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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-02)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 28 a 35):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

2

No Templo de Partenão, recebeu Martins Fontes a investidura de Cavaleiro – do Amor, da Arte, do Ideal. Durante a vida inteira, honrou-a, engrandeceu-a, genialmente. O juramento pelo culto ao Belo cumprir-se-ia até a morte. A excomunhão atingiria a quem se desviasse do compromisso. E Martins Fontes, no Partenão, jurou cultuar a Arte, mais bela do que a Natureza, considerando-a acima do Amor que é a própria vida.

Para tal culto, buscou as fontes de inspiração poética na vida sexual e na vida social da Humanidade, inseparáveis e uniformes, como expressão única dos seres terrestres. Os homens, de posse da verdade positiva, não encontraram outra finalidade na vida.

Para que se atinja a imortalidade e a perfeição, o artista, como o praticou Martins Fontes, firmará a sua arte em duas características – a sexual e a social. A sexual foi determinada pela influência magnética da leitura de livros, como os de Teófilo Gautier, do qual um, de que farei ligeiro sumário, trata da autobiografia de esquisito rapaz de vinte e dois anos, com escandalosos arrebatamentos de amor, audacioso na revelação dos seus desejos, dos apaixonados anseios, sob a tortura de implacável instinto a dominar-lhe o coração e o cérebro, ante o desespero da posse imediata e fácil, cuja obsecação o transportava a mundos fantásticos, incríveis, ou o atirava no amargo desânimo e no estúpido aborrecimento pela estima aos preconceitos da sociedade.

Afirmava Martins Fontes, nas confidências aos íntimos, que durante longos anos essas páginas de Gautier dominaram incessantemente todas as suas ideias de Arte e de Amor. Muitas poesias refletiam a volubilidade demoníaca da estranha personagem criada por Gautier, nesse livro que parece até a autobiografia de Martins Fontes, em epístolas a um amigo, e que também sentia que as aventuras misteriosas tinham sobre ele poderosa influência.

Da mesma forma, adorava o singular, o excessivo, o perigoso; devorava os romances e as histórias de viagens. A fantasia de poeta da personagem do romance de Gautier levava-o a sonhos doidos, no entanto este jamais viajara, como viajou Martins Fontes, nunca saíra da cidade onde morava, e invejava aqueles que lhe contavam belas peregrinações pelo mundo, mas destituídos de sensibilidade e de reflexão para gozar os encantos da natureza.

Por desfastio, decidiu contar a um amigo a história das suas ideias, na falta de fatos e ações, sem ordem nem muitas novidades, os sonhos que lhe atravessavam o cérebro desocupado, procurando ser exatamente verdadeiro. Vivia em estado bastante desagradável de irritação febril a que sucedia atonia completa, indeciso, confuso, ansioso, desanimado, ante coisas inexistentes ou imaginárias, em que consumia inutilmente a mocidade.

Teve o desejo de possuir um cavalo e uma amante. Quanto à amante, queria-a como fonte de inspiração. Ele conhecia que as mulheres não gostam dos contemplativos, preferem os atrevidos. Era difícil a escolha da mulher querida. Impõe-se-lhe a inteligência e a perspicácia, com dotes reais de carinho e desvelos constantes, sob infinita paciência para aturar os caprichos do amante. As moças de família, as casadas e as viúvas não serviam. Todas possuem suscetibilidades e vícios de origem, com ingenuidades e preconceitos irritantes.

Isso não se dá com as que possuem vários amantes. Não têm preferências das que desejaram porque amam o amor. Ama a quem nunca viu e existe. Reconhecê-la-á se a encontrar. Conhece-lhe os vestidos, a cor dos cabelos, a voz, os nomes prováveis; tem vinte e seis anos e é de estatura mediana, um pouco gorda – enfim, beleza delicada e enérgica, elegante e vivaz, poética e real.

Imagina encontrá-la à tarde, num jardim, à janela do Castelo, esperando quem lhe apanhe a luva caída na relva; ou numa caçada, dentro da floresta, a cavalo, correndo desabaladamente, na certeza de socorro.

Vive em ardores, na ânsia louca de encontrar a amante para lhe apagar a chama da paixão violenta; invoca a sua presença imediata, urgente; impreca o destino de guardar mistério sobre a mulher ideal para o amor. Receia que a mulher ideal chegue muito tarde e ele esteja sem força para amá-la, porque a sua alma é pombal cheio de pombas.

