I – CAVALEIRO DO AMOR
8
Começa a longa peregrinação pelos continentes da Terra, perscrutando povos e paisagens, na companhia de tão admirável cicerone. Por noite
morta, Martins Fontes assombrava-se de ouvir o vento colérico e o mar violento. Era uma paixão que possuía ao sentir o eco do cavalo fantasmal do Ar, em que a sua fantasia de Cavaleiro do Amor montava para inventar guerras e espalhar terrores, para
voar a todos os cantos do mundo.
Sobrepairamos em Delhi, na Índia. Nos templos de naves colossais da cidade imortal onde Lahore sorri, mil sacerdotes, em coro, celebravam o Natal, vindo os fieis de todas as partes da Índia, com festas, procissões e marchas patriarcais. À volta, a
natureza maravilhava com as suas florestas, animais bravios, insetos venenosos, aves raríssimas.
Perto da cidade, um profeta meditava sobre a vida e "amaldiçoava a ideia universal de Deus", considerando que tudo é poesia e fumaça e volta ao pó, nada somos, nada fomos e ao nada tornaremos, de forma que o homem ao morrer deve cremar o corpo; e
se a ideia de Deus é a suprema desgraça, o homem será maior e melhor sendo ateu.
Chegamos à Mesopotamia, depois de atravessar a Pérsia, a terra de Shaharazade, onde Martins Fontes hauriu a inspiração dos seus lindos poemas orientais, que se referem a lendas árabes, a fantasias estranhas. Evoca o Oriente misterioso e luxuriante
que empolgou o seu maravilhoso espírito, sobre o qual escreveu páginas de soberba orquestração verbal, com predomínio do motivo árabe, em tons e semitons da letra "A" da língua portuguesa, em que era mestre. E contava que havia numa caverna, dentro
da terra, um dragão que trucidava as donzelas para lhes comer o coração, com que aplacava suas fúrias e cujo sangue transvazava em ondas e caudais pelos rios. Heróis e guerreiros que vinham batalhá-lo, eram vencidos, até que um dia certa jovem
jurou dominar o monstro. Entrou na furna do dragão a cantar maviosamente, enquanto o pai, o Grão-Vizir, ficou à porta, chorando o triste fim da adorada filha.
Passou a noite. Veio a madrugada. Com geral estupefação, saiu do antro um moço gentil ao lado da princesa. Ele se chamava Schariar e ela Shaharazade. Pela astúcia e pela beleza, com a terna melodia do amor, Schaharazade domou o furor intérmino do
endrícego. É uma variação da lenda das Mil e Uma Noites, contos árabes, com que Shaharazade entreteve o sultão, para evitar que ele continuasse, barbaramente, a sacrificar as virgens que, pela degolação, no dia seguinte ao do casamento.
Foram mil e uma noites que, todo ouvidos às histórias engenhosas, passou o sultão esquecido da ferocidade que o dominava, pelo ódio à infidelidade das mulheres. O sultão, admirado da prodigiosa memória de quem lhe contava lindas e intrincadas
histórias, durante noites intermináveis, sempre ao seu lado, sem desfalecimentos, e da ousadia de se expor à morte como as precedentes, resolveu poupar-lhe a vida e conceder a liberdade a todas as outras inocentes e virgens que se obrigavam a tão
estúpido sacrifício.
Martins Fontes escreveu os versos de "Shaharazade" sob a inspiração das histórias de "Mil e uma noites" que ouvira em criança, no lar paterno. E tivera, por isso, o capricho de dar o nome de Shaharazade a uma lâmpada que o seduzia e lhe infundia
amor. Era verde. Acendia-se no escuro sobre o relvado. Queria ter esta lâmpada sobre a sepultura. Todos os versos que compunha sofriam a influência da lâmpada do Sonho que reverdejava no jardim da sua casa.
A saudade desse tempo era o motivo dos belos versos de entusiasmo pelas histórias de Shaharazade ao sultão, que o Poeta comparava a frascos rútilos, de onde se evaporavam os macios eflúvios, as essências miríficas das rosas. Entre incríveis
trabalhos e atropelos, em tempos frenéticos, passava noites inteiras a escrever versos, porque foi inspirado, em criança, no seu lar, quando ouvia, pensativo, de olhos arregalados, os contos árabes.
O Oriente mágico, tal qual a Eça, deslumbrou-o e fê-lo sonhar com o manto negro da noite de veludo onde há mil orifícios siderais. E as estrelas são os olhos de Allah, mirando a humanidade. E transportou-nos a imaginação ao fantástico país dos
árabes.
