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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-01)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 21 a 28):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

1

Desde que um espírito se acha em presença de uma obra, é necessário que comunique com o pensamento dessa obra, que absorva por assim dizer as ideias e os sentimentos desse autor, que estabeleça entre uma alma e outra uma fraternidade tão estreita que nada daquilo que o autor pense fique indiferente ao crítico. Isto demanda um pouco de habilidade, perspicácia, sutileza, mas de modo algum implica o abandono de nós próprios. Semelhante assimilação resulta de um exercício da faculdade de amar.

Elísio de Carvalho.

Tive conhecimento da existência de Martins Fontes quando, em Coimbra, cursava o liceu. Uma carta amiga que recebi de Santos, em 1918, anunciava-me, em ligeira informação do movimento literário da minha terra natal, a publicação do livro de poesias Verão, dum jovem santista, cuja obra apareceu como revelação claríssona de um novo gênio poético no Brasil. Fixei este nome e mostrei-me ansioso de ler-lhe os versos.

Em seguida, lia, orgulhoso do meu conterrâneo, num livro de Júlio Dantas, aparecido naquele ano, uma referência profética a Martins Fontes, em Eles e Elas, em que censurava os homens de letras portugueses de ignorarem a floração notabilíssima de poetas brasileiros, detentores da herança vernácula de Vieira e de Bernardes, passando, depois, em rabisco célere, indeciso na filiação do poeta de Verão em qualquer escola libertária, a determinar a obra dum parnasiano extraordinário, com o louvor à poesia, na qual notou duas tendências: a simplicidade e limpidez ateniense dos conceitos, e a preocupação do esplendor, da ostentação, da opulência vocabular.

Andava eu, nos princípios da juventude, enlevado com os primores da literatura, projetando sonhos, entre os livros fantásticos de Júlio Verne, em suas viagens maravilhosas aos mundos conhecidos e desconhecidos, e os romances trágicos de Alexandre Dumas, pai e filho, de Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, cujas leituras embalava com as melodias dos poemas de Camões, de Bocage, de Garrett, de Antero de Quental e António Nobre, de João de Deus e Casimiro de Abreu, de Eugenio de Castro e Olavo Bilac.

Auscultava estes poetas prediletos na famosa Biblioteca da Universidade, que frequentei, assiduamente, naquele hospitaleiro silêncio do Templo de Minerva, entre estantes altas, com varandas, decorações de talha e pintura a ouro em fundo azul e vermelho, que guarnecem três amplas salas, sob tetos ornamentados de quadros, ostentando na parede dos fundos alto retrato de d. João V, e ali guardam milhares de livros raros e com iluminuras, vistos e lidos à luz do dia que entra pelas janelas gigantes.

De volta à Pátria, em 1919, cheio de saudosas reminiscências da infância, vim encontrar a cidade de Santos no caminho do progresso acelerado, onde ainda residiam antigos condiscípulos do Ginásio Santista e da Academia de Comércio. Reatei a antiga camaradagem com Mariano Gomes, António Feliciano, Arquimedes Bava e outros que, depois, fundaram a Associação dos Antigos Alunos do Ginásio Santista, com sede no vasto porão da escola, à Rua da Constituição, ao lado da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, ocupando um salão de assembleias e conferências e uma saleta da diretoria e da biblioteca.

A nossa diversão principal era o jogo de pingue-pongue. Realizavam-se palestras literárias semanais. Confraternizavam-se mestres e antigos alunos, num ambiente de muito respeito e de alta cultura, porque todos se igualavam agora em sabedoria, e as conversas circulavam por estradas largas e arborizadas, em excursões ao passado, cheias de emoção e de carinho. Desde essa ocasião, a camaradagem, coparticipando eu da diretoria como bibliotecário, com Mariano Gomes, Arquimedes Bava e António Feliciano, amigos de infância naquele ginásio, perdurou longamente.

Na Associação, em sarau literário, ouvi pela primeira vez a Martins Fontes, que falou comovidamente sobre Olavo Bilac, e recitou, com escândalo para a assistência de fiéis católicos e irmãos maristas, A Alvorada do Amor, voluptuosa invocação de Adão e Eva, depois de expulsos do Éden, no dia do Pecado.