As pombas! As pombas ainda voltam ao pombal, mas os desejos voam, de mundo em mundo, em demanda do Amor, e abandonam o ninho, o coração apaixonado. Faz digressões acusando os poetas, os pintores, os escultores e os músicos de terem em seus poemas, quadros, estátuas e partituras, desvendando o Paraíso intransponível aos mortais, por cuja escada de Jacó só podem subir os anjos, onde se encontram as mulheres ideais, vivendo em esplendoroso palácio assírio. Aceita convite de um amigo para visitar a casa de uma senhora trintona, bizarra, formosa, vestindo com luxo, onde se encontram outras mulheres belas, de todos os gêneros. Não vislumbrou nenhuma que se assemelhasse ao tipo dos seus sonhos.

Receava, nessa indecisão, que viesse a amar qualquer mulher vulgar ou alguma viúva decrépita, cuja única finalidade fosse a de dama de companhia ou governante, para lhe trazer a casa arrumada, a roupa limpa, o calçado com lustro, a ele, homem requintado, de nobres qualidades e de educação aprimorada.

Das mulheres que encontrou na casa daquela senhora vistosa, escolhe uma por exigência de certos preconceitos, a dama cor-de-rosa, de quem ficou amante. Desconhecia-lhe a graça. Em memória da cor do vestido e duma cadelinha que possuiu com o mesmo nome, chamou-lhe "Rosa". O romance de amor com esta dama foi também cor-de-rosa. Encontrara em Rosa a mulher ideal para amante. Sem lirismos e cônscia da vida real, ela se portou com superioridade, agora é alegre, esperta, espirituosas, deliciosa companheira, bela camarada, provocadora criatura.

Mas ele continua insatisfeito. É feliz em parte, o que não é bastante. Ela lhe dá tanto prazer. Em seus braços, compreendeu o sentido da voluptuosidade. Estremece-se todo e o coração se congestiona, ao contato dos seus beijos e das suas carícias. Ainda assim, não acredita que possua amante. É simples questão de fé, dom ou graça da Providência. A tortura deste novo amor o alucina. Não acredita na existência real as coisas. Tudo parece um sonho, coisas, objetos, homens. Chega mesmo a não se reconhecer e a se admirar do próprio nome.

Rosa deu-lhe a conhecer a sua natureza rebelde a qualquer aliança e confusão, comparável à gota de óleo e ao copo de água. Nunca se uniram. A voluptuosidade não o doma nem enternece, conquanto os sentido sejam vivíssimos – alma e corpo vivem a se guerrear. Os abraços da mulher, em vez de o prenderem, abafam-no. Desgosta-se com o seu procedimento. A dúvida sobre tudo que o cerca arrasta-o à solidão, ao isolamento total, sem saber explicar essa ânsia de liberdade do espírito que se encontra enclausurado no corpo.

O suplício de se ver a si próprio com os mesmos sentidos nos atos monótonos de olhar, ouvir e falar sobre coisas sempre iguais, faz-lhe sugerir a preferência de ser mulher. Apesar de todos os seus ardores, acha que não ama Rosa. Isso o tortura porque ela lhe prodigaliza todos os prazeres, e o adora. A única vez que sentiu amor foi, no princípio da aliança, quando ambos passeavam a cavalo numa alameda de olmeiros, em lindo e colorido dia de sol e de brisa fresca, aromática, e aí se beijaram.

Ele conhecia a história de muitas paixões. Terminavam sempre, ao alvorecer, no leito da mulher amada. Depois, repetiram-se os mesmos passeios, mas sem os ardores do beijo da primeira vez, de que sempre lhe ficou a saudade.

Na impossibilidade de encontrar a mulher ideal que lhe provocasse a mesma sensação daquele beijo, não lhe interessava a vida, porque preferia morrer de prazer a morrer de velhice ou de aborrecimento, ou se iludiria a dar a qualquer mulher o amor inspirado pelos seus ideais divinos. Isso acontece muitas vezes com poetas que possuem amantes medíocres e boçais, e as amam com o pensamento na mulher sonhada. Agora não lhe resta mais dúvida de que a não ama e a ludibria com prazeres fingidos.

