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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-03)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 35 a 44):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

3

No decorrer da vida, em contato com a sociedade, com as leituras proveitosas de livros encantadores, a imaginação de Martins Fontes se arrebatava. Imediatamente, como se tratasse de um período de crise agudíssima, produzia versos sobre o motivo que no momento o apaixonava, ainda que o supusessem paradoxal e contraditório.

Conquanto se desviasse da diretriz inicial, por alguns instantes de meses, deixando a todos estonteados, com o desenvolvimento de teses caprichosas, ele jamais se esquecia de retornar á fidelidade da arte verdadeira, substancial, alicerçada no sexualismo puro e elevado, como demonstração de virilidade normal, exaltando as mulheres amadas; e no humanismo, estendendo a Bondade ao mundo inteiro.

A missão do artista, na Terra, é ser cavaleiro e paladino do Amor e da Mulher; deve, pelo amor, viver, com pensamentos castos, defender, valorosamente, as mulheres dos ataques de aventureiros e das audácias de libidinosos, cultuar o amor sublime que une corpos e corações, bendizendo-se a hora do amor em que a mulher pede beijos.

Para Martins Fontes, era este o único amor que dá ao homem a glória de ser Deus. O amor, para as almas, é como o sol na terra, é o sonho dos sentidos, transfigura a vida, é eterno; vive-se, luta-se, vai-se ao fundo do mar e ao infinito do céu por ele; o amor dá o instante feliz do encontro com a mulher amada, é o único Deus que diviniza a carne e dá à criação o esplendor dum noivado, concretizando o sonho na forma da flor. Os heróis antigos levavam as suas lindas mulheres para a guerra, porque se fossem vencidos poderiam contemplar-lhes nos olhos as miragens do amor, nos desertos da morte.

O amor, até na velhice, parece alvorada, aurora boreal. Aos oitenta anos será tempo de amar, pois é a idade do sonho e do beijo; tem-se o dom de rir dos arrufos, traições, desenganos; destila-se o extrato da vida. O amor nessa idade, lembrando o vinho velho, é que é bom. Pelo amor, as estrelas cadentes cruzam as nebulosas para segredar frases de amor aos astros; o mar vibra a ária da tempestade; as montanhas se coroam, a escalar o espaço, na ânsia de atingir a imensidade; as íris borboletas transmudam-se das lagartas repugnantes; os condores constroem os ninhos no alto dos abismos.

O amor atinge a perfeição da linha na moldagem brutal dos embriões e das células, no traço modelar das bocas e das rosas. Os cânticos ao luar, nos vários movimentos da música, são suspiros de amor, arquejos e murmúrios que vêm do coração dos amantes, dos grandes animais aos minúsculos insetos. Os lírios e as falenas duram um dia só, nascem para viver meio minuto, vivem para se amar apenas um segundo.

Cabe ao poeta a missão de glorificar o amor, porque este reproduz as saudades, integraliza as dores e as alegrias: funde as várias atrações das coisas e dos seres. É também missão do poeta aconselhar a mocidade a aproveitar, na vida, o tempo de amar. O ritmo que rege os planetas, em obediência a um princípio inaudito, é o mesmo que regula a cadência dos versos. A alma do poeta é catedral ou tempo de beleza onde ressoam os amores de toda a humanidade e da natureza. Na interpretação do Amor, ele repercute nas estrofes, as músicas supremas.

Ante a Natureza, em plena primavera, Martins Fontes se deslumbrava e se manifestava grato, conquanto soubesse o sofrimento da vida, de o pouparem da maior tortura que é amar sem ser amado. A água desce ao mar, a ave foge entre as nuvens, as folhas caem das árvores. Na vida, na corrida do destino e do mundo ilusório, só perdura o Amor.

Aos sábios que só estudam a ciência, Martins Fontes aconselhava que amassem e abandonassem livros e retortas, fazendo-se poetas, porque só os poetas sabem amar. Não há bênção mais pura quando este amor é correspondido. Se o não é, sofre-se a máxima tortura. Igualmente não se deve crer em quem disser que a paixão se apaga como o fogo e os soluços de amor são ais efêmeros, tudo igual ao vento ou à onda. O amor, desde o primeiro olhar de atração misteriosa, é como o sol cuja luz se dissemina em esplendor crescente e imortal.

