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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-07)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 76 a 84):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

7

Martins Fontes, depois de se extasiar com as deliciosas essências de flores e frutas, entre harmonias arrebatadoras, traçou os episódios do romance dum sonho, confidências de amor que talvez fossem proferidas à hora do poente, a cuja última luz que doura as tardes calmas e desaparece além das montanhas, dando adeus à Terra, se chama em nosso torrão natal, poeticamente – Sol das Almas.

Desta forma, o Poeta explicava as suas confidências, em que, entre arroubos amorosos, há a previsão da revolta cósmica, anárquica, de que já se percebem os relâmpagos e longínquas trovoadas. Mas ele resistiu à borrasca, encorajado pela estima da mulher amada, a quem endereçava palavras carinhosas, preocupando-se com as mãos frias, da amante, e procurando aquecê-las entre as suas; indagava a causa das lágrimas nos olhos que o guiavam na vida escura, sem os quais andaria cego; relembrava os beijos e os perfumes que trocaram e aspiraram em dias de ventura. Justificava, então, que devíamos sempre cantar porque a cantiga é a nossa melhor confidente.

O entardecer de verão e a lua no crescente arrastavam a fantasia exuberante de Martins Fontes a sonhos e lembranças das ilusões perdidas. Uma estrela cadente singra o espaço. Leve zéfiro bole a folhagem. Há no ar langor de esperança mística e doçura triste. As cigarras ensaiam o coro vesperal. No óleo da tarde, azula-se a espiral de fumo de uma aldeia.

Passa um carro. Um vulto feminino sobe dos valos. Esta paisagem convida ao sonho porque reproduz a vida bucólica dos temos serenos de Abraão e Agar. O fumo se esgarça no ar como neve, pondo na tarde muita nostalgia monótona. Sutil, a brisa se torna tênue vapor de cor violácea e se esvai nas trevas, na solidão. Ao crepúsculo, sente-se a verdade do sonho. Tudo, crenças e angústias, se reproduz no céu roxo e melancólico.

A noite se abre, vaso funerário dos despojos da luz, reduzida a pó. Na paleta do crepúsculo podem-se escolher os semitons – verde-mar, azul-violeta, rosa-chá, anil, granate, lilás, coral. Para Martins Fontes, quanto mais tênue e vago, mais o seduzia, como a morte-cor. Ele adorava o céu quando a tinta cérula emurchava entre pérola e opala, e a luz desfolhava a última flor, numa verdadeira apoteose, entre fulgurações de cores e de sons fantasmagóricos e protofônicos. Lá, via préstitos gigantescos de formas de animais que se metamorfoseavam a fosforear. No cortejo escarlate, a sombra se escancara, e a seguir os Dragões das Cavernas do Nada desfilavam a galope.

Martins Fontes, quando jovem, na sua casa à beira-mar, no José Menino, durante o outono, em abril, ao entardecer, sonhava como um pastor antigo ou zagal, no seu jardim-vergel que lhe parecia um campo de milho ou trigo. O mar, em frente, era imenso prado; as ondas, rebanho de carneiros. Zezinho, deitado na praia, olhava as nuvens que o faziam sonhar, onde via caravanas andando, e faces humanas com medonhas caretas, e que depois tomavam formas esquisitas.

O Sonho lhe dizia: que mais queres, dou-te as nuvens que te deslumbram, enquanto as paixões consomem, matam devagar. As nuvens são viajantes fantásticos que se vão às Golcondas distantes, aos Viçapures mágicos. Os amantes, sob a cromatização candente, sonham castelos e templos. Os poetas veem fulgir miragens miríficas. Assim marcham e assim morrem contemplando Ofir.

Nas nuvens do poente se lhe desenhavam cenas maravilhosas: a volta triunfal de Baco; o idílio pastoril de Dafnis e Cloé; as terras de Labão, onde Jacó trabalhou durante sete anos para colher o beijo de Raquel; os campos de Booz onde se amam a Sulamita e o seu zagal; a casa de Vergílio, solitária, à beira dum caminho, onde pensa e escreve, e recebe os amigos; depois Portugal e os poetas bucólicos; enfim a Provença de "Mireio" e o divino Mistral.

