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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-06)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 66 a 76):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

6

Há, para os sonhadores delicados, imagens como a surdina dum matiz. Na aliança dos sentidos, há certas músicas no olhar; os beijos são como olor do gosto; a flor tem perfume igual ao colorido. Somente os estetas de visões fluídicas, como era Martins Fontes, possuem tão secretas e extraordinárias sensações, tendo à superfície da pele esses mistérios cerebrais, embora a vida se revele concretizada para os outros. Unicamente estes espíritos privilegiados tornam plasmáveis as maravilhas do sonho, vendo, através dos invisíveis, o mundo sobrenatural. Com o dom de argúcia fina, consegue-se exprimir as belezas da minúcia e ver irradiar na luz monocroma do sol uma policromia iridial. Para eles, uma flor que está orvalhada é porque chorou durante a noite.

Num jardim solitário, onde as rosas morrem, sem que alguém as colha, sombras silenciosas desfilam, sob a tarde cinzenta, quando a luz se eleva, cuja claridade esgarça os velários da noite e escancara as portas de prata no céu. Rebrilhos irisados ou eflúvios celestiais, como virgens mortas, desfolham-se num tanque. O luar, no jardim do Poeta, parecia gaze diáfana dum manto que cai do céu. Cantam, ao longe, em vozes finas, em sons graves, serenos, suaves. A brisa deixa perfume de incenso e de lírio.

O Poeta contempla esta paisagem, maravilhado e sem amor, sentindo o gosto de flor de beijo misterioso. Assim, aroma, sons, cores, possuem a maciez do veludo e da neve. No jardim, pairou, diante do Poeta, a Sílfide do sonho, visão vaga e pálida, exteriorização do pensamento, que ele desejava amar só porque ela não existia.

Martins Fontes adorava as coisas transparentes, a água, a neblina, a musselina, a cassa, o vidro, a neve, as nuvens, o alvor efeminado dos convalescentes, os olhos diáfanos, onde a luz, o amor e a sombra que, no ar, baila, descreve curvas e desfaz-se, e volta a brilhar, foge, torna a passar, toma formas variadas, delgaça-se, sobe, sobe e se esvai, como véu de gaze que lhe lembrava uma luz que brilha à neve, e pensa que é um sonho alado de tão fúlgido, nada se lhe comparando pela macieza e é como se fosse a alma ondulante.

Martins Fontes se comparava ao sol. Todo o cosmos radiava nele. A luz se esparzia dele, através dos espaços. Foco zodiacal, a esfera dele prendia os ventos. O seu clarão rolava nas orquestras do céu, e ele, cantando, regia a harmonia dos mundos. Uma energia mirífica condensou-o numa flor, e ele agora era a síntese astral do eterno, o infinito a esplender numa lágrima – Poeta!

Um raio de ouro fulgiu entre os desmaios do luar, por entre as nuvens, de permeio com as morte-cores da alvorada. É a natureza que sorri. O meneio da flor que se espelha à beira d'água e faz sonhar pensando nela, e a melodia do cantar dum pássaro no laranjal, dizem que a Natureza sorri. O morango do seio dela, flor em botão, misto de rosa e rubi, brilha como se fosse a Natureza sorrindo.

A gota de orvalho, trêmula e fúlgida, reflete o céu na ponta duma roseira. O floco irial, volátil, a se desprender, como pérola espumosa, encontra o mar. Nessa gota, vê-se, a amplidão, assim na menor lágrima, na síntese do amor, há todo o sofrimento. Ele não queria ser vendaval mas, à luz da aurora, ser o zéfiro leve, em cuja brisa o espírito parece carícia. A viração suaviza por ser tênue e é mais grata que o mel, preferindo-se o beijo de Arial a tudo o mais.

A substância do encéfalo transmite fósforo. A rutilância se dá sem fim. Desprende luz infindável. O chamejar condensa o poder do calor. O rádio revela inteligência e gênio. O rádio tem a força de transformar a luz em som, condensando toda a magia. Em breve ouviremos até, olhando o céu, a ária dos astros.