Um casamento feito por juiz e padre nada vale sem o Amor, único Deus que existe. Disso Martins Fontes tinha experiência. Há muitos anos, desde a infância, amava. Era menino de cinco anos e teve uma noivinha de seis anos; simularam um casamento com festa e flores; ela o beijou; brincara assim de amor, mas ele depois desse dia nunca mais brincou.

Ela foi a sua maior paixão, mas ela não o amou. Ela era a Bela Adormecida, mas ele não era o seu príncipe encantado. Eis por que sempre se considerava presente para abençoar quando dois amantes se beijavam como na história da Bela Adormecida e do Príncipe Encantado, belos, resplandecentes, sob cabelos loiros, e com olhos azuis, no momento em que ambos trocavam confissões de amor sem repararem que Alguém os via.

Martins Fontes admirava o homem que amou terna e apaixonadamente pela primeira vez, divinizando a eterna pureza na amante querida, e, assim, desfez a fraqueza original, atingindo à perfeição do sentimento. E ele sofreu a sua ingratidão pelo primeiro amor, quase o esquecendo. Ela soube perdoar-lhe e jamais o censurou, sofrendo calada a amargura do abandono, mas vivia da recordação suave do primeiro beijo, das flores que ele lhe dava, e daquela trova que, sentidamente, dizia que o primeiro amor na vida é o único amor.

Quando criança, ele namorou uma estrela e adorou uma rosa; nunca fez uma confidência e julgava que nunca se alcançasse o verdadeiro amor. E sentia que o seu sonho era eterno, a cujo amor era fiel, afirmando, entretanto, que deveríamos amar a vida e não condenar a inconstância no amor que pode ser virtude. Antes, deve-se bendizer a forma de amor que se sinta, por mais tênue e tímida.

Como a ausência desengana, ser inconstante, sobre-enobrece o coração sem deixar de amar. Para se querer bem ou amar, não é preciso nem uma impressão forte. O destino não atua de improviso. Da mesma forma, ele, Poeta, não fazia versos quando queria, nem tampouco as rosas desabrocham por efeito de leis humanas.

Tudo aflora por afinidade dos nossos corações. Amamos com ternura para que sejamos amados e merecedores dessa graça. As flores só vicejam em terra boa e com raízes profundas. Sob a sideração do amor ardente, constante, amar-nos-ão, na certa. Desprezemos, pois, as leis informes. Sejamos bons. Pratiquemos o bem, sem esperança de recompensa. Os impermeáveis e opacos desconhecem quando o amor aclara e perfuma, consola, anima, aquece. Faze a outrem o que desejarias que te fizessem. Nesta afirmação da moral positivista, Jesus e Buda pouco se parecem. Todos querem a misericórdia e nunca o sacrifício.

Depois destes pensamentos abstratos, sobre o amor, na sua mais pura acepção, pode-se perguntar: quem julga amar, conhece o amor? Este bem é o tesouro sem par que, em valimento, se iguala a si próprio, a delicioso vinho, a essência aromática que alivia e adoça as maiores amarguras. Entre o céu e a terra, nada há que se lhe compare ao brilho eterno e infinito.

Dá tudo que tem. Com o seu calor, síntese do poder da luz espalhada, é a razão da vida. É o inumerável, o infindável, ou o oceano cujo extravasamento aterroriza. Do amor, tudo renasce e se transforma para melhor, em ascensão, ao perfeito. Não dormimos, mas sonhamos, levando a alucinação da ilusão-realidade em reluzimento através de um vidral de várias cores. Vemos o corpo mas a alma não, conquanto a sintamos e lhe chamemos – Amor.

Para chegar a compreendê-lo, atravessamos torturas, como se pisássemos nos sarçais de Tabor, vertendo sangue; e para o homem, ele tem origem no culto à mulher. Em Martins Fontes, esse culto gira desde a mulher divinal à mulher amante.