Na hora do entardecer, há na terra santista a paz das catedrais. O sol parece rosácea de ouro num vitral multicor. O ocaso fulge a eferver entre espelhos fantásticos, cambiando os semitons do catassol, vítreos, vulcânicos, escarlates. A luz se lacera em lampejos, incendiando a amplidão. As nuvens tomam figuras imprecisas. Aí se reproduz tudo o que a terra foi e o que será um dia.

Pela televisão, o tempo e a distância desaparecerão. Pelo rádio ouvir-se-á cantar, falar, vibrar, rogar, supondo-se ouvir a voz da selva, do mar, da terra, do céu. A sombra surge e o poente amortalha. Desfaz-se a hipermagia da visão. Finda o crepúsculo dos deuses. Cinza, treva, morte, nada. Nunca mais. É a despedida da hora espetacular com que a Terra nos mostra o pranto a resplender. É o crepúsculo anual em que a experiência contida lembra o pomo sazonado, e o estoicismo de quem se suicida com sorrisos. A foice da lua ceifa nas searas do céu as promessas mais belas.

Num último adeus, vemos a Descrença e a Renúncia, ao cair das folhas, a dourar a doçura dos frutos. Entardecia, mas o luar se anunciava pelo clarão do oriente. Corria mansa aragem. A essa hora, o Poeta, no silêncio de recolhimento, estudava o ceu dos astros, contemplando os mundos invisíveis, perdido nas estradas daquelas regiões inatingíveis.
Então, sentia a paz e a pureza que há sobre o céu, nas amplidões sonhadas. E prosseguia, desfolhando versos, semeando amores, a nos dar poesias líricas, essencialmente líricas, como demonstração do fenomenal evolver da sua arte literária, desde o período de arrebatamento artístico, orientalesco, orquestral, filigranador, voluptuoso, ao período da simplicidade amorosa, da satisfação dos sentidos, do desejo de solidão e esquecimento, com a anulação total do ser no Cosmos, através do qual a poesia é a transubstanciação da vida e da natureza. Longe de falsidades ou de intrigas, o solitário Poeta se desobrigava, e, alto, acendia o seu alampadário, tal como certa constelação que ardia e fulgurava no espaço.

Martins Fontes se encontrava, em certas ocasiões, nesta passagem dos mistérios da vida terrena para a contemplação exaltada de todas as maravilhas do céu, sem o misticismo exacerbado dos ascetas ou dos fanáticos religiosos. Olavo Bilac, seu mestre insigne, ensinou-lhe que para entender as estrelas devemos amar, porque somente o amor cria ouvidos e inteligência para entendê-las. Com os sentidos bem apurados, Martins Fontes erguia a fronte e contemplava o firmamento imenso, infinito, cuja encantação deslumbra e atormenta, onde tudo é vida, rutilância, efervescência.

Dizia Martins Fontes que tinha a mania de olhar as alturas, e ia no rastro dos velhos astrólogos, iluminado pela imaginação. Amando a astronomia, tirava augúrios das suas tábuas, como os videntes. Também Pitágoras, dos seus jardins celestes, ouviu os mundos e vazou os discursos em ouro, enquanto os dos outros são dourados.

O coração de Martins Fontes encerrava um culto ao céu, porque a maior beleza ou a miragem mais doce é a que o céu do Brasil entesoura. A sua fantasia errava pelas nuvens, atraída por forças nebulosas, quando, à tarde, o sol das almas incendiava as montanhas. Não acreditava na existência de Deus como supremo criador e diretor do Universo, imaginado em formas humanas. Idealizava a altura como quem a perscrutava pela grade do presídio, do seu corpo, galé e ateu que amasse a liberdade e sentisse a ilusão da saudade ou da esperança.

Contemplemos o firmamento. Adoremos o céu. Movamos as asas do sonho e ascendamos aos astros pelo pensamento. Se nos enche de torturas, também consola, porque na sua perfeição permite adorá-lo sem estar de joelhos. O céu é a Paria espiritual em cuja altura a alma se extasia. Isso demonstra que a arte é o azul, iluminura cósmica da beleza, do sonho e da harmonia. Quem procura o ideal, encontra-o no céu, onde a morte não existe, tudo é vida e resplendência.

Quando Martins Fontes contemplava o céu, transmudava-se em forças, reluzindo a sua essência na glória da ressurreição. Martins Fontes adorava o céu enfeitiçadamente, porque o que não se vê mas se adivinha, ele coloria. Amava-o quando o céu se irisava e soltava nuvens verde-azuis de água marinha ou fulo-fusco no momento de se aproximar a tempestade.