Os santistas, que são almas nobres, em lava, moram numa cidade que se chama Ilha do Sol. E assim, dessa Ilha ouviriam a alma de Santos como se fosse a própria voz do mar. Mas, ao longe, plange um sino e sobe o fumo. Som e fumo se fundem nas mesmas sensações e não se diferencia se se ouve a voz do fumo ou se se vê o som. É, depois, a voz do rouxinol, tão maravilhosa que suplanta qualquer voz de pássaro, cuja melodia encanta pelo mistério azul da sinceridade do sentimento, e quebranta a Natureza.

A voz humana possui tanta doçura, é tão pura que nada a excede porque o espírito se revela assim. Quando Martins Fontes desfolhava seus versos, a poesia se enovelava como se tivesse na garganta um ninho ou se nela uma ave sonhasse. O encantamento é tão fenomenal que se aspira a ideia, e o coração resume todo o infinito. A alma nos domina pela voz, eflúvio azul, emanação divina, música e perfume igual ao beijo.

A natureza, à noite, dorme, mas ouvem-se rumores de água fluindo nos açudes, de chios, cochichos, gemidos, ecos, suspiros, estalidos. A sombra, misteriosamente, amoita-se no abismo da noite, donde vêm vozes veladas, diluindo-se como o perfume. No sertão, a estes murmúrios da floresta chamam o quiriri, a poesia da Natureza quando sonha.

A lua nova, foice de prata nas searas do céu, ceifa as espigas. Isso prova que há lá um pastor, cantando trovas às suas pastoras. Rebanhos de ovelhas balem e pascem na campina. Vindo da tenda de Saul, ouve-se um arpejo doce que se dilui no ar.

Se alguém estivesse na iminência de praticar uma loucura, em estado de revolta, e ouvisse a melodia de um piano, ou o canto de mulher, sustaria qualquer gesto, fosse qual fosse o desespero que torturasse o desgraçado, porque a música, como Estrela D'Alva, nos livra das trevas e nos ilumina a razão.


Martins Fontes amava a música dos maestros célebres, a música sublime, clássica, orquestral ou de câmera, porque a música lhe produzia a sensação aérea de um bem extraterrestre, um bálsamo bendito, partindo as correntes da vida para se difundir no azul; porque a música eteriza e sob o seu afago nos faz provar, no perfume, o espírito da aragem, e pressentir no amor o prazer do indistinto, sugere a ilusão de outro mundo melhor que este da Terra, cujo prodígio nos foi concedido para lembrar os sonhos que jamais realizaremos.

Ele ouvia, em êxtase, sob deliciosa penumbra, a música de Wagner, de Tchaikowsky, de Mozart, Haydn, Schumann, Bizet, Chopin, Debussy, Ravel, Falla, Massenet, Borodin, Beethoven, Weber, Berlioz, Mendelssohn, Saint-Saens, Gluck, Liszt, Bach.

Contou-me Martins Fontes que, para traduzir em verso as impressões da música destes geniais compositores, ficava horas e horas no lar querido do poeta Heitor de Morais, ou nos dos amigos dr. Santos Silva e poeta Henrique Montandon, a ouvir os trechos da sua predileção, ora do piano, ora do gramofone. Tomava notas rápidas. Em casa, sob o doce enlevo da sua pasmosa memória auditiva, compunha os versos, cujos ritmos se assemelhariam aos das músicas.