Na miragem evocadora da Cavalaria, julgando-se sagrado Cavaleiro do Amor, Martins Fontes jurou à Mulher o fervor da sua fidelidade, do seu amor mais rijo do que a morte. E ergueu um hino de fogo, poema exaltado que, da frágua do seu peito, explodiu em frases de lava, em períodos de ouro, como a luz, porque se sentia em erupção vulcânica.

Pela Mulher, ascendeu às imensidades, tendo nos olhos dela a visão do infinito. Pela beleza física, ela é a terra, na primavera; pela beleza moral, o céu em todos os tempos e a todas as horas, o azul sem fim, estrelado de mundos. Quando oficiava a missa do culto à Mulher como paladino e sacerdote, Martins Fontes se ajoelhava para beijar o pó do altar, do nicho de ouro em que Ela fulgurecia como astro humanizado. Nesse êxtase, ele lhe oferecia o vinho do seu sangue férvido, o pão da sua carne fraca, elevando até a Piedade da Mulher a hóstia do coração.

Dulcificada pela ternura, espiritualizada pela pureza, santificada pela beleza, divinizada pela maternidade, a Mulher é bela e boa como a água. Enamorada, noiva, esposa, amante, irmã e companheira, sem ela a vida seria escura: as nuvens e as celagens
(N. E.: cor do céu ao nascer e pôr do sol), os relevos, as linhas, as cores, as formas não se veriam, e a terra inteira estaria perpetuamente amortalhada na treva, pois é Ela a claridade que anima os corpos e realça as coias, porque a Mulher é o sol da terra, porque Ela é que dá a luz.

Em nossa raça, para todos os poetas da língua portuguesa, a Mulher foi sempre a única razão de ser da vida. O amor que ele lhe consagrava, é hereditário: pertence ao tesouro latino. Nos nobiliários, nos romanceiros arcaicos, nos cancioneiros, a Mulher é sempre a bem-querida, Santa e Fada cuja Bondade é como o clarão dos astros mortos, no espaço: perdura através das eras. Dois símbolos dessa Mulher, ainda consolaram e inspiraram o Poeta: a Virgem Maria, cheia de graça, em sua celsitude; Beatriz, a mulher angelizada.

Assim, Deus fez a mulher e as flores, sob a inspiração pelo ideal transcendente de um forte amor. A Mulher é incomparável, indefinível, adorável, suprema inspiradora e superior à criação. Para justificar o enlevo pela Virgem Maria, Martins Fontes socorreu-se dos filósofos positivistas que afirmam que a admiração por este ideal era culto do livre pensador Proudhon, foi a base da moral de Augusto Comte.

No símbolo da Virgem Mãe está a personificação da Mulher modelo, cuja virgindade não cessa como mãe, cujo amor é a base da família e da sociedade. A Mulher é a companheira do homem, que no seu idealismo puro se torna o princípio do ânimo, a graça da força, prudência, justiça, paciência, consolação, sem o que o homem não aguentaria a vida.

Ela é, pois, a vida da Humanidade e a auxiliar do homem, conquanto a este caiba o maior quinhão do trabalho. É Ela que inspira ao homem e dá vida e realidade às suas ideias, e no coração dela guarda o segredo dos seus planos e descobrimentos. Ela é o tesouro da sua sapiência e a fonte do seu gênio. Ela é o anjo de paciência, de resignação e tolerância, como fundamento da Justiça.

De qualquer face que olhemos a Mulher, Ela é sempre a fortaleza da nossa consciência, o esplendor da alma, o princípio da felicidade, a estrela da vida, a flor do nosso ser. Vencido ou culpado, o homem encontra consolo e perdão na Mulher.

Assim, Martins Fontes fazia a sua invocação à Virgem Mãe, a de olhos azuis, mãos de prata, lírio e mulher, estrela e rosa. Na ardente fé à espiritual Cavalaria, a sua esperança o guia na vida – sarçais da corte ingrata. Ela reflete a sua bondade na água e contém a Luz; e a sua bênção extrai o espinho que maltrata o coração que confia nela.