O Poeta olhava o azul do espaço, sonhava e idealizava a amplitude. Desta forma perscrutava o Universo, mundos, constelações, e retraçava o Infinito. Na organização e em cada pormenor, qualquer coisa de ideal se traduz no beijo, chave do Paraíso – a harmonia, o equilíbrio que Galileu descobriu, Kepler traçou, Hume remontou, Descartes completou a ordem básica; o firmamento externo que é igual à fronte que entesoura um cérebro de Poeta – Diderot, Condorcet, Bacon e Augusto Comte.

Martins Fontes sentia que cada vez mais se acentuava a ânsia de esquecer a terra e ir habitar na lua, deixando a alma volar livremente, fluidificar-se desde que lhe concedessem o ser noutra existência, astralizar-se e eterizar-se em nuvem, sendo perfume e luz.

Era noite. E desapareciam as miragens. O Poeta sentia que o espetáculo do outono tinha, para todos, eternamente, ao entardecer, a mortal poesia, pela qual ele se apaixonou. Então, explicava o espírito religioso da pobre gente da aldeia que, ao contemplar o céu estrelado, como searas e pomares, e, de joelhos, reza implorando a bênção do velho e bom pastor, dono daquelas sementeiras.

O homem, disse-o um ilustre astrônomo, o eterno prisioneiro da Terra, nunca se farta de contemplar a mais esplêndida de todas as visões cósmicas da natureza: o Universo sideral, o mundo sideral, com todas as maravilhas do sistema planetário. A paisagem infinda e luminosa das estrelas onde a terra se movimenta, significando o sonho eterno a ciência, iludindo-nos com a imobilidade milenária no mistério da noite caótica, compõe-se de mundos incomensuráveis, evolvendo perpetuamente, ante cuja imensidade a Terra que só é grandiosa aos olhos do homem egoísta e vaidoso, se torna insignificância geométrica.

Se observarmos o céu, através de poderosas lunetas astronômicas nos observatórios, ve-lo-emos a relumbrar de estrelas. Supomos vê-las aos turbilhões em cada núcleo nebular, e fica-se assombrado sonhando ante o mistério de tanta grandeza. Das nebulosas nevam poalhas de ouro, sementes de mundos, germes, plasmas, embriões de futuros astros.

A alma de Martins Fontes, em êxtase, induzia, deduzia, reduzia e traduzia na catedral da noite imensa, imaginando a orquestra dos astros, as vibrações ultravioletas e os coros mágicos da luz. Mas essa música, que nasce no silêncio, provinha do seu espírito. Toda a matéria se fundia nele, que era a noite áurea e fúnebre, a translumbrar no espaço.

O pensamento do poeta se astralizava ao compreender o céu. Sentia sede, aflição, ânsia. Sonhava o infinito, a eternidade, enormizando a enormidão. Contemplava o firmamento e estudava a astronomia que é a forma, o número, a harmonia, no ilimitado. A Musa Urânia lhe acalmava a angústia de saber. Há um sol esbraseante em cada estrela. A luz, jorrante, extravasa. Fagulham miríades de sóis. Quantos milhões de ilhas estelares tem a Via-Láctea na foz? Quantas centenas de mil anos precisou Uranos para auri-acender-se sobre a Terra? Como serão esses mundos onde Sirius, Aldebaran ou Cruzeiro do Sul são meros faróis?

A noite, sarcófago do sol, nasce na alma como na terra, surge entre mil astros como a pompa funeral duma câmara ardente, acordando os sonhos da paz recôndita das horas esquecidas. A noite se levanta. A lua marmórea sobre no espaço curvo e claro, balança entre nuvens de opala, reflete-se no espelho das areias úmidas da praia.

A lua, a sonhar, pálida e fria, reclinada sobre os coxins do céu, tem o langor de quem acaricia os seios antes de adormecer. Desmaiada sobre o cetim fofo das nuvens, vê o aparecimento de visões que sobem para o azul. Às vezes ela deixa cair na terra uma lágrima e um Poeta a apanha para guardá-la no coração, escondendo-a do sol. O luar, pintor de muros, empasta, pelas paredes, tintas de vivo cristal de rocha, de opala e nácar, de neve e cal. Assim pinta os cemitérios este bruxo.