Mais tarde, a 28 de junho de 1922, sob o patrocínio da Associação, no segundo andar do ginásio, em salão amplo, formado pelas salas de aulas com as divisões de vidraças móveis arredadas, Martins Fontes leu, a numeroso auditório, a conferência O que os cegos veem. Nunca mais deixei de o ouvir em outras vezes, com admiração crescente por este gênio literário, cujo nome trazia na lembrança, desde Coimbra. Os antigos alunos do ginásio, apesar da sombra paternal dos padres maristas, não souberam conduzir religiosamente os destinos da Associação que, em breve, com desinteligências entre os diretores e entre estes e os padres maristas, se dissolveu, a bem da ordem interna, dividindo-se o patrimônio entre a Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio e a Congregação Mariana.

Desta convivência agradabilíssima com moços ilustrados e artistas, originou-se a amizade com Mariano Gomes, que pertencia ao círculo literário da cidade, e colaborava nas festas e saraus, recitando poesias originais ou dos poetas mais queridos, sobressaindo-se as poesias de Martins Fontes, o ídolo de todos os beletristas de Santos, com Arquimedes Bava, o intérprete predileto, junto de Paulo Gonçalves, de Fàbio Montenegro, Alvaro Augusto Lopes, Galeão Coutinho.

Um dia, quando eu redigia o semanário humorístico e literário "A Farpa", como iniciação jornalística profissional, no inverno de 1925, depois de longa permanência no interior do Estado, Mariano Gomes, o melancólico poeta de Suavium, convidou-me a visitar Martins Fontes, no consultório médico da Rua Vasconcelos Tavares. Ali, no pequeno tumulto de clientes, dos amigos e dos admiradores, me foi apresentado um homem atarracado e cheio de corpo, de cabeça máscula com cabelos castanhos escuros, encaracolados, em que se agitava um rosto sanguíneo, movediço e expressivo, de sorrisos acolhedores e de olhares felinos, fixos, penetrantes, vestindo bata alva e perfumada – era o Poeta.

Encontrava-se na companhia do poeta e filólogo Agenor Silveira. Ambos conversavam, a sós, na sala de curativos, sobre poesia, quando eu e Mariano Gomes os interrompemos. Imediatamente, fui admitido à palestra porque a minha apresentação se fez acompanhar de breve atestado verbal de jornalista principiante, cultor amável das letras, admirador do grande poeta santista.

Martins Fontes pousou, com maneiras afetivas e enternecedoras, o braço esquerdo sobre os meus ombros, envolvendo-me na intimidade daquela saborosa cavaqueira, com a tácita proibição de não usar enquanto falasse, do dissonante, burguês, Vossência que trouxe de Coimbra, para lidar com personalidades de destaque social. Nos cumprimentos de chegada, visita, despedida, ou no texto da conversa, o Vossência teimava envolver-se nas frases calculadas e medrosas que me ousavam fugir da boca para louvar o poeta, que mostrava irritação súbita, no franzir das sobrancelhas e no encolher dos cantos dos lábios, repelindo o Vossência para longe como intruso.

Relembrei-lhe o sarau de arte da Associação dos Antigos Alunos do Ginásio Santista, em homenagem ao Irmão Marcos, em que, depois da audição de piano da senhorinha Ana Rosália Antunes e de poesias por Mariano Gomes e Arquimedes Bava, tive o enlevo de ouvir a conferência "O que os cegos veem", do grande poeta santista, cuja glória já se tornara nacional.

Dia a dia, mês a mês, ano a ano, ascensionalmente, a nossa amizade cresceu, mútua simpatia nos aproximou para sempre, alegre, bela, jamais empanada de ressentimentos, sempre obscura, sem manifestações barulhentas, como nas relações com outros e incalculáveis amigos. Nesse longo trato íntimo de camaradas, cerca de doze anos, colhi de Martins Fontes ensinamentos e orientação positiva nos estudos filosóficos e literários.

Onde quer que nos encontrássemos, não perdíamos um segundo em frívolas palavras, continuávamos, sempre a caminho, ora do consultório, ora dos hospitais, ora da residência, o assunto que discutíamos na vez anterior, graças à sua memória fenomenal. Como entre nós existia certo parentesco de ideal, porque as nossas "ideias eram primas-irmãs", confiávamo-las, mutuamente, sem receios, para analisá-las com minúcias, com apaixonado carinho de amantes, formando o esboço dos temas que seriam mais tarde metrificados em poemas de forma fixa ou livre.

