com suas criações estéticas, dentro do classicismo. É verdade que julgamos a literatura sob o ponto de vista científico: está sujeita aos processos da análise, da observação e da experimentação e às leis evolutivas provindas da indução nos fenômenos sociais.

Para se fazer jus à honrosa posição de civilizados e cultos, não nos devemos prender às velhas escolas nem aos métodos cediços, procurando arrancar a literatura do caos teológico para uma heterogeneidade definida e coerente. Vê-se que a missão da literatura brasileira será integrar-se na vida moderna, dinâmica, e transformar constantemente os seus processos de técnica, pela gloriosa luta em que todos os intelectuais se devem empenhar a favor do nivelamento econômico da humanidade. Todos devem pugnar pela absoluta liberdade e pelo aumento incessante do número de homens felizes durante a vida na Terra.

Pensava muito bem Martins Fontes quando declarava que as escolas literárias nunca valeram por si próprias, porque acreditava que os artistas pudessem ocasionalmente se unir num centro de palestras, em qualquer lugar solitário e poético, estabelecendo o atrito das ideias, sem muitas das vezes anular a comunhão de sentimentos. Nada de igrejinhas, criando subserviências mentais.

Essa desejada comunhão, desgraçadamente, é difícil, nos dias presentes, porque a vaidade dos artistas não permite a crítica e a independência. Vive-se numa época vertiginosa. O ceticismo desdenhoso é o traço intelectual típico da nossa época. Os artistas se tornaram personalistas. Os bons tempos dos literatos de Cafés e Confeitarias passaram…

Valdomiro Silveira empreendeu obra criadora, sob aspecto regional, sem desnaturar o idioma, com a intercalação da fala viciada dos caipiras analfabetos, eivada de solecismos fixos, mas aproveitando-lhe o significado novo de palavras antigas e de neologismos que reentraram para o vocabulário paulista.

Valdomiro Silveira, de posse do instrumento que manufaturou com talento, escreveu nove livros de contos regionais, dos quais somente quatro foram publicados: Os caboclos, Nas serras e nas furnas, Mixuangos e Leréias.

A primeira leitura dos seus livros torna-se áspera para o leitor das cidades que não se familiarizou com o linguajar sertanejo, mas se, paulatinamente, se dá ao trabalho de consultar os vocabulários apensos, com o significado das palavras, as belezas literárias surgem nos quadros descritivos, nos retratos originais, através duma linguagem pitoresca, com traços vigorosos de estilo clássico.

Os livros de Valdomiro Silveira representam uma inovação na literatura brasileira, mas é a única que no-lo pode caracterizar ou dar-lhe um cunho nacionalista, sem que soframos os arreganhos dos nativistas que cegamente miram nos brasileirismos de cunho vernáculo a formação do idioma brasileiro com gramática própria!!!

Se escrevermos no mesmo estilo, ou parecido, de Valdomiro Silveira, conseguiremos formar uma verdadeira literatura nacional, por intermédio da formosíssima língua portuguesa. Há quem pense ao contrário. Entretanto, notamos que filólogos de Portugal e do Brasil incluem nos dicionários da língua oficial os étimos que os escritores arrancam da fala popular, ou criam pela necessidade de clareza dum pensamento. Caldas Aulette e Cândido de Figueiredo já registraram milhares de novos termos em seus dicionários.

Cândido de Figueiredo aceitou a colaboração de muitos escritores e poetas brasileiros e incluiu no seu esplêndido vocabulário milhares de brasileirismos, entre cujos colaboradores se encontra Martins Fontes, de que muito se orgulhava. E a Academia Brasileira de Letras prometeu-nos um dicionário e uma gramática que unifiquem as regras da nossa maleável sintaxe e expliquem a aplicação dos nossos vocábulos.

Devemos, pois, a Valdomiro Silveira a criação do vocabulário paulista, introduzindo-o na literatura brasileira, do qual Martins Fontes se serviu estilizando alguns modismos, nas poesias de Paulistânia. Martins Fontes consagrou o mestre em seus versos, igualando-o à água pela bondade e comparando-o à luz pelo gênio, sem poder distinguir qual a que mais o seduzia, porque duma irradia claridade e doutra provém consolação.

Sábio e santo, divino e perfeito, amigo e irmão, Valdomiro Silveira foi uma das adorações de Martins Fontes que, como confessava, sentia glória de ter vivido com ele. Martins Fontes admirava a placidez daquele ser privilegiado que, mesmo dormindo, parecia em fervência, a dispersar energia, como um vergel, sob encantado silêncio, na tranquilidade e inconsciência da frutificação, a cogitar os seus contos onde pinta o sertão paulista, retrata um pássaro, evoca um arbusto com nome próprio; faz-nos ver num traço o fulvor dos guarás, o azul da pariru, dos rebentãozais, salvás, vassourais, capoeirões, vegetações virgens de riqueza assombrosa a orvalheira a nimbar a peúva, a garoa prateada, o airoso suruquá, o pavô de peito avermelhado; e, afinal, os costumes do povo com suas roupagens, a gente heroica, nobre, inconfundível, que Valdomiro Silveira, o Poeta da Raça, o intérprete das nossas tradições, bendiz e glorifica.