As mulheres não imaginam quanto Augusto comte e Martins Fontes as adoravam, ligados, pelos mesmos afetos, porque ambos a colocavam acima da própria criação. Nas religiões, sobretudo na católica, há prevenções contra Ela. Ambos sempre a julgaram uma flor virginalmente bela. É belo ver a Virgem Maria, aos pés da cruz, porém é mais belo ver soluçar, agonizante, a boa mãe do mau ladrão.

Martins Fontes oferecia as flores do seu culto e pedia a proteção das santas mulheres. Ele exultava ao adorá-las, sem encontrar a expressão humana que, sendo volátil e escassa, possa traduzir ou abranger esse culto. Sejam quais forem as crenças ou seitas, os homens sofredores devem proclamar a sublimidade das mulheres perfeitas, lírios do eterno amor.

A natureza prova que o homem é subalterno e a mulher alcança a divindade. Se um sente a causa exteriormente, no outro o efeito se entranha do êxtase à nutriz que iguala o seio ao coração de mãe. Num, vibra a superfície da pele; noutro, a herança atua, o germe reconcentra dentro do organismo. A sensação, fecundadora, sendo profunda, produzindo o paroxismo no espasmo, é vivíssima.

Para atingir a esta sensação, homem e mulher, na vida social, lutam contra a heterogeneidade dos mais complexos e misteriosos sentimentos e contra os preconceitos da sociedade. Como namorados, noivos e esposos, como amantes e companheiros, ambos passam torturas infindas que vão desde o amor contrariado por obstáculos muitas vezes intransponíveis, ao amor incorrespondido pelo indiferentismo ou pelo abandono. Ou então, que adianta o ódio momentâneo entre amantes, se o amor não morre; recalca-o, esconde-o porque seria fraqueza confessá-lo. Mas o amor arde no peito como luz de lâmpada num túmulo.

Martins Fones tinha horror quando via que dois amantes se encontravam e se mostravam indiferentes e irreconciliáveis. Comparava esse encontro à sede, à angústia do avaro que deixou fugir um tesouro das mãos.

Beatriz, personagem adorável da trilogia de Dante, modelo da perfeição divina que Martins Fontes jamais entreviu na vida terrestre, simboliza esse Ideal de beleza integral, procurando incansavelmente. A essa graça rara, Martins Fontes murmurou um hino de amor, de que, no ardor da fé que lhe iluminava os sonhos, concretizando a alma, transfigurava a carne. Martins Fontes consagrava a adoração do seu culto e da sua idolatria a essa imagem cujo beijo imaculado lhe dava a impressão de aroma duma flor que não prometia um fruto.

Dante, na Divina Comédia, como numa Catedral de altas torres, encerrou, nessa vastidão, a piedade e a beleza suprema, sobrepondo-lhe a figura astralizada de Beatriz, como símbolo do amor eterno. Seria, pois, loucura de Poeta, esperar que encontrasse este Ideal.

Martins Fontes sofreu o suplício de viver sonhando nele, enquanto se inebriava nos amores fáceis e sensuais, como se quisesse adoçar a mágoa do coração com os delírios da carne. A mulher que o transportava a um culto supra celestial, transforma-se na amante.

É um romance com episódios infindáveis, vividos somente na imaginação do Poeta, sob os mais variados aspectos psicológicos. Começa a correr os mundos da sua fantasia como um Dom Juan. Às raparigas da sua própria terra, Martins Fontes declarava o seu amor e por isso o guerreavam sem se importarem com o feitiço dos seus encantos. Ele viveu enamorado, enfeitiçado por todas as raparigas que há no Brasil, sem exceção, sendo moças e belas. Quando elas rezarem devem lembrar-se do desespero e do sofrimento do Poeta que já sonhava nas futuras filhas destas e que seriam moças mas não lhe quereriam bem, porque então seria velho. Expressou o desejo de que a tortura da sua vida terminasse cedo. Se ele morresse moço, como previa, quanta menina desconhecida o choraria? Ele quis morrer jovem, igual aos paladinos de pluma e espada, de qualquer maneira nobre; salvando a vida duma criança, defendendo um velho ou uma mulher. A felicidade suprema é, com denodo de moço, morrer de amor pelas mulheres da nossa terra. Inspirado de amor, ele sentia que o coração rejuvenescia quando pensava que ia envelhecer.