Uma lembrança das poesias dos mais queridos poetas, a leitura de qualquer livro ou artigo de jornal, serviam de alicerce ou pedra fundamental para início dos debates, ora sossegados como os dias de primavera nos campos e nas praias, longe do bulício humano, ora barulhentos, com gestos de oradores parlamentares, largos, violentos, como se nisso, ilusoriamente, estivesse a solução dos problemas sociais e estéticos.

Todas as tardes eu ia encontrar Martins Fontes, agitado, apressado, a assinar talões dos fiscais da Sanitária, na Repartição da Rua do Comércio, enquanto o delegado de Saúde, dr. Guilherme Álvaro, no seu modesto gabinete, ao lado, a portas fechadas, recebia, amável, em audiência, dezenas de pessoas para tratar de questões de higiene.

Ali mesmo, no estrepitar de perguntas e respostas, nós passávamos as mãos de leve em "nossas ideias", ou, formando círculo, ouvíamos os últimos rebentos de prosa do dr. Horácio Brandão, em gestos de solenidade oratória, dando à voz entonação calorosa. Martins Fones, com a cabeça inclinada à esquerda, olhos arregalados, movia os lábios, imitando o movimento dos lábios do colega, na leitura da pequena peça literária. Um – muito bem! – encerrava os minutos longos da audição. No dia seguinte, saía publicada num vespertino paulistano.

Anunciei certo dia, a Martins Fontes, que projetava uma viagem a Portugal, no outono de 1926, de que mandaria relato minucioso, por etapas, a um matutino da nossa terra. Martins Fontes atravessava doloroso momento, de profunda desilusão. Nunca soube a causa, respeitando-lhe o sofrimento íntimo, sem querer indagá-lo. Regozijou-se com a minha viagem. Incumbiu-me de procurar, em Lisboa, Júlio Dantas, que há pouco visitara festivamente o Brasil, e em Santos pronunciou conferências notáveis. Dir-lhe-ia que Martins Fontes pretendia abandonar a Poesia, recolher-se à solidão duma biblioteca e esperar a morte como ascético monge.

Em Lisboa, encontrei Júlio Dantas, ao acaso, numa rua central da cidade, à espera, democraticamente, do carro elétrico, em trânsito para a Casa do Parlamento, em São Bento. Dei-lhe o recado, dentro do automóvel que tomamos para irmos mais depressa e conversarmos à vontade, e ele não quis acreditar na notícia, devolvendo-a com as mais carinhosas e incentivas palavras ao genial poeta, glória da língua portuguesa. Num abraço cordial, despedimo-nos porque, no vestíbulo, um contínuo veio avisá-lo de que se iniciava a sessão do parlamento, onde se debatiam graves questões políticas e econômicas. Saí com os ouvidos cheios de palavras eloquentes que guardei satisfeito para entregá-las a Martins Fontes, logo que regressasse a Santos…

Durante algumas horas, a sós, no Hospital do Isolamento onde o encontrei a descansar da lida insana do dia, Martins Fontes ouviu, em silêncio, a mensagem oral de Júlio Dantas. Guardou-a com um afetuoso "como Júlio Dantas é bom!". E daí, as nossas conversas continuaram durante anos.

Martins Fontes animou-se, em 1927, a reeditar o livro de poesias Verão,numa edição definitiva, contando com o magnânimo e bondosíssimo Bernardino de Barros, conquanto proclamasse que o artista, eterno insatisfeito, passa a vida a retocar a obra, até atingir a Perfeição.

Encontrara editor no seu grande amigo e livreiro português, Bernardino de Barros, a quem se deve a publicação de quase todas as obras de Martins Fontes, e que nunca se lastimara com o volumoso encalhe dos livros que atulhavam as prateleiras do Bazar Americano e formavam razoável empate de capital para quem o possuía em quantia irrisória! A seção tipográfica do Instituto D. Escolástica Rosa se encarregaria, como das outras vezes, da impressão.

Martins Fontes, por amor à sua terra natal e pela esquivança dos gananciosos editores das capitais, contentou-se em contemplar os seus versos nos humildes livros provincianos, compostos, impressos e encadernados pelos alunos do Instituto, o que bastante o enternecia, orgulhando-se daqueles pequeninos obreiros da cultura santista.