O aparecimento dos versos com temas árabes coincidiu com a luta religiosa da Palestina entre sírios e judeus, por causa de velhas e pretensas questões religiosas. O árabe é nômade na própria terra. O judeu não tinha pátria, porque preferiu emigrar
para o estrangeiro em busca de fortuna. Aquele fixou as fronteiras das terras por onde perambulava. Este pretendeu voltar à terra natal e reconstruir a nacionalidade com os correligionários da seita, espalhados pelo mundo inteiro, onde os perseguem
e odeiam pela fama de usurários e desordeiros, injustamente.
Martins Fontes admirava a rutilante literatura asiática, e de tal país de maravilhas proclamava que o seu encantado coração era da Ásia do seu sonhar, da Ásia sapiente, sonora, onde a poesia era uma flor da velha Arábia que emurcheceu em jardins
estranhos. Acompanhemo-lo nas viagens ao Oriente parafraseando as suas embaladoras sinfonias verbais. Chegamos à feira de Okado, para assistir ao concurso dos cantores que vão aos jogos florais. Ao sair de Kaaba, vimos, no mercado, um velho, sob o
toldo vermelho dum bazar, a analisar a concha de seio formoso. Vendiam ali escravas sírias, armênias, búlgaras – os piratas de Tunis e Fez que as expunham nuas. Mercadores e traficantes ofereciam ao pregão somas fabulosas de dinheiro:
- Quem mais dá? – Leiloavam um ídolo de Paros, desnuda, olhos azuis, cabelos cor do sol, dir-se-ia feita de jasmins e rosas. De repente, Martins Fontes bradou:
- É minha esta mulher, seja pelo que for, custe quanto custar.
E a peso de ouro dos seus versos, como rei dos cantores naquela feira, ele comprou a escrava Leilah. Daqui seguimos para a festa ao luar em Bagdad. O Hass-el-Khul celebrava, no Palácio de Harum-al-Rachid, a Festa da Primavera. Resplandeciam
lustres, lâmpadas, candelabros, multiplicando de mil cores as refulgências. Bagdad refulgurava, entre clarões, como céu de verão todo refulvo. Bagdad, a cidade do amor, a Casa da Concórdia, iluminava-se e parecia Odalisca ardorosa ou crespa,
sandecina e coruscante flor. Fulvejavam os alcáçares. Relampejavam as mesquitas.
A cidade oirejava, às vezes, de revérberos vermelhos, fugidios. Esfervilhavam os bazares. Dentro dos alcáçares havia vivezas, rebrilhos, sedarias, fitas, cetins, veludilhos, bordaduras, alacridades, luzenças, onde predominava o granate. Nas lojas
rumorosas, acumulava-se tudo quanto o Oriente encerrava de especiarias raras, desde a pérola à porcelana, que os persas, assírios e indianos trazem do Tigre, em naus de velames escarlates. Nas recâmaras amplas, vendiam pêssegos, tâmaras, alperches,
figos, romãs.
Pelas ruas, havia tumultos, algazarras, azáfama de tipos de todas as raças e escravos de várias clores. Bagdad admirável que foi a joia de Mohamad que possuía livrarias, cenáculos, escolas, cursos, asilos, academias, era o reino dos Poetas;
inventou a medicina, a pintura, a música, a geometria, a química, a astronomia, a higiene; era um ninho de estetas. Ali se louvava a inteligência como único lenitivo na amargura da vida; praticava-se a poesia; amavam-se os filósofos e
glorificavam-se os gênios.
E Martins Fontes bradava: Nada há que se compare a Bagdad, terra do sonho e do prazer. E passam em roupagens refulgentes, o Grande Harum e Giafar; mais além, num jardim adorável, deslizava, aluzia e sumia-se linda mulher. Bagdad festejava a
Primavera com alegria e fogos de Bengala. Os cavalos, aos pinchos e relinchos, passavam paramentados em procissão. Os camelos desfilavam reguizalhando sequins e cobertos de terciopelos. Os tamborins retutucavam. Os cornetins e os flautins tintiniam.
Levantava-se das fontes de Bagdad a sinfonia da água. Cantavam. Dançavam. As músicas evolavam-se dos corações entre beijos… ouvindo-se triste canção: descrevia-se a lenda das opalas que mudavam de cor quando as sultanas eram infiéis. O grão-senhor,
a horas mortas da noite, ao luar de Istambul, mandava que se metessem em sacos as odaliscas condenadas e as atirassem do alto do serralho ao fosso cheio de água onde tentavam, desvairadas, soltar-se, lutar, vencer!; ou segredando-nos os desejos de
Sara que tanto aspirava chegar a sultana para viver nos luxuosos palácios. Ou o deslumbramento da formosa Rosmanilha quando Almotamid, o mago sevilhano, lhe mostrou a neve que ela tanto queria ver, no alvejar da floração do seu jardim,na primavera…
Deliciamo-nos, assim, com este vinho capitoso, licoroso, da parreiras da Arábia, de essência fina, embriagadora, que nos aqueceu a imaginação e enlevou o coração.