Alberto, assim se chama a figura central de Mademoiselle de Maupin de Gautier, sente o amor sumir-se de si. Procurava distrair-se com passeios pelos jardins, ao luar, a perscrutar no silêncio da noite os ruídos da vida ou o canto do rouxinol, a contar-lhe histórias de amores. Se o amor lhe não era tão ardente, não deixava de admirar Rosa quando adormecia, lendo os seus versos, contemplando-a. Repreendia-se da sua ingratidão por falta de retribuição ao amor de Rosa.

Ela era livre, não tinha parentes. Vivia na solidão. Não conhecia preconceitos. Fazia-lhe todas as vontades, obedecia a todos os caprichos da fantasia. Pois, mesmo assim, esta felicidade insensibilizava-o. Rosa leva-o à sua casa de campo, em lugar bucólico, um castelo escondido numa floresta, à margem dum lago. Nos enlevos dos dias calmos entre as carícias de Rosa e as peregrinações campestres, Alberto experimentou a sensação da felicidade que é branca e cor-de-rosa, ou verde-mar, azul-celeste, amarela cor-de-palha, flores, luz, perfumes, harmonias ocultas. A felicidade não se forma de outra substância, a quem sonha estranhas aventuras, paixões fortes, êxtases delirantes, situações extravagantes e difíceis.

Alberto duvida do amor de Rosa. Julga-a enfarada. Talvez não seja assim, mas prevê que não possa continuar em tais arroubos. Anda atormentado pela posse duma bela amante, como outrora a sonhava ideal. Suspira por encontrá-la e quem sabe se ela o espera e o chama de qualquer lugar desconhecido e misterioso!? Como vagabundo meteoro, erra através das planícies infindas do céu, em busca do planeta Saturno de que será satélite, pondo-lhe o seu anel. Desnorteado e oscilante como agulha de bússola que perdeu o polo, repousará quando se efetue o himeneu.

Rosa é boa, fiel, Jamais provocou ciúmes. Que importa se teve outros amantes, todos indignos dela, se ele era a quem ela amava verdadeiramente. Uma virgem de corpo e alma ama-se com ternura, como quem aspira o perfume da flor em botão. É horrível pensar que outros a beijaram e acariciaram, se extasiaram com a amante que compara os prazeres de um com os de outro, na recordação do passado. Sente que lhe é indispensável amar uma criatura virgem, cândida, tímida, envergonhada.

Precisaria desvencilhar-se de Rosa. Mas habituou-se ao seu prazer. Não poderia se separar dela. Falta-lhe coragem para requestar outra mulher, praticando heroísmos de namorado jovem e ingênuo, apaixonado e paciente.

O mundo vale somente pelo Amor. São invejáveis os indivíduos amorosos. Encontram nos objetos fúteis, motivos de enlevos. A satisfação dos sentidos traz torpor voluptuoso e aborrecimento enfastiado. Ele, poeta, somente pede às mulheres – a beleza! Dispensa-lhes o espírito e a alma. A mulher bela vale pelas frases ou palavras mais brilhantes e profundas. Adore-se a beleza da forma feminina, divindade visível, felicidade palpável, céu descido à terra, cujas ondulações de contornos, finuras de lábios, cortes de pálpebras, inclinações de cabeças, alongados de ovais, encantam e prendem horas inteiras.

A beleza é harmonia. Penaliza a beleza inacabada ou incompleta. A beleza ainda se compõe de porte, gesto, andar, hálito, cor, som, perfume. Brocados ricos, esplêndidos, estofos, com dobras amplas e fortes, flores, águas transparentes, brilhos de espelho das armas, cavalos de raça, cães grandes e brancos – são o culto pagão de Alberto, o poeta insatisfeito que em tudo quer Sol, muita luz e pouca sombra, onde a cor brilhe, a nudez se sobressaia, a linha serpeie.

Abomina o feio, o disforme. Agradam-lhe as especiarias em louça fina, o vinho em copos de cristal. O exterior das coisas impressiona-o. Evita os velhos porque as rugas e as deformidades, a ruína do homem decrépito contristam. Será feliz quando for formoso como Páris ou Apolo, forte como Hércules, voador como a Água. Na falta de mulheres belas, há o recurso de amar os quadros e as estátuas, para quem sempre lhe agradou o impossível, o singular e o difícil.