Um encontro, na rua, ao sol, com a mulher amada, fez explodir no Poeta a mocidade estuante. Abraçou-a nua, ofegante e sôfrego. A glória desse instante foi como um raio, o fogo do sol ou a luz que anima os corpos e incendeia os mundos através dos espaços e das eras, e que atrai as almas. Ele chega trêmulo, pálido, incerto. Ela tenta fugir. Mas ambos são atraídos, ele pelo olhar, ela pelo sorriso. Ela chora nos braços dele. Beijam-se. Em lânguido torpor, sentem a embriaguês amorosa e veem, sem medo, felizes, a asa da morte espalmar-se sobre o seu amor.

Em ardente declaração de amor à mulher a quem ama extraordinariamente, não encontra a forma verbal para traduzir aquela paixão insana e cruel. Naquele êxtase, ouve dentro dele uma orquestra cuja música sobe, atravessa a garganta e rebenta na boca em beijos e blasfêmias.

Nunca perdoando, embora sofrendo muito, perdoaria a amargura em que vive, se, à hora da morte, ela lhe dissesse "Eu te amo!". Se ela olhasse o céu, à noite, compararia o seu amor ao espaço cheio de estrelas.

Essa paixão não lhe dava a impressão dum suplício infinito e do eterno sofrimento. Mas é preferível a morte à angústia de não poder distinguir a verdade da mentira, como ignorar se é leal o amor da amante, sempre crivado de ciúmes, até da própria luz, do chão, da sombra, do ar que ela respira, do vestido que a esconde, da espuma de sabão no banho ou das ondas do mar que se perfumam do seu aroma e lhe beijam o corpo, linha a linha.

No delírio do amor, ele chega a desejar ser ela mesma, para ter a certeza de que ela é sua. Muitas vezes beija a mulher amada e fica triste no receio de que aquela felicidade seja um sonho, apavorado com a simples lembrança de que ela, nos seus braços, não seja somente dele. E se fosse um sonho o momento em que beija a mulher amada, seria mais falaz que a verdade. A boca da mulher, na realidade, ilude-nos, dando a impressão de que apenas no sonho é que se beija. E sente muitas vezes vontade de dizer à amante, de maneira insensível e implacável, que a ama.

Ela anda triste e muda. Ele sabe a causa. Ela nunca diz o segredo da sua amargura que se vê nos olhos, porque um bom coração nunca é feliz. Não sabe se as mulheres adivinham que a gente gosta delas e se percebem, nas mínimas coisas, as nossas intenções. Se assim é, ela somente lhe devia dizer sim ou não, quando lhe declarasse o seu amor. Ele a via sempre e a qualquer momento, ora numa rosa ao luar, ora quando beijasse molhos de violetas. Melhor a via no seu coração quando cerrava os olhos.

O amor mata. Toda a gente sabe, rugindo ou chorando, que é um títere do azar, porque se persuade de que ninguém é o primeiro amante. Para viver contente, não se deve interpelar a mulher, e bebe-se, dum trago, o vinho do amor.

No entanto, ela, louca de amor, tudo deu ao amante e nada pediu porque ele era um rei, e o amou assim que o viu, não lhe resistindo aos galanteios. Se fosse virgem novamente, tudo lhe daria e nada pediria. Linda e corada, ela sorriu e ele riu enlevado com a sua mocidade e beleza, sabendo-a só dele como namorada, noiva e esposa – três vezes sua amante.

Não receia demonstrar-lhe o sentimento de amor veemente, ardoroso, exagerado, de que se orgulhava, dedicado à mulher que lhe deu a revelação da Beleza e da magia secreta. Ambos se regozijam porque anda são os mesmos amigos, sempre amantes, fiéis e apaixonados, como eterna primavera.