Martins Fontes, que desta forma estimava o orientalismo precioso, luxuriante, tinha no jardim da casa onde morava um lindo pavão. Era excelso. Quando abria o leque da cauda, refulgia ao sol. Nababesco, nobre, nervoso, mostrava o azul celeste das
asas que pareciam as vestes do Grão Lama Asharadud. Ao andar, airosamente, volteava pelo jardim, em passos de pavana. Passava horas a fio, em segredo, nos ramos das árvores do parque.
Assim, vivia El-Rei Sardanapalo. Um dia adoeceu e morreu. Nesse dia encontrava-me, como de costume, na Biblioteca da Sociedade Humanitária, onde consultava livros e tomava notas Martins Fontes entrou no salão de leitura, afobado, triste. Em voz
desalentada, disse:
- O Sardanapalo morreu!
- Era seu amigo, parente?
- Era o meu pavão!
Silenciamos. Foi ao fundo do salão e voltou, a passos agitados. Enfrentando-me, continuou:
- Quando o meu pavão morreu senti enorme abalo. Entoei-lhe uma elegia.
Inspirara-se com a morte do pavão, em cuja campa, nunca mais eu o soube, provavelmente gravou o epitáfio seguinte:
"Sempre enflorando o teu jazigo
De Artista e Rei
Sardanapalo, meu amigo,
Te Chorarei.
Do outro lado da Mesopotâmia,na margem do Rio Eufrates que dormia e sonhava, Babilônia irradiava ao sol do Senaar, cujos torreões do Palácio Imperial e do Templo de Belus relumbravam e
cuja cidade coruscava, na calmaria, à hora estival. Quando o Poeta encarava Babilônia estremecia de horror e de cólera: aquele fausto plutocrático ultrajava, tanta opulência dava náuseas, porque a orgulhosa Babilônia que um dia, pelo vaticínio dos
profetas, seria destruída, era produto do trabalho escravo de milhares de operários e da fome de milhões de órfãos.
Eis-nos em Galiléia. O tetrarca Herodes ofereceu um banquete aos amigos em Makeros. No fim do banquete, entrou no salão, Heródias e, ao mesmo tempo, surgiu a filha Salomé dançando ao som de músicas lúbricas. Herodes, deslumbrado, disse-lhe que ela
pedisse o que mais desejasse, naquele momento, que ele tudo lhe daria. Ela pediu a cabeça decepada de Iokanaam. Ele relutou em dar-lha, mas, como prometeu, mandou-a buscar num prato de ouro. Nisto, Herodes pareceu-lhe ouvir a cabeça balbuciar que
Salomé, sua amante, era irmã dele…
Daqui, fugimos horrorizados para Alexandria. Contornada pelo deserto de areias infinitas, à margem do Nilo, fazia lembrar as glórias do passado, na época de Cleópatra. Ela, em noite de luar, vinha ao terraço imperial contemplar a cidade de
Alexandria, o Rio Nilo e as areias do deserto insondável. Cleópatra abençoava o Egito que seria imortal, onde o silêncio e a solidão têm a brancura dos cemitérios, e o luar amplo, alvo, esplêndido, enche o espaço e o chão de cal, parecendo mar sem
fim de pó, só pó.
Atravessamos o Mar Egeu e entramos pelos Dardanelos no Mar de Mármara, onde encontramos a velha Bizâncio. Bizâncio faz sonhar que é toda azul de turquesa, sempre azul, é cerúleo cristal que reflete no Ocidente o esplendor do Oriente. Por toda a
parte, são gradações do azul: azul lácteo de opala, azulores sutis, azul claro, azul blau, azul violáceo, perfumado, macio. No sonho feito de ouro sobre azul, o Poeta se transporta a Constantinopla, onde ele se considera Sultão,senhor de um
serralho com cinquenta e três mulheres, em cujos olhos ele vê Bizâncio e Constantinopla ao luar, terras dos bazares, das feiras luxuosas, repletas de maravilhosas especiarias, sedas, tecidos, linhos, perfumes do Oriente, trazidos pelos beduínos, em
caravanas de camelos, onde redemoinha gente de todo o mundo, onde se dança ao som de músicas monótonas e sensuais.