Estas confidências epistolares de Alberto terminam quando os amantes, ele e Rosa, se encontram na casa de campo onde apareceram visitas, entre elas um formoso rapaz com um lindo pajenzinho. Começa o romance propriamente de mademoiselle de Maupin. O moço chama-se Teodoro. Foi namorado de Rosa, antes do Cavaleiro Alberto. Teodoro era o único a quem ela ama. Na troca de confidências, Rosa declara que jamais amara o caprichoso e misterioso Alberto. Era Teodoro o seu amor, mas ele a desilude e a aconselha a se dedicar a Alberto, que desconhece esta paixão, nem desconfia de Rosa. Numa caçada, onde todos coparticipavam alegres, o incidente, na queda do cavalo, com o pajem, denunciou a Rosa que este era mulher.

Nas confidências de Alberto aos amigos, há a revelação da sua tortura em busca da beleza física, cujo ideal deve conter os seguintes predicados: formosas pálpebras turcas, olhar límpido, e profundo, cor quente de âmbar pálido, longos cabelos negros lustrosos, nariz fino e altivo, delicadas sinuosidades, pureza oval e mãos de alvura nitente, pele macia, penetrante opacidade, dedos afilados, com unhas ovais, brilhantes como pétalas de rosa, com movimentos graciosos.

Essa beleza se encontrava em Teodoro, um homem que Alberto ama com paixão insensata e vergonhosa. Alberto desconfia que Teodoro seja mulher. Um homem não acumula tanta beleza física, apanágio das mulheres e dos anjos. Ama-se e adora-se a beleza quando se encontra. Amantes, poetas, pintores e escultores erguem-lhe altares para o culto pagão, apesar do eterno desespero de não a tornar palpável, visível, tal como a sentem, ou a sentiam na Grécia antiga, ao contemplarem as estátuas nuas de Vênus e dos deuses do Olimpo.

O cristianismo acabou com este mundo belo e criou o pudor que cobriu tudo com mantos e sudários, vestimentas e rendas, bordados e fitas. Alberto não dissimula o pessimismo perante o mundo moderno e se considera isolado por suas ideias e sentimentos incompreensíveis e inadaptáveis. Considera-se morto de alma. A matéria o atormenta. Uma obcecação, o amor de Teodoro, o enlouquece. O belo fisicamente é o bem; o feio é o mal. Que importa a moral da mulher bela se a forma do nariz é perfeita!

Ele imagina a felicidade, o Paraíso, assim: grande palácio quadrado, sem janelas externas; pátio amplo rodeado de colunas de mármore branco, ao meio uma fonte de cristal com repuxo de azougue em estilo árabe; laranjeiras e romãzeiras, em certos lugares alternadamente; por cúpula um céu azulzíssimo com um sol muito amarelo; lebreus gigantes, com focinhos de dogues, dormindo por todos os lados; negros altos de pés descalços com argolas de ouro nas pernas; escravas brancas, formosas, com vestidos ricos, transitando, entre as arcarias abertas, com algum ramo de flores nos braços, ou ânfora à cabeça. Sob dossel magnífico, entre almofadas fofas, o cotovelo pousado num leão doméstico, os pés sobre os seios nus duma escrava jovem, senta-se o Poeta, imóvel e silencioso, a fumar ópio em cachimbo de esmeralda.

O gênio pagão, antes do cristianismo, não efeminava os deuses nem os heróis. O aspecto físico do homem, nas estátuas, era igual ao das mulheres, tipos vigorosos e delicados ao mesmo tempo. Daí se criou a quimera da Hermafrodita. Teodoro tem esse tipo, porém mais efeminado. Parece-lhe mulher vestida de homem. Não achava razão plausível para esse disfarce. Com certeza, apareceu-lhe assim no intuito de verificar se era reconhecida pelo seu sonhador. Ele a adivinhara como a mulher a quem amava. Este amor conseguiu que ele revivesse. O mundo aparecia-lhe mais belo e compreensível, de que o amor foi a chave.

Finalmente descobriu-se que Teodoro era mulher. Ela se transformara para auscultar o mundo humano. Tinha imensa curiosidade em saber o que diziam os homens das mulheres, estudá-los em todos os aspectos, analisá-los com minúcias de anatomista. Na juventude, as moças vivem aferradas aos preconceitos da família. Ocultam-lhes tudo.

Madalena de Maupin se revoltou contra esta situação e se transformou no cavaleiro Teodoro de Serannes, para ocultar o sexo. Poderia observar melhor os homens na intimidade e descobrir-lhes os pensamentos verdadeiros que na frente das mulheres sempre tomam outras roupagens. Invejava Cleópatra que matava os amantes, depois de passar a noite com eles. Na impossibilidade de aplicar este bárbaro e sublime processo, era melhor a metamorfose de homem, para a mulher curiosa.