Então, sentia vontade de lhe contar a sua idolatria por ela. Ele não se conhecia antes de conhecê-la, e não seria nada se não a conhecesse. Ela foi tudo para ele porque na hora do encontro ela foi a luz, a poesia, a bondade e a beleza. Ele se curvara aos seus pés, de mãos postas, porque antes de bendizê-la era um cego em noites de tormenta e agora ela lhe fez ver a pureza das rosas e amar a delícia da vida.

Em certa manhã de sol, de ouro e azul, ambos foram passear pelos campos e pelos montes, abrindo caminho pelos moitais, ouvindo os sabiás e os bem-te-vis, comendo framboesas maduras. O sol iluminava a paisagem. O ar se amornava. Chegaram à cachoeira que borrifava fluídica chuva no orquidário. As borboletas voejavam aos pares. Nesse instante, ambos olharam-se e juraram, com mais veemência, um amor eterno.

Estavam assim trocando confidências de amor quando um bem-te-vi do bosque florido os denunciou. Ele tomou a mão da amante que estava gélida, para a aquecer entre as suas, como um pássaro que encontrasse um frouxel quente. E assim a mão dela, na tarde do final de outono, adormeceu na dele.

Ele a amava. Esta afeição, através do passado, era a mesma. O amor não é somente desejo fugaz e sim adoração, consolo grato, suprema virtude. Ante a amante sentia que ela se inflamava e oscilava entre o beijo, com o qual retribuiria o beijo dele, e o pudor de uma desilusão. Ela ardia, queria, mas sabia que, por castigo, para ser desejada era mister não pecar.

Quando se contempla no espelho, nota o ultraje dos anos, e suporta a afronta iníqua da fatalidade, mas ao mirar-se nos olhos bondosos dela, sorri e sente se rejuvenescer. Na impossibilidade dela ser unicamente sua, sonhava que, numa viagem juntos, naufragassem e fossem parar a uma ilha deserta, Cítera ou das Palmas, onde se amassem, livres do mundo, onde se beijassem, na face, nos lábios, no pescoço, em noite luarenta, tendo o mar por única testemunha, em que cada um relembrasse a música do amor, sem que conseguissem afinar, e num longo diálogo amoroso ambos se esquecessem das horas. A jornada é a vida, o destino é o naufrágio e a ilha é a do Acaso amável.

Ele tinha medo de que o seu romance de amor fosse divulgado ou houvesse intriga. No amor é impossível o juízo, sendo o único prazer no tremedal do mundo. Ele tremia por ela, mas não se arrependeu desse amor, porque o amor faz ascender e aperfeiçoa o coração. A matéria atinge a perfeição da forma pelo amor, e quem nunca amou é culpado de crime de lesa-humanidade. Os desejos pedem aos amantes que se amem, trocando beijos ardorosos, à hora do amor fúlvido, quando vozes atávicas bramam nos corações dos amantes que se inflamam, centuplicando os pecados mortais. Sendo impossível se amarem na Terra, a perfeição desse amor jamais alguém compreenderia. Comprometê-la aterrava-o, mas perdê-la intimidava-o.

Nesse desespero, ele contemplava o céu à noite, e ficava esperançoso de se beijarem na Via Láctea, durante uma hora azul. Ele amava e sofria e não podia suportar a amargura da sua ausência prolongada. Falava-lhe de fugida, a sorrir, na tortura de não comprometê-la. Debruçava-se sobre a sua tristeza, e ficava a soluçar, horas e horas, olhando o mar, no silêncio da noite. Este seu segredo, que o fazia chorar, era o seu único amigo e confidente. Ela, como um passarinho, tinha medo, mas ele a alentava a que não tivesse medo que, como os pássaros, era ágil e podia voar.