Quando lhe entregaram as provas da nova edição de O Verão, Martins Fontes telefonou-me, gritando que iríamos ambos revê-las, e havia pressa, muita pressa, para, na tipografia, sem parar o serviço, iniciar-se a paginação e tirar-se a prova de página final. Outros amigos também reveriam. Entreguei-me ao trabalho fatigante de revisão das primeiras provas, onde as emendas se amontoavam e se confundiam como hieróglifos, com anotações de natureza filológica.

À noite, Martins Fontes me esperava, ansioso, na sua discreta residência da Vila Andradas. Chovia torrencialmente. Do Sul, o vento arrojava-se valente e audaz; o céu aclarava-se aos relâmpagos e mostrava imensas nuvens rolando velozes. Perto da Cadeia Pública e do Hospital da Santa Casa, os lampiões davam luz fraquinha e amarela. As sentinelas resguardavam-se nas guaritas, ambas silenciosas e firmes. No jardim da Praça dos Andradas, as árvores altas e centenárias se debatiam em bulha raivosa, entre gemidos lúgubres. Vento e chuva, em ondas furiosas, vergastavam paredes, janelas e portas das casas baixas circunvizinhas e mergulhadas em apavorante penumbra.

Alcancei, a custo, a casa de Martins Fontes, onde a luz elétrica acesa na sala de visitas, através das vidraças encortinadas e das persianas, me serviu de farol no meio do temporal daquela noite. Os meus passos na calçada e o estridor do portãozinho de madeira, ao abrir-se, avisaram Martins Fontes de que eu me aproximava. Entreabriu-se a porta de entrada, deixando passar uma faixa de luz, cor de laranja. Subi pequeno lance de escadas, que conduzia ao corredor estreito, acimentado e descoberto. E à voz de – entre! -, sacudindo-me da água, encontrei-me no modesto gabinete de trabalho do poeta.

- Que tempo horrível! – foi a saudação de Martins Fontes. Logo, iniciou conversa, apresentando-me aos companheiros fiéis e sábios, perfilados e silenciosos, os livros, numa estante larga, aberta, junto à parede dos fundos, e os retratos dos amigos e da família sobre a escrivaninha. Livros e móveis estavam carinhosamente arrumados.

Em tudo, notava-se a mão misteriosa duma fada caseira: o encerado lustroso do chão, o tapete claro de franjas escuras que eu sujava com os sapatos molhados e enlameados, o sofá e a poltrona de verniz preto luzidio com almofadas de cretone ramado, as cortinas de fina cassa branca, uma ramalhuda samambaia na cantoneira, as flores, rosas, cravos e violetas em jarra esguia, o sereno e agradável ambiente de sonho e perfume.

Sentei-me junto à escrivaninha. Martins Fontes, num pijama branco e fresco, com as faces cheias e rosadas, um caracol dos cabelos a lhe balançar-se na testa, à ordem de – vamos ao trabalho! – desenrolou as provas tipográficas e ambos começamos, em diálogo, a examinar as emendas e as notas.

De caneta em punho, Martins Fontes ora confirmava as minhas observações, ora estacava numa dúvida. Discutíamo-la até encontrar-se a solução, depois de ruidosas pesquisas nos dicionários, principalmente o autorizado vocabulário de Cândido de Figueiredo, em livros de ensaios e gramáticas, porque não tínhamos à mão o mestre Agenor Silveira.

Esta azáfama durava horas, que, como areia na ampulheta, se escoavam sutilmente. Sob a influência das ressonâncias fortes das vogais claras e das consoantes metálicas, durante a leitura, nós nos embrenhávamos pelas regiões florestais do Sonho, a caminho do Ideal: o Partenão que, ao longe, entre nuvens, ao clarão dos relâmpagos, esplendia a brancura marmórea das quarenta e seis colunas dóricas e frontões em relevo, no alto da acrópole de Atenas, tal qual um dia de sol fulgurante da Grécia.