Na conversa, entre homens, reunidos à volta de qualquer mesa de estalagem, à noite, sob violenta borrasca, poderia a mulher, como de Maupin, ouvir a opinião real dos homens sobre as amantes, esfarelando as frágeis ilusões das moças românticas. No entanto, Maupin, ou melhor Teodoro, ao ser obrigada, por falta de lugar numa dessas estalagens, a dormir com os hóspedes no mesmo quarto, sentiu as violências do instinto, despertado pela ideia obcecadora dos prazeres voluptuosos. Tudo se quebra ante o poder dominador do sexo. A virtude sofre rude assédio e com dificuldade vence a pressão do feroz inimigo.

Alberto, com um plano infalível para descobrir o mistério de Teodoro, ambos em vilegiatura na casa de Rosa, imagina o teatro fantástico, com cenários e personagens fabulosas, cores anuançadas e vivas, fulgurantes. Concebe uma alta-comédia e inicia os ensaios com as pessoas que vivem naquela casa. Todo o movimento desse intenso trabalho não consegue despertar interesse em Alberto que, como poeta e amante, tem dificuldade em produzir qualquer obra, poética ou de pintura, conquanto as ideias saiam do cérebro cerradas e bastas, superabundantes e desordenadas.

Na distribuição dos papéis, coube a Alberto o de Orlando, e o de Rosalinda a Theodoro que Rosa recusou porque deveria vestir-se de homem, nos últimos atos. Quando, na representação, Teodoro surgiu vestido de mulher para desempenhar o papel de Rosalinda, foi um deslumbramento para Alberto que jamais vira mulher tão formosa… Agora acreditava que Teodoro era mais mulher que homem, e o seu amor não era tão pecaminoso como julgava. Faltara ter a certeza com as provas irrefutáveis. Depois de terminado o espetáculo, Alberto escreveu a Teodoro uma carta, contando o seu destino e o seu grande amor, com a alegria de encontrar o seu ideal, há tanto sonhado e cuja existência previa.

Por sua vez, Teodoro contava a uma amiga as suas aveanturas de misteriosa mulher vestida de homem, e como nessa peregrinação conhecera, numa estalagem, certo cavalheiro que a convidou a visitar o castelo onde vivia a irmã, e uma tia, e como lá a jovem Rosa se apaixonara por ela supondo-a rapaz formoso, e a velha tia a tomou pelo filho que lhe morrera, tal a semelhança de fisionomia.

Rosa praticou todas as loucuras, apesar de viúva, esquecendo rapidamente o falecido esposo. Teodoro viu-se, com o seu disfarce, em situação difícil, para corresponder a tão ardente amor da viuvinha. O irmão de Rosa surpreendeu-a no quarto de Teodoro que foge, depois de se bater em duelo. O disfarce de Maupin tinha por fim descobrir o seu ideal do amante belo e sincero. Teodoro tem o corpo e a alma da mulher, o espírito e a força do homem, para lhe ser difícil a escolha do amante.

Com Teodoro ocorreu outra aventura romanesca. Encontrou, numa casa que frequentava, uma rapariga linda e ingênua. Ela era requestada por um indivíduo torpe. Para livrá-la das suas garras, Teodoro induziu-a a fugirem ambos, como se fossem namorados, depois de a fazer acreditar que o outro namorado tinha amante. Na fuga, Teodoro vestiu a jovem fugitiva de pajem, como disfarce.

Teodoro se dirigiu à casa de campo de Rosa, com o pajem, a cavalo. Rosa vivia aí com Alberto, seu amante eventual. Na convivência da casa, Teodoro percebe a simpatia de Alberto, ao qual se decidiu entregar amorosamente porque foi o primeiro que descobriu que ela era mulher, aparecendo-lhe nos trajes de Rosalinda, personagem da peça que, há tempo, aí representaram para divertimento dos hóspedes. Houve uma noite de volúpia e deslumbramento para ambos. Depois, Maupin foge, e os deixa, a Rosa e Alberto, a sós na casa de campo, perplexos e desiludidos.

Em síntese, este foi o livro que encantou Martins Fontes, a cujo entrecho se referia nas recordações constantes dos livros prediletos de maior influência na sua formação literária, e no seu lirismo, por onde, através de múltiplas manifestações desde a pureza ideal à luxúria, pervagaremos.