Era vê-lo. Transfigurava-se. O cavaleiro do amor, paramentado com trajos de teólogo, regia a Missa Coral no altar da Capela das Flores. A música orquestral de trompas, órgãos, clarins, carrilhões e tambores, de violoncelo e violino, em cujos tampos os SS querem dizer Soluço e Sorriso, acompanhada de coro, ressoava na Catedral. Laranjeiras, jasmins, angélicas, magnólias celebravam o casamento da Terra e do Sol. E Lohengrin cantando, elevava no espaço a sinfonia da marcha nupcial…

O Poeta sonhava que as flores que descrevia bailavam num vergel entre os resplendores de um carnaval que cantava ao sol, onde as aves remodulavam descantes e as mulheres fulgiam entre névoas róseas, rimando lais, vilancetes e rondéis. Chopin surgia de preto. Paganini fazia soar o violino. Nisto, a valsa terminou, o sonho se acabou e ao longe se via Margarida chorando num paul.

Quando Martins Fontes ouvia música, supunha que versejava uma canção, seguindo os volteios, a espiral da ária, no seu percurso que muitas vezes lhe parecia um vago som de água caindo. Então, transfundia-se ou transpunha-se a um céu branco, e esse som era um tom de arcada que se desfolhava e diluía, ou o estilhaçar leve de um cristal, ou os semitons em "al" e "E".

As catedraias são sinfonias. A partitura e a massa coral da arquitetura se irmanam por analogia. O aleagro, adágio e andante, o arco, o fuste e o florão, timbram exatos. As orquestras se ouvem pelos olhos; a torre se levanta pelo ouvido, para louvar os sonhos da matéria. Em amplitude divina a alma de Brunelleschi, ou de Beethoven, "fulge na pedra quando a pedra canta".

Para Martins Fontes, a música evangeliza; a música é a religião da anarquia; a música, volátil, é o aroma do beijo, torna-o angélico; a música, água da alma, oblui e branqueja; a música, luz do espírito, perfuma e purifica; a música, na magia, na abstração, miragem do infinito, é o único traço unitivo da terra ao céu; a música é o luar do nosso espírito, a clave de sol do sonho; far-se-á pela música a harmonística dos povos; a música não se ouve, sente-se; a música é uma revelação superior à sabedoria filosófica; a música é cerebral, puramente cerebral.

Martins Fontes sinfonizava pela imaginação, traduzindo os sons pelas cenas fantásticas e assombrosas, pelo sabor ou elo perfume característico. A música italiana lhe produzia a sensação do mel a fluir, a uva rosa, a laranjeira em flor, suspirando ao relento. Uma voz de mulher se desfolha ao luar. A serenata canta. A música italiana é uma bênção divina e só se pode comparar à doçura do beijo.

A música francesa é um primor de graça, de leveza, de viveza, delicada como seda ou a gaze, fazendo sonhar os velhos tons de contradança, incomparável e indefinível na fineza. Ouvindo Schubert, surgia-lhe a cena em que um amante pergunta à mulher amada quando poderá lhe confessar a sua adoração e falar em segredo à sombra das árvores, ao que ela respondeu que será quando ele disser que a ama e lhe der o beijo etéreo, chamando-se a esse instante o Momento Musical.

Agora uma noite de luar. A terra parece marmóreo cemitério onde um órgão chora o cantochão do amor. Nos lagos dos jardins deslizam cisnes e serafins. É um noturno do glorioso Chopin que contém a saudade, exprimindo o segredo de amor.

Depois a Grande Polonesa, hino pela liberdade da Polônia, exprimindo também o Poeta o seu desejo de libertar a Pátria. A música se torna caleidoscópica, transforma-se em cenas. Vê-se uma princesa com um vestido de cetim que ressoa, dando beijos sonoros às crianças que lhe chamam a Fada Bombom. Agora, uma velha gavota do século XVIII que faz evocar Buffon ou lembrar Crétry. Um tenor acompanha um par que dança, cantando, ao som da espineta que Mozart, menino prodígio de dez anos, toca divinamente.

Depois é uma acordina que dá as horas tocando uma sonata trianonesca de Mozart, e que transformou os hábitos duma família burguesa de tal forma que em pouco tempo todos viviam sob o enlevo dessa música, imitando gestos e costumes de outros tempos, fazendo lembrar as personagens de Watteau.