Perto, encontramos Atenas, em cujos caminhos há túmulos com epígrafes. Em Eleuses realizavam-se festas de Neptuno. Deparou-se-nos visão encantadora. Frineia despiu-se diante da multidão de Atenas e entrou no mar. Depois de se banhar, emergiu
completamente nua. O povo se inclinou em louvor ao Belo, entre aplausos, e desde então a Grécia deidificou a mulher cuja carne reflete a perfeição divina na volúpia da forma.
Eis vem Roma que saúda Cesar, erguendo-lhe estátua de bronze, bendizendo-o por ter circunscrito o mundo à justiça da força, sob o seu foro. O Senado lhe concedeu o laurel da vitória perpétua. A humanidade o cultua na inscrição de mármore: A César!
Semideus! Roma, a Cidade Eterna!
E a viagem recomeça pelo golfo de Nápoles, na ilha de Capri, ilha da adoração de Ariel, joia da Itália, onde a luz é colorida e de ardor cromático e brilhante que nem um pintor soube exprimir. Capri, como os anis, tintas turquesas, influi sobre as
almas amorosas. Capri esplende em chuvas de ouro, ao embalo de canções dos marinheiros, que ecoam nas garutas marinhas. Agora Florença, a cidade dos artistas e dos sábios, Leonardo, Buonarotti, Rafael, Celini, Miguel Ângelo, que na oficina, a horas
mortas da noite, sob o luar, à luz das suas lanternas, forjavam, cinzelavam a epopeia da Renascença, ao amparo da alma de Dante que vela de asas abertas sobre as suas cabeças imortais.
No Moisés de Miguel Ângelo há tal gravidade que ressuma ao porejo do barro. A barba é das idades pristinas. Esse fantasma, de veias inchadas e peito insuflado, parece feito com terra úmida. Veneza é a cidade da morbidez, graciosidade e jucundidade,
e dos poetas e barcarolas, e donde se evolam canções de amor que se ouvem em noites de luar para as mulheres lindas debruçadas em balcões floridos.
Há em tudo finuras e mistérios. O carnaval nasceu ali com Pierrot, Colombina, Arlequim, entre lanternas, lâmpadas, balões, bailes, canções, dentro das barcas que giram e deslizam pelos canais, entre palácios.
Indo mais ao Norte da Itália, a Salsferim, certa manhã de sol, à porta duma herdade, Martins Fontes encontrou uma camponesa de vestido amarelo e carmesim que estava cheia de alegria e saúde. Ele jamais a pode esquecer porque ela simbolizava a
primavera no Tirol. Da península itálica à península ibérica, o Poeta salta em voo da fantasia até Granada.
Granada, para o Poeta, é a imagem duma rosa vermelha, rosa de ouro ou rúbia flor, que desabrochou no rosa da Andaluzia ardente, sob o sol do verão de Espanha. O culto apaixonado de Martins Fontes por Granada era fervoroso, porque foi a inventora da
rima. Depois, contempla a cidade do alto do monte Padul, donde se avistam zimbórios, coruchéos, botaréus, torreões, almenaras, carmens, as casarias brancas com seus pátios cheios de alecrim, violetas e cravos.
Granada faz lembrar as histórias das "Mil e uma noites", os tempos da dominação árabe. O viajante, aspirando o eflúvio dos mirtais, devaneia, vendo uma cerimônia religiosa na mesquita árabe, cheia de povo, entre algazarra e luzes de lanternas, ou
uma dança lúbrica, infernal, ao luar, por uma odalisca turca.
A dois passos de Granada, avista-se a linda cidade do grande poeta Francisco Villaespesa, amigo íntimo de Martins Fontes. Sevilha foi um sonho que não chegou a florescer. Martins Fontes fora convidado a representar o governo do Estado de São Paulo
pelo seu presidente e ilustre amigo dr. Júlio Prestes, na Exposição de Sevilha. Acompanhá-lo-ia o poeta Villaespesa que se encontrava em Santos, hospedado em casa de Martins Fontes.
Assim, neste sonho em que a fantasia nos arrastou até Sevilha – "Luz do Guadalquivir, glória da ardente Espanha", antes de se entrar na cidade, tem-se a visão da cidade, vendo-a entre crespos vergéis e janelas mouriscas, com os laranjais, os
olivedos, e os vinhais, coberta de jasmins, com perfume de baunilha; enfim, vendo a terra da arte vívida e da graça assanhadora, terra do amor-paixão e da euforia alucinante como um raio de sol, a terra onde Dom Miguel de Cervantes criou o maior
símbolo da humanidade, esses dois gênios da natureza humana – Dom Quixote de la mancha e Sancho Pança, o espírito e a matéria separados em dois seres aberrantes, em seu dualismo eterno, um o pinheiro bravo, esgalhado, o outro curto e rotundo, a asa
e o ventre, a águia e o cerdo, o albatroz junto ao mono, Ariel e Caliban, a ardência da vigília e a molúria do sono, a alma que se alcandora e o corpo que rasteja.