Certa vez, ele sonhava sonhar, à sombra duma árvore, sobre a relva, e nos braços dela adormeceu. Um canário, ao lado, cantava, mas um leve rumor o acordou e viu-a perto de si. Então achou melhor a realidade que o sonho. Ela falava como ninguém lhe falou, e nas suas palavras sentia o perfume da sua música. Embalava-o quando ela voluteava, modulava a voz com graça e viveza. Brilhava e seduzia. No entanto, ele, querendo falar muito, só sabia dizer – Eu amo!

O seu coração se encheu de tanto afeto e paixão que, nesse anseio, não podia querer a mais ninguém. Ele sofria um amor por ela, predileto e máximo. Não podia mais e receava que não dominasse a sua fúria, e o coração se rompesse morrendo de amor. Se chorava, devia bendizer o sofrimento sem guardar rancor, deixando o coração ao léu das intempéries. Adorava a santa que o fazia chorar porque ela lhe fazia sentir o amor.

Amaram-se com tanta atração que parecia loucura que incendeia os corpos. Arrastados por esse desvario e alheios às convenções – a carne, no delírio da volúpia, fê-los pensar na morte. Pouco a pouco, a paixão se abrandou e agora somente existia o sentimento mútuo da Amizade, mais belo que o Amor. Quem sabe se aquela que se apaixonou por ele, ao fim de muita amizade, lhe ficou com aversão. Mas de quem ele teve saudade, torturando-lhe o coração, nem amizade, nem aversão lhe consagrou. Todos lhe admiravam a beleza menos ele, entretanto na despedida os admiradores sorriam, menos ele…

Lembrava-se, em noites de tempestade, quando passavam juntos os serões, à luz da candeia na velha sala, enquanto ela costurava. Ele a amava, e assim ficava a evocar-lhe o nome. Ambos se entendiam de tal forma que, de corações unidos, atingiam à mais alta e pura afeição, confundiam as próprias sombras, pareciam-se pelo andar e pela expressão, estavam sempre de acordo em tudo, e chegavam a repetir as mesmas frases com a mesma tonalidade de voz quando se achavam sozinhos.

Eram assim parecidos, idênticos pela fisionomia e pela moral, e acreditavam que atrações cósmicas ou simpatias ancestrais atuaram nessa identidade ou sublimação do amor. Quando eles ficarem velhos, ainda serão os mesmos. Os esposos muitas vezes, no decorrer dos anos, tomam costumes iguais e chegam a se parecer. Assim, ele e a amante cada vez se pareciam mais.

A história simples e sincera, num inalterável romance de amor, será imortal. Gêmeos de corpo e coração, eles perdurarão noivos constantes até no além do além da morte. Nunca se conheceram, porém quando se encontraram na rua sentiram-se atraídos por qualquer força misteriosa. Uniram-se e viveram felizes por vontade dessa força terrestre que atrai os amantes. Ele a amava mas era pobre, bondoso, honrado, inteligente. A família dela, modernizada, dava ao ouro mais valia porque o ouro tudo compra e corrompe. Alguém ofereceu a ela um colar, falando-lhe da miséria, das crianças rotas, mas ela repeliu a troca do amor por dinheiro ou pelas pérolas eu sempre são falsas.

Ela lhe pediu, ao Cavaleiro do Amor, que, quando morresse, ele não teria outra amante. Era um apelo dolorido para que ele não lhe traísse a memória, porque, em desespero e apesar de morta, morreria no céu pela segunda vez. Ora a honestidade apraz porque eleva, mas não devemos louvar demais a graça feminina, como respeito, nem gabar a virtude do homem e da mulher honrada e honesta. Exaltemos esta devoção que surge, em segredo, da prova de revelação ou incorporação.

O amor jamais se satisfaz e faz parte dos que julgam esmola mesquinha a fé e não esquecem. Preferem continuar o sofrimento em que encontram prazer, sem se conformarem; não receiam a morte e conseguem impor o sacrifício a outros, o coração louco de amor se comprime e estala, extravazando dor acerba.

Quem esquece o amor e magoa a mulher revela ser um vilão. Quem faz declaração falsa e jura à toa, atraiçoa mais o amor que a namorada. O amor é altivo, não esmola, abafa o soluço, se recata e se estiola.