Mozart cresceu. Tem vinte anos. Ei-lo em Versalhes, tal qual um rouxinol, maravilhando pelo gênio e pela beleza, delicado e fino. Quando cantava, a sua voz de artista lembrava uma flauta encantada. Todos o amavam. As mulheres disputavam-no e forjavam intrigas palacianas para conquistá-lo.

Mozart, um dia, fugiu da França para evitar as tragédias do ciúme, e de longe enviava ao mundo os acordes da Marcha Turca, hino à guerra de extermínio dos turcos, na cavalgada da morte, pela Terra, tal como nas estepes da Ásia se ouvem os galopes dos cavaleiros, soldados russos do Tzar, numa corrida louca, sem parar, ao encontro da Morte, acompanhados pelo vento furioso. Seguia-se a este furacão sonoro uma sinfonia patética que explicassea a tragédia do ateísmo, a trilogia das interrogações, o eco, a miragem, as aspirações da vida, onde tudo é inútil, fumarada da vaidade que finda na morte, o nada, o silêncio.

Ao som da guitarra, ao luar, cantavam uma declaração de amor que se calava. A vida assim era uma serenata interrompida. Mas um rouxinol, quando canta, enleva, deixando fugir da garganta o trilado, modulando a escala musical. E, na primavera, vai-se ao bosque ouvir cantar o pintassilgo, o tié, o sanhaço, o bem-te-vi, o canário e o sabiá, chapins, cardeais, gazis, pixoxós, xexéus, tico-ticos, curiós, siriris e xirras, juritis, patativas, sofrês e colibris em chilreios e gorjeios.

O voo dos pássaros encanta e faz sonhar. Quando voam, cantam e ouvimos pelo olhar. Um bando de andorinhas pousou em fila. Um cisne arensa ao som do violoncelo. Vai morrer. A alma se evapora e o ritornelo se esfuma em surdinas etéricas. Dizem que uma fada, na floresta, ensinava os pássaros a cantar, emendando-os quando erravam. O lago do Castelo num parque lembra pálido espelho, tão triste como belo, perfumando-se da essência do sonho. A paisagem se prateia em multiflorações brancas sob a neve polar. Há nostalgias liliais e lunárias, e um esvoaçar, chover, como orvalho, de plumas alvas, pétalas sedosas.

Em Avalon, à meia noite, ao canto dos troveiros, surgem as fadas que vão colher raios de luar à beira dum lago. Silêncio no bosque. As fadas tramam grinaldas argentadas com rebrilhos de ouro, com cintilas de diamantes. Enquanto elas trabalham um anão velho vigia as estrelas. Uma dama de olhos verdes passeis, por horas mortas, sobre o glaciário dos fiordes da Noruega, com olhar gélido. Afinal, ouve-se uma sinfonia negra ao por do sol, quando a tribo se reúne. Um cafre dança num tambu, batendo com os calcanhares, contorcendo-se aos pinchos, pulos, volteios.

Anoitece. A dança continua em desvario. Esses ritmos alucinantes vieram para a América, dos quais vermelhejou a música dinâmica do Norte e surgiu a música amorosa do Sul.

Martins Fontes tinha, para embalar o coração, uma adoração dupla: enquanto tudo se estiolava, seguindo as regras do seu ideal de poeta ateu, ele ouvia música e olhava o céu azul. Outras vezes, comprazia-se a imaginar danças, pelas músicas que ouvia. E transpunha-se à região do sonho. À meia noite, ao luar, as Wilis, antigas namoradas, noivas mortas, bailavam uma valsa, à volta dos lagos, com véus alados de tule, como neblinas ou tênues rendas, fúlgidas, fluídicas, engrinaldadas de íris verdes, tomilho e manjerona, muito lépidas, lúbricas, alípedes, sobre relvados, em bando, até que surgisse o dia, desfazendo-se, pouco a pouco, no ar.