Em Sevilha há festas e danças. Formosa mulher espanhola dança com graça e elegância, num pátio andaluz, onde se estendeu um tapete escarlate dobrado à mourisca, junto à fonte em que a água sobe em repuxo, lacrimejando ao rodar, cujas gotículas caem
continuamente, tintinindo como rubis no cristal de larga bandeja. Parece que a alma da Espanha freme nessa mulher, de carne feita de sol e de ouro cor-de-rosa. Depois dança a "Sevilhana" que traduz o amor possesso, a volúpia do harém e o estridor
da luta de quem comete os sete pecados mortais…
Noutro salto, o avião da fantasia voa para a França. Em Roncesvalles, no outono, à tarde, sob mil reflexos louros que encandecem os bosques europeus, e o reboar remugidor das cachoeiras nos vales, vindo de aeroplano da Ibéria, o Poeta contempla,
nos Pirineus, a colina onde morreu Rolando em luta contra os mouros, a quinze de agosto de 778, ao entardecer, onde os exércitos do rei Carlos foram dizimados numa emboscada.
O Poeta, em sonho, com permissão da Fada-Fantasia, Shaharazade, evoca essa batalha, descreve todos os lances mortíferos, a derrota dos cristãos, a vitória dos agarenos, sarracenos ou mouros, e vê o cadáver gigantesco de Rolando, de pé, encostado à
montanha, hirto, abraçado à Durandal.
Acorda o Poeta ao som do avião que o leva à França, à qual ergue um hino de louvor e gratidão, glorificando os seus artistas. Chega a Paris, terra de poetas, sábios e filósofos. A finura do espírito francês, flor da raça latina, foi simbolizada
pela Arte na Vênus de Paris,onde se sente palpitar a nudez e predomina a graça mais sutil que a beleza.
Tudo o que Martins Fontes foi e quanto fez, devia à luz fulminadora de Paris, Rosa de França, que Santa Genoveva vigia há séculos, de pé, junto ao portal da tosca morada sobre o Rio Sena, onde seus ouvidos se inebriam ao som da valsa do Danúbio
Azul ou de um minueto gracioso, azul velho tom, cujo primor só a França foi capaz de inventar.
E de Paris pôde guardar ora a lembrança de uma comédia galante no teatro francês, ora de um pé da Marquesa de Condorcet no Museu Carnavalet, ora de uma salamandra que valsava nas chamas duma fogueira, ora de um quadro, no Museu do Louvre,
representando o indiferente ante a mulher nua; ou de pequenos episódios como aquela abelha que pousava nos lábios de pessoas que conversavam, na ilusão de estar sugando o pólen das flores; a história triste de uma florista que vendia lírios a dez
réis e do anamita que se apaixonou e casou com certa moça porque ela era pura, doce e bela; o drama de um palhaço que, vivendo com amargura, foi preso como ladrão e sofreu horrores na cadeia até que se suicidou; o idílio de um cigano cuja amante
lhe ocultava o nome; a conversa do órfão Miguelito que lhe disse um dia que se fosse Deus não haveria ninguém no mundo sem mãe…
Ao deixar Paris, Martins Fontes quis comprar violetas na Estação, mas não tinha dinheiro trocado. A violeteira, sensibilizada, ofereceu-lhas dizendo que as pagasse quando voltasse um dia. Ele, reconhecido, beijou-a. E nunca mais voltou.
A caminho de Bruges, sentiu-se em estado de adormecimento, arrastado para o sonho através as várias regiões encantadas por onde a fantasia o levou, como se tivesse tomado cocaína. E sonhou que uma floresta azul havia a encantação de parecer o luar
a luz diurna, não se sabendo distinguir o mundo real do mundo da magia.
A lua, como se fosse titânia, estava nos seus braços, e ele, dormindo, sonhava que assistia ao sonho de uma noite de verão. Nessa estupefaciência, avistou Bruges. É a cidade da melancolia, reino do silêncio, pátria da tristeza. Desta
cidade,conta-se a história de uma princesa cujo noivo foi à Terra Santa e não voltou, mas ela esperou-o toda a vida. Morreu muito velhinha. À hora da morte, pediu que a vestissem de branco e a pusessem num caixão dourado… |