Entramos juntos, paladinamente, mesquinhos e tímidos, liberais e cavaleiros enamorados, no gigantesco Templo de Atenea, colocado, em nossa imaginação, dentro do Espaço e do Tempo, no Azul incomparável do Cosmos, onde a Vida Humana e as Paisagens da Terra renascem com maior e mágico esplendor. As estátuas dos frontões, os baixos relevos dos frisos, com exceção da deusa Atenea que Fídias esculpiu para glória da Arte, não salientavam deuses e deusas, as lutas dos Centauros e Lápitas, de Hércules e Teseu, episódios da guerra dos persas e a marcha em procissão de cavaleiros, sacerdotisas, archontes, levando oferendas à filha virgem de Zeus.

Não. Neste sonho, nós víamos esculpidas as mulheres que Martins Fontes amou; a Humanidade pela qual ele sofreu; os amigos artistas, falecidos, que ele adorou; a Terra Brasileira em sua grandiosidade florestal e sertaneja; o torrão paulista nas lutas do seu povo; a querida cidade de Santos e arredores pitorescos; finalmente, os ídolos imortais da Liberdade e do Ateísmo, pelo Positivismo…

Meia noite. No relógio do Hospital da Santa Casa da Misericórdia bateram doze badaladas secas e lentas, cujas ondas sonoras o vento dispersava, ouvindo-se melhor ora umas, ora outras. Um raio, num clarão assombrador, racha grossas nuvens e estala perto da Cadeia Pública, seguido de rápido e pesado trovão que nos abala e acorda assustados… Findara o sonho!

Repetiram-se estas visitas nos anos subsequentes, em outros locais, quando surgiam novas provas, para a revisão, cujo trabalho rude e gostoso se perdia, em grande parte, com o descuido dos tipógrafos em corrigir os erros pelas nossas abundantes emendas. O Poeta sempre tinha pressa em ver o livro aparecer nas montras dos livreiros, mais para oferecê-lo aos amigos que para vendê-lo.

No Brasil e nos países de civilização rudimentar, formou-se o preconceito de nojo a qualquer livro de versos, o que precisamos destruir, criando-se o respeito pela alta cultura literária no estudo da mais bela arte que contribui imensamente para a beleza da linguagem oral e escrita – a Poesia!

Os editores, eternos sanguessugas do talento alheio, proclamam, enfaticamente, que ninguém lê versos e que estes livros se amontoam nos seus armazéns até que um dia os vendam, em final liquidação, a preços de queima, como em lojas de armarinho, aos trapeiros de papel velho. Na pior das hipóteses, vão dormir eternamente nas estantes das bibliotecas públicas, cemitério, aliás honroso, de todas as relíquias e joias do pensamento humano.

Os primeiros editores de Martins Fontes foram Bernardino de Barros e Galeão Coutinho, um no Bazar Americano, outro na Agência Novidades, ambos artistas: este poeta e jornalista; aquele amador de teatro e participando do corpo cênico de associações recreativas e literárias.

Estes editores publicaram alguns livros de Martins Fontes, mais por amizade e admiração sinceras e profundas, que por interesse de lucro sobre a produção literária dum poeta desconhecido ainda, no Brasil, há anos, conquanto depois os críticos, em suas histórias da literatura, o olvidassem uns, o amesquinhassem outros.

Jamais essa atitude dos seus contemporâneos o inquietou. Ele sobrepunha, ao desejo de publicidade, o Ideal do Belo eterno que lhe dominava totalmente a inteligência, a vontade e o sentimento. Martins Fontes compreendia, tristemente, que não poderia viver à custa de proventos com a venda dos livros de versos. Jornais e revistas publicavam, à revelia, os seus poemas, e ele nunca reclamou os legais direitos de propriedade literária.

Martins Fontes, que nunca recebeu indenização por esses atentados ao trabalho intelectual, repetia, melancolicamente, e saudoso, o conselho de Olavo Bilac que guardava, orgulhoso, num álbum, repetindo-o constantemente: "Ama a tua arte sobre todas as coisas, e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome, para não prostituir o teu talento". E pouco faltou…

A biografia de Martins Fontes, não romanceada - para se analisarem particularidades ou minudências inúteis porque nunca somos como parecemos, fazendo surgir os poetas como espíritos supremos, sem anomalias, fugindo dos que vivem catando caramujos nas rosas – escrever-se-á no dia em que todos os amigos íntimos, pelos quais ficou repartida aquela gloriosa existência, contarem as suas memórias. Não faltarão penas de ouro ou custosas máquinas de escrever que tracem o livro