No entanto, Martins Fontes foi notável, entre quase todas as suas poesias, na descrição da Dança Macabra que se deve recitar ao som da composição musical de Saint-Saens, como ele a compôs e recitou em casa do saudoso poeta Heitor de Morais: - As badaladas da meia noite plangem. Os fantasmas, os gnomos, os espíritos e vampiros saltam aos pinchos e trambolhões. Uma guitarra mefistofélica grasna a serenada da meia noite. Vultos teratológicos pululam entre sombras de aranhas, morcegos, víboras, sapos e moscas gigantescas. Surgem monstros medonhos, capri-barbudos, a fazerem esgares. Ouvem-se apitos, silvos, assobios, vozes fanhosas. Passam legiões de hórridos diabos. Barões, duques, marqueses, príncipes desfilam entoando o hino apostólico ao seu Senhor. Leonardo, o Negro, está sentado num trono fantasmagórico, enquanto a arquidiaba Lilith preside à imunda feitiçaria. Perto, corpos limosos rolam sobre a relva e se espojam refocilando no lodaçal. Na floresta, escutam-se gemidos roucos. Leonardo, o Negro, urra, terrivelmente>

- Mortos, erguei-vos do fundo da terra! Vinde ao "sabbat"!

E os defuntos saem dos túmulos. Os espectros pulam, desengonçam-se, batem sistros. Começa o baile. Tatalam tíbias. Chocalham crânios. Roçam-se rótulas. Há ruídos secos de pedra e pau. Os ossos dos esqueletos rascam, estalam, raspam-se, aspérrimos, bailando juntos; desarticulam-se em danças zangarilhadas até o alvorecer quando o galo cacareja a anunciar o dia. Somem-se as sombras dos mortos. Somente fica de pé sobre o túmulo o poeta lírico que ainda toca a flauta entoando a marcha fúnebre que exprime o vácuo do infinito eterno.

E na sombra, no silêncio e no sonho, penetrou Martins Fontes, para repousar a imaginação ardente, inquieta. O sonho nos transporta ao céu, e se todos fossem como os poetas, erguendo para lá o olhar suplicante, a humanidade acabaria por voar. A sombra é comparável à surdina da melancolia ou ao som de flauta, veludo azul ou suspiro adocicante. O silêncio, que jamais foi absoluto, parece eflúvio irial da nostalgia. É o lirismo puro sob forma impecável. Assim, Martins Fontes, como um palhaço ao sol, tendo bebido ponche azul, sonhava ouvindo tocar a Dança Macabra. Alegre e inspirado, queria tornar a vida galhofeira, e a vida nada vale.

Nos jardins de Golconda, onde tudo é cor de rosa, dois amantes valsejam continuamente sem parar, trocando beijos e suspiros. Ela volta do baile e no camarim adormece. Nisto, o Cavaleiro Luar, que passeava pelo parque, entra pela janela, beija-a, e começa também a valsar, enquanto ela sonha, dormindo sempre. O quarto se embalsama com o perfume duma rosa. Depois, o Cavaleiro se retira. Ela acorda, sorrindo, e volta a dormir. E a rosa começa a se desfolhar.

Ouve-se ainda o tropel das Walkyrias, que imita, na desfilada, o trépido retroo das centauras fugindo. Lá vão elas, voando, ao Walhala, quadrupedeando a estrupidante marcha. Wagner rege a orquestra. E ouve-se a cavalgada das belicosas filhas de Watan. Por fim, surge Carmen, bailando e cantando ao som de castanholas, para dizer que é flor de Sevilha e contém em si todos os ardores do sol de Espanha, azougue nas veias e vitríolo no olhar. Dança a zambar e nos seus requebros há assanhamentos de pantera e colubrios e víbora…

E como chama ardente, revoluteia, mostrando em desvario olhos e cabelos negros, batendo no pandeiro que cascalha estridulamente, enquanto um toureador se ajoelha a implorar amor inutilmente, a quem só quer a quem a não ama. E somem-se as imagens que a música sugeriu. A água do mar límpida parece de ouro e cristal. Silêncio. A calma da paisagem sugere também a imagem da beatitude. Ao longe, passa uma vela e o Poeta e Cavaleiro desejaria segui-la para nunca mais voltar. Sonho! Sombra! Silêncio! Cantando-os é como quem balbucia um nome, e uma lágrima se desfolha ao luar, o luar – o som mais lindo que há na língua portuguesa, confessou o pintor Gerardenghi, um dia, a Martins Fontes.

