II – CAVALEIRO DA ARTE
6
Coelho Neto, a maior das abelhas, a mais operosa, a genial, o maior prestidigitador verbal, foi íntimo de Martins Fontes, durante trinta
anos aproximadamente. No cortiço dessa prodigiosa abelha, Martins Fontes sorveu o mel puro da linguagem. Ali encontrou as outras abelhas que, aos enxames, iam deixar a produção duma semana em sugamentos trabalhadores.
Em casa de Coelho Neto, o Palácio do Rádio, como lhe chamava Martins Fontes, reuniram-se os poetas e os escritores da Roda Literária, aos sábados, para jantar. Era tal a magia da atmosfera em que se agitavam, que Martins Fontes não sabia distinguir
o verdadeiro do irreal, o fantasismo da veracidade. Ardiam todos em sideração, em pura vida cerebral, abstratos, alucinados, iluminados, astralizando-se.
Depois do jantar, todos entravam no austero gabinete de trabalho do Mestre, repleto de livros raros, em edições custosíssimas, cheio de altas estantes de jacarandá rescendente que dão à ambiência a sensação do pensamento concentrado, aureolando a
sua larga e aromante mesa de escritor, feita de mogno lavrado, bela, pura como um altar, tabernáculo de joalheiro resplandecente de ordem, aberta em florações artísticas, perfumada sempre pelas mais frescas flores da estação, desabrochadas, em
fundos vasos de prata.
Ali, fiou, sem nunca repousar, dizia Martins Fontes, durante mais de quarenta anos, às vezes dez horas consecutivas, diariamente, o maior dos romancistas do Brasil em todos os tempos, o autor de cento e dezoito livros, vazados no ouro camoniano. As
notas, os mínimos apontamentos, as marcas marginais nas obras preclaras, os registros diários, as lembranças familiares, cartas íntimas são modelos de perfeição, só comparáveis à sua letra árabe, primor de harmonia, imagem dos versículos do
Alcorão.
Aos sábados, porém, Coelho Neto repousava para receber as camaradas de letras, na biblioteca. Realizavam-se lá festas miríficas, conferências de salão, de quinze minutos no máximo, representavam-se comédias num ato, instantâneas inventavam-se
brinquedos.
Coelho Neto, com o poder industânico da sua imaginação, colocava, por trás de um biombo, ao fundo do seu gabinete de trabalho, chapéus, capas, bengalas, gravatas, vestes adequadas, e, em meio da sala perplexa, surdia, reproduzindo no andar, no
falar, no vestir, no ser, cada um dos seus irmãos na boemia, Ney ou Mallet, Pompeia ou Patrocínio.
Durante as representações, invariavelmente, Henrique de Holanda era quem mais trabalhava. Fazia-se como no tempo de Shakespeare, abstração da paisagem… Mas Holanda salvara a situação. Era o cenário. Saiu-se sempre muito bem. Ora era árvore, ora
lago, porta, mobília, vulcão, Serra dos Órgãos… uma orquestra sinfonizava. Era o maestro Holandini, o multiquerido Henrique de Holanda regendo um coro ucraniano, coral viva, composta de trinta professores, na qual cada um remedava um instrumento.
Emílio de Menezes era o rabecão, Luís Edmundo a flauta, e Leal de Sousa o fagote. Ouviam-se bravos, palmas, louvores, entre sorrisos.
Naquela casa encantada não existiu jamais a morte, tudo era vida, vida ascensional, em perpetuidade luminosa, em radiação perene. O ar da casa cintilava, tornando irradiante o ambiente moral. Aquela casa entesourava o céu do Rio de Janeiro. Naquela
casa tudo era transfiguração. Homens humildes, de pés descalços, doentes de todas as enfermidades, foram sempre recebidos e tratados carinhosamente na Santa Casa de Coelho Neto. Desde que revelasse inteligência ou bondade, não mais se desejava para
ser admitido como Irmão. Improvisavam-se conferências sobre motivos da atualidade: o leite, o lírio, a arte de ser calvo, a chuva e o bom tempo. Era uma escola. Ali se aprendia a recitar, a declamar, a articular. Intensificava-se o amor à Pátria.
Foram feitas dezenas de preleções sobre o Brasil imenso. Essas palestras cívicas começaram num painel do Alto Acre e acabaram num hino à Guanabara. Quando, em sua casa, por noites de sol, Coelho Neto idealizava, em prosa ou em verso, produzia
arrepios amedrontantes. Seu todo felino, de tigre de Bengala, de gato bravo, luciferava, desferia chispas pelos olhos, luminescências pelos cabelos, como as histéricas em transe. A imaginação de Coelho Neto esfuzilava e chamejava. O seu verbo, a
iriar, rolava em cataratas, despejava-se aos roldões.
Uma noite, em casa de Coelho Neto, era o maior dos encantamentos, o supremo gozo intelectual. Os dias mais festivos naquele Palácio do Rádio eram os dos aniversários da dona da casa, dona Gaby, a 25 de julho, e de Coelho Neto a 21 de fevereiro.
Neste dia do ano de 1907, Martins Fontes presenteou a Coelho Neto uma carteira em que escondeu o oferecimento – a Coelho Neto, o prêmio Nobel. Ninguém o merecia mais, dizia Martins Fontes. O prêmio Nobel da literatura é destinado a quem tenha
procurado melhorar a humanidade sobre-humanizando-a, elevando-a idealmente.
A obra vastíssima de Coelho Neto é a glorificação da Mulher, inspiradora eterna, simbolia do céu infinito pela grandeza moral. Grande artista da palavra, de que era considerado mestre insigne, Coelho Neto soube cinzelar obras primas em romances,
contos, novelas e peças de teatro, atingindo à máxima perfeição e estesia em Sertão e Rei Negro, em que revelou maduras e poderosas qualidades de escritor visual e emotivo, e traçou a diretriz na literatura brasileira como o último
dos românticos e o primeiro dos realistas, com o único intuito de interpretar a vida em termos estéticos, de conformidade coma conclusão crítica de Péricles Morais em seu notabilíssimo estudo sobre a obra grandiosa do contista e romancista de
Treva e Turbilhão.
Mas a casa de Coelho Neto não era só o alfobre da alegria, o viveiro da mocidade, o salão elegante e culto da Guanabara radiosa, era antes de tudo o Templo da Inteligência. Todas as composições dos poetas e dos escritores novatos eram recitadas em
casa de Coelho Neto, que as julgava e batizava. Cultuava-se o idioma português. Ali, Martins Fontes, na companhia de Euclides da Cunha e de Goulart de Andrade, guiados pelo genial Coelho Neto, em longos saraus, juntos, inventariavam os verbos
luminosos e ardentes da língua, às centenas, as vozes onomatopaicas imitantes dos remurmúrios da floresta, trasladavam relações minuciosas de todas as cores e semitons, de quase todas as pedras preciosas sepultadas nas minas no nosso léxico.
Martins Fontes guardava carinhosamente todo esse ouro em barra de que se servia nos seus trabalhos literários e que é necessário ou indispensável a quem se exercita em literatura.
Depois, naquela casa, a morte entrou e raptou seus donos: dona Gaby e a seguir Coelho Neto. Martins Fontes sempre se lembrava de dona Gaby quando chovia. O dia chuvoso se parecia com a tristeza do desaparecimento de quem foi o lírio a sorrir, o
encanto das crianças, a suave graça dos anjos pairando sobre os poetas, irmãos que ela encantava. Quando chove parece que a terra sente a falta que ela faz. E crianças e poetas sabem que é o próprio céu que está chorando. |