A Via Láctea refulge de estrelas. Nos pontos escuros existem outros astros. Sob esse resplendor, o Poeta sentia a inspiração que esplendia e cantava como a "Lira do Infinito". Todas essas rutilações de mundos a fulgir nos oceanos são apenas o símbolo do Nada. A noite ou treva, em seu mistério, amortalhará o mundo, reduzindo tudo a cinza, fumo e pó, ao Nada nirvanesco, álgida solidão. Assim findará o mundo, além do tempo, do espaço e da vida, daqui a cem mil nonilhões de anos-luz. A noite, às vezes, apresenta-se macia como a seda, de luz pálida e fria, desdobrando-se como gorgorão cuja peça longa e lisa, em cada prega ou curva, refletia os flocados alvores de madrepérola ou de opala iluminada. Numa noite assim, quando um pássaro trilava, o Poeta sentia um frêmito e julgava ter a sensação de um fio distendido, ou lhama sedosa que se esgarçava.

Os astrônomos se preocupam em calcular o número grandioso de estrelas para conhecer o tamanho do Universo. As estrelas que se veem a olho nu, em tempo bom, com céu desanuviado, atingem a cifra de oito mil, englobando a própria Via Láctea, de acordo com a grandeza de cada série. Da primeira à vigésima grandeza, num total de dois bilhões de estrelas, a luz que elas emanam fica absorvida no trajeto. E os astrônomos calculam a posição exata das estrelas pela medida-unidade do ano-luz que representa a distância percorrida durante um ano pelo raio luminoso da estrela até a Terra, na velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, o que equivale a nove mil, quatrocentos e sessenta milhões de quilômetros.

Astros, estrelas e nebulosas se movimentam a velocidades gigantescas e pasmosas no Cosmos infinito, onde parece que repousam para as vastidões do desconhecido sideral, em constante evolução e transformação, nascendo e morrendo, gerando-se e se condensando. A esse mundo sideral, Martins Fontes levantava os olhos, em constante enlevo, desenfreando a fantasia na cavalgada ciclópica pelo Azul. E devaneava. No céu há estrelas coloridas duplas que parecem unidas, mas resplandecem afastadas. Na terra, como elas, as nossas vidas, em horas de arrebatamento, também parecem unidas mas não estão. O amor e as forças planetárias, com abraços e luzes, tentam fundi-las. No entanto, eternamente solitárias, dentro do tempo e do espaço, vivem as estrelas e as almas.

Há estrelas mortas no céu cuja luz faz crer que ainda vivem. Eis como são as paixões, mortas na mocidade. Há outras, cujo clarão caminha entre sombras escuras, traduzindo, no mistério do sonho, o amor, e que um dia farão raiar a luz no céu, como as paixões futuras. E como é bom sonhar por um país onde as flores, em abundância, brilham como estrelas. Vive-se longe dos males dessas paixões terenas, colhendo facilmente tais estrelas. De repente, ao lembrar as dores, desperta-se do sonho e, e m vez de estrelas, a mão colhe flores mortas.

Martins Fontes amava as estrelas desde menino. Expunha-se ao vento frio das noites a contemplá-las. Julgava-se ente astral, morando na Via Láctea, porque o Azul era o seu tesouro. Lá, entre estrelas, pairavam as almas dos poetas e das crianças. Passava as noites em claro. Dormia de dia. Alimentava-se de lótus. Bebia licores da fantasia e aspirava éter do firmamento. Aí, passeava, cantava, brincava e divagava pelos jardins suspensos do céu.

A terra o desesperava. Adorava os astros e a lua. Em serenatas, bailava e trauteava canções. E as estrelas vinham ouvi-lo. Havia uma es trela que era a sua Dama, em cujo palácio ela o recebia para recitar versos e bailar com as outras estrelas. Os vestidos, de tule finíssimo com rebrilhos cintilantes, cobriam seus corpos de formas frágeis, fluídas, franzinas, e possuíam nomes tão sutis e macios como a pelúcia ou a brisa.

Ao luar, gostava o poeta de ouvir histórias de encantamentos. Numa dessas noites, uma velhinha, a Lua, contou a sua história. O sol amou-a. Casaram-se. Tiveram muitos filhos, no entanto ela vivia triste. O mar se enamorou dela. Cantava-lhe serenatas de amor. Depois, intrigaram que ela correspondia a essa paixão louca. O Sol, ciumento, abandonou-a no espaço, apesar dos seus rogos. E assim a Lua envelheceu sem esperanças de reavê-lo ao seu amor eterno e inconsolável, contentando-se em refletir a sua palidez no rosto dos amantes.

Martins Fontes se afligia vendo o céu, porque sentia condensar-se todo o infinito em seu coração, julgava conter nele o esplendor das trevas, clarões, raios e miragens. Os olhos lhe doíam pela força de calcular tantos astros multiplicados. As nebulosas todas são polens de rosas que se abrem no céu. Ele ouvia o céu cantar, à lua, na catedral da noite imensa. Ele chorava, soluçava, rezava, vibrava, tentava ascender e inutilmente se equilibrava observando o infinito.

A saudade do Além o fazia infeliz porque não sabia onde seria a sua Pátria nessa amplidão, donde vinha e aonde ia. Mas ele era nada, como lhe segredava a Eternidade. A estrela Vênus era a ilha do amor onde ele quisera viver porque ali encontraria quem o esperasse para se beijarem e fundirem dois êxtases na mesma luz.

Assim, diante do mar sob o céu estrelado, no seio da montanha, entre os bosques floridos, mudo de comoção, o Poeta ao lado d'Ela sentia o infinito do espaço e o do amor.

A Terra à noite, quando tudo cessa de lutar, repousa em sono profundo. Visão do céu com a Via Láctea e refulgurar de planetas em fogo, com a lua a resplender no espaço ou a reluzir no lago onde as águas douram sob afago tímido e onde o azul do sonho se evapora, com as nebulosas rolando em fluvial fervedouro. É a hora do amor quando a Volúpia, em voz cariciosa, no silêncio da noite, acorda os corações, ou quando as forças planetárias dialogam sobre o poder de cada um, através das energias cósmicas do Homem, da Terra, de Saturno, do Sol, de Sirius, de Aldebaran, de Arcturus, do Cometa, do Setentrião, do Zodíaco, da Via Láctea, das Nebulosas, do Infinito até Deus.

Como vivem milhões de seres na Terra, que desconhecemos, assim outros seres deverão povoar aqueles astros, com formas diversas, estranhas, com aspirações e deveres diferentes. Como talvez provenham de desencarnações, eles sobem em resplendores, contam os dias de dez em dez anos e são todos gênios. O visionário determinou a data do aparecimento do Cometa. A multidão zombou, riu-se a valer. O tempo passou e um dia o Sábio, olhando através da luneta, bradou: - Ei-lo! Apontou nos céus. E o Cometa correu no Azul, fulgindo, ensanguentando o espaço feito de ouro e rubi, ante o mundo aterrado com a profecia exata do Visionário.

Martins Fontes jamais invejou a sorte das estrelas que contemplava à procura da causa que as guia. Nos conventos do azul, vivem solitárias e, virgens mortas ou noivas abandonadas, rezam, choram e curtem as mesmas dores que nós sofremos, mas ao menos vivem na solidão. Ele pedia que dessem às estrelas do firmamento os nomes dos nossos Poetas.

A Pátria, nessa glória, se projetaria pelo infinito, e com esse batismo se encetaria a paz nos corações, como numes tutelares, velando por nós perpetuamente. Os poetas, depois de morrerem, vão noivar no céu, porque os que amam na vida continuam a sonhar nesse mundo sobrenatural. A alma dos Pierrots transparece na face desnuda como num espelho, e as suas amantes são etéreas. Nas capelas dos plenilúnios cantam e rezam.

Por isso, Martins Fontes, à noite, contemplava o céu. Entre as constelações, Orion, a Linda, atraía a sua atenção. As Três Marias, em pureza e beleza singulares, faziam-lhe ver nelas a Raimundo Correia, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira; ou a Coelho Neto, Aníbal Teófilo e Goulart de Andrade.

Os marinheiros louvam a Alva Estrela do Círculo Polar, porque ela conduz os navegantes aos portos, parecendo a Virgem Maria a proteger e a guiar os navios. Por isso ela é a mais útil estrela do céu. Para Martins Fontes era a Estrela d'Alva. A milagrosa esperança de amor da Estrela d'Alva brilha como flor em botão de rosa que se salva da noite. Martins Fontes sentia a névoa outonal cobrir-lhe o céu de opala, e chamou-lhe Estrela d'Alva. Ela é a alvorada e ele a tarde. A luz da antemanhã roseava-lhe o semblante, e o drama de Martins Fontes terminou ao crepúsculo. Mas consola pensar que a Estrela d'Alva é a mesma que se chama Estrela Vésper do poeta errante.

Ele bebia o licor do ópio estelar, sentindo a lua e amando secretamente a Estrela d'Alva. Fugia da realidade, desprezava o vulgar. Como garça sobre um paul, assim era ele.

Quando Martins Fontes contemplava a Estrela d'Alva, erguia-lhe cânticos de louvor, porque ela o escravizava. Ele se apaixonou por essa flor suprema dos astros, a Estrela d'Alva que o deslumbrava e iluminava, como princesa e senhora do seu amor.

Imaginando-a mulher, quando ela voltava do baile, tarde, as nuvens louras a envolviam. Então, ela descia da altura para vê-lo. Não houve sonho estrelado tão profundo que se igualasse ao dele. Considerou-a rainha na eteridade, dentre as outras estrelas. Usava sapatos de vidro com fitas de ouro, vestia-se de musselina.

Martins Fontes passava noites em claro a vê-la, comparando-a a um lirio-diamante azul. Queria morrer breve para que pudesse beijá-la e noivar no céu, em noite de luar. A sombra no seu vergel deu-lhe inédita impressão sentindo a Estrela d'Alva. A madrugada surgia como rosa de ouro em botão. Já se observava nos alisares do azulejo e no ladrilho a configuração do recorte das folhas, em círculos rendilhados no chão.

A luz da Estrela d'Alva, que ainda brilhava, deslumbrava o Poeta, penetrando-o como onda, entorpecendo-o como terrível veneno. Essa luz possui o mistério, a grandeza, a estranheza da vida ou da morte.

A Estrela d'Alva simboliza a Beleza perpétua e infinita. E as manhãs despontam calmas, cor-de-rosa, com murmúrios que são cânticos à primavera pelo resplendor do azul do céu, azul infindo que engana, porque o espaço é negro. Compara-se à água do rio Azul, espelhando a pureza e correndo plácido. Quem se acerque da margem pensará que a profundidade deve condensar o absoluto da beleza. Engano. Quantos mergulham e voltam à tona cheios de limo. Então, adora-se a mentira e bendiz-se o artifício.

E o sol fulgura no horizonte. O velho artista, com talento, tudo que faz é inédito, tal nos coloridos das nuvens. Martins Fontes louvava-o pela sua inspiração, encantando-se e se comovendo com o seu brilho deslumbrador. Sendo do mesmo ofício, Martins Fontes observava como ele, o sol, espalhava as tintas, e no seu delírio, ao deificá-lo, chamava-lhe: Poeta!

Martins Fontes quis ser filósofo, mas somente se julgava artista, poeta. Sempre viveu exultando diante da Natureza que ilude. A vida é cheia de surpresas. Por seu enfeitiçamento, velho e ingênuo, julgava-se uma criança deslumbrada. Ele analisava a Esfinge, sem saber se era mãe ou madrasta, porque a sua mudez o constrangia. Lúbrica ou virginal, doce ou cruel, sincera ou falsa? Não sabia. O horror lhe enublava o olhar. O enigma é a Natureza, tendo Ísis patas de animália e asas da quimera, porque na cabeça é fêmea, no corpo é animal feroz.

Contudo, Martins Fontes amava e venerava a Terra da qual era filho. A humanidade era sua irmã criadora, compartilhava do que lhe pertencia sem que nada o aborrecesse. Maravilhava-se do que ambos possuíam, e a parte má considerava pecado ante a grandeza na bondade. Humanamente era da Terra. Terrenamente era humano. O seu ser era Terra e orgulhava-se sentindo a terra humanizada nele.

Martins Fontes bendizia e beijava a terra onde o homem nasce, vive, morre e se sepulta. Nem mar, nem céu, só a terra o consolava porque nela encontrava a água, o pão, a fruta, lembrando-se de que nós, em tudo, somos terra.