Martins Fontes preferia tudo que fosse fino, as cores anuançadas, a maciez do veludo, a suavidade mortecor, nada de cores vivas nem luzes fortes. Ele amava todas as flores que lembrassem o aroma azul e, pelo seu perfume, a luz e a safira, como amava o perfume do lilás. Adorava o cravo, o lírio, a violeta; consagrou um culto às rosas, e por elas sempre se inspirou, comparando-as aos poetas Ronsard, Rostand, Gautier, Banville, Heredia.

As rosas são as flores mais preciosas que joias, incomparáveis de graça maravilhosa, às quais, pela forma e aroma, nada há que se compare senão à boca da mulher amada, e que espelhavam o coração do Poeta. Elas falavam-lhe pelo perfume e beijavam-no com as pétalas. A cor de rosa se compara à cor rósea da coxa de cetim da morena brasileira, menina e moça. Disso, ele teve a prova quando, um dia, passeava com uma linda moça que ele adorava como um anjo ou flor a se entreabrir, julgando-a menina. Ambos foram ao bosque, num dia frio e ventoso. O vento, na fúria, levantou-lhe as saias, e ele, então, viu-lhe o rosado da coxa, a pele cetinosa, verdadeira carícia dos olhos, pelo que lhe revelou que ela era já mulher.

Contemplando uma rosa, no jardim, ela desfolhou-se como beijo da luz, ao falar-lhe de amor, e não pode saber quem era essa mulher. A rosa de Jericó é o símbolo da paixão dum velho. O Poeta não deixava de repetir que fazia versos como as roseiras dão rosas ou abril faz rosas. Sempre o comoveu encontrar, num livro de versos, folhas de rosa ou uma violeta que recordasse um beijo morto, juramento, esperança, sorriso, em cujo perfume se concentrasse uma alma de mulher. Quem encontra a flor, presume que se ame alguém e segundo o voto: é lírio, cravo, jasmim, malmequer… Essa graça quer dizer saudade ou ternura ou outro nome.

Abençoada mão que, nesta vida, marcou um soneto com uma flor. O Poeta desejara ser caravela vitoriosa, em seus sonhos, e não passou de batel cuja rota se segue distraído; desejara ser obra imortal e foi romance que depois de lido se larga abstrato; por fim, desejara ser rosa e foi flor silvestre que se desfolha distraidissimamente.

Ele admirava as raparigas americanas porque pareciam porcelanas de opala e ouro, de neve e rosa, carnes de pêssego e de açucenas que têm sabor de folhas de árvore nova, cheiram a essências da primavera, são deliciosas como os morangos, sem vestígios de cremes, são independentes, sem preconceitos nem leis mundanas. A todas, Martins Fontes enviou tantos beijos quantas as estrelas do Brasil.

Ao Poeta, a alvura do cristal maravilhava-o, comparando a sua fragilidade ao coração humano. O lilás era a cor da sua predileção: ele adorava as cores como as flores, desde o cinzento ao granate; gostava dos doces franceses; amava o perfume que resumia a carne e o sonho da flor, sobressaindo o do beijo, o bombom lilás do amor. A palavra damasco fazia-o confundir a quentura da seda e o macio da faruta. Com a pintura em aguadilha de ouro ou aquatinta das rosas, conseguem os chineses levezas de vapor. Assim, os poetas colorem com palavras de tons aguados as tristezas e as ternuras.

Martins Fontes jamais deixava de louvar a Primavera porque nessa estação o céu se irisava de ouro e pérola. Vênus, variando os tons, parecia ora gris, carmesim, rosicler, rosa-chá. Tudo era azul e lilás, através dos vidrais da fantasmagoria. O impossível, o delírio, o perfume da estrela, o jasmim, a camélia e a esmeralda – tudo viria quando o seu último beijo reflorescesse ao sol do seu primeiro amor.

Martins Fontes imaginou um diálogo entre a Rosa e a Estrela. A rosa se admira da beleza eterna da Estrela e esta a consola dizendo que ela, Rosa, é feliz porque o seu sofrimento dura somente um dia. Uma vez, uma criança, ao colher uma flor, foi advertida pelo Mago que a flor valia um tesouro e curava as dores da existência. E a criança, sorrindo, foi colher outra flor. Contendo a espiritualidade das flores e das mulheres, com tons de opalas róseas, de curvas e linhas impecáveis, a flor do baile provinha dum mundo ideal. Foi a beleza, a perfeição, que durou apenas uma noite, como tudo na vida.

A jambo-rosa era, para Martins Fontes, a fruta da tentação, de pele perfumada como a das morenas. As laranjeiras, em Mirassol, quando se engrinaldavam de névoa e orvalho, ao rosear das madrugadas, pareciam noivas. Ao meio dia, ao sol, pelos vergéis, lembram campônias cantando e rindo. À noite, nos descampados, como freiras, as laranjeiras todas de branco, semelham-se a noivas a rezarem. A laranjeira cobriu-se de flores. A noiva se ataviou para aguardar a manhã quando ela desposaria o seu Poeta e Herói.

Mas, de noite, o vento sacudiu a laranjeira e deixou-a sem nenhuma flor. Martins Fontes quisera cantar, na despedida da alma, a cor, a música do amanhecer, e o ideal fugaz, em cuja essência se inspira a graça do sobrenatural. E esbater o soneto com o consolo de o depor no céu de rosa em botão, como um sorriso de criança dormindo e sonhando com os anjos. Ariel, na primavera, trocou a tinta das flores, em mutações caprichosas. Assim, as rosas ficaram roxas e os lírios verdes com a folhagem de cor anil; os beija-flores de cor preta, em branca. Todos os deuses se admiravam desta mudança na Natureza. Ao Poeta, doía-lhe ver a violeta azul, ao expor-se ao temporal e ao sol, rolar pelas ruas quando melhor seria que tivesse murchado à sombra, como se fosse o símbolo das mulheres que se perdem. Assim, o amor-perfeito era a sua flor querida pela variedade de cores e suas mutações, que ele comparava à volubilidade de certas mulheres.

Os cegos têm a ideia do verde das campinas, e do azul do céu, e guardam nas retinas a limpidez do mar, recordações claras da espécie. Veem melhor porque o poder de quem lembra ou deduz é aumentativo, como incentivo dos devaneios. Eles sonham as sete cores do íris positivo, e a luz assim é mais linda.

Ninguém como Martins Fontes amou o perfume, e com volúpia igual, desde os que a Natureza entesoura, aos que o quimismo resume em fluidez de extrato. Ele, pela idealização e aplacando o seu mal, aspirou o perfume que a estrela concentra. Provou-o aos milhões, tendo a concupiscência de os irmanar numa só fragrância. Mas, na terra ou no céu, não haverá aroma que se compare ao que dimana do rosal da carne em flor, da amante.

Ele próprio sentia que dele se exalavam os vapores que há nos trigais. Comparava o seu corpo a ânfora de argila a rescender e a transbordar. Certa noite, entrou no quarto, pela janela, um odor feminino, e ele ficou pensativo para descobrir de quem era, se das flores do jardim, se dela. Talvez, Ela sonhasse com ele e esse perfume viesse da saudade do último beijo, depois que ela lhe recitou uma estrofe, olhando-a ao sol e não sabendo se a sensação era música, aroma, sol, ou veludo. Outra vez, trabalhava, à noite, no varandim, quando aspirou a essência de mel e rosa que vinha dos moitais, que lhe lembrou a floração dos jasmins e mimosas, fazendo-o rever a Côte d'Azur, no mês de maio, quando, ao luar, sua noiva lhe deu uma flor no jardim de Val-Rose.

Na mais requintada sensibilidade dos sentidos, Martins Fontes percebia os delicados perfumes e os sons mais imperceptíveis, como entre a concha e o leque – numa se conserva a surdina do mar e o murmúrio de um coração chorando; noutro o aroma e o frescor da face que se beija. Entre cem aromas, ele preferia o sândalo oriental porque tem o calor carnal que trescala o corpo durante o instante do amor. A camélia não tem cheiro, mas o seu candor ultrapassa o jasmim sem a essência da gardênia que é odorosa e perfuma um jardim. Mas certa camélia que lhe deram em São Carlos tinha perfume, e descobriu o motivo – esteve no decote duma patrícia elegante, em contato com a sua pele em flor. As flores do céu, de semitons furta-cores ao luar, não tem perfumes, porque os deixaram no céu ao descerem a um paul. É por isso que todas as flores são da Terra e as hortênsias do céu.

A manga, cheirosa, rosada, verdadeira delícia, lembra o rosto moreno de certa mulher que Martins Fontes amava. A manga concentra as diversas cores e o olor de todas as flores e frutas. A rola branca, a pluma leve, a timidez, a airosidade, a graça, não se descreve com palavras; mas sim a surdina trêmula, o ondulejante duma cortina de cassa. A manga parece dizer que ama e dela se esvai um beijo, como perfume inexprimível e sedutor.

Um torpor tropical evola-se dum cais à beira-mar onde fumegam panelões de alcatrão. No fumo que se espirala no ar, ela surge seminua, dormindo cheia de perfumes de sapota verdoenga, ananás, tamarindo, baforando um cheiro acre, amargo, de fruta do equador. Então, ela desapareceu lenta e molemente, como um barco à vela, rumando ao largo. Isto explica o fato de vermos muitas vezes, por efeito da sombra ou da miopia, aspectos excêntricos nas coisas. Causa-os espanto a ilusão e não a realidade. No escuro da noite, costumamos ver figuras estranhas, fogos-fátuos, fantasmas.

O hálito abrasador dos jardins de Dabul e Bengala foge, em vaporação do corpo dela, perturbadoramente. Esse perfume nos faz percorrer a escala da volúpia oriental. A Índia, donde nos veio o culto da claridade, condensou-se nesse perfume, com ardor. Alumá encofra a energia do germe no solo dos trópicos. Assim, ele se sentia inebriado pelo defumadouro que vinha do epiderme dela.

Quando dizemos agradavelmente de qualquer coisa que é bela, é porque nos deu prazer e achamos o requinte de bom gosto. A arte se desvela nos paladares, estampando-se em nosso rosto a delícia do aroma de mosto espumante ou do sabor de pêssego. O tato é igual ao gosto, em que prepondera a sensação, ou à seda que dá a sensação da epiderme da mulher. O beijo irmana os dois sentidos e possui a equivalência do semitom azul da porcelana chinesa, fina, lisa, macia. É como certos paladares sutis e erradios criados pelo amor à lua, comparável à música com gosto de luar.

Martins Fontes considerava o vinho bom e belo. Sempre o amou e gostava de lhe ver o rico tom roxo, dourado ou púrpura. Cindo do alto, devagar, na taça, ouvia-lhe o som, fosse Porto ou Champagne. Um frade capucho dizia que há nos sabores do vinho de Corton cheiros de rosas e rosmaninhos. Louvava os vinhos da França, de ouro veludo, sangue ou sol, que no copo de cristal, fúlgido e fulvo, reverberam. O vinho de Tokay tem o sol dentro, o sabor de topázio líquido, e encerra, capitoso e dourado, a quintessência do Cosmos; nimba-o a luz dos olhos um perfume de estrela, rosa, pêssego e mulher; na sua volúpia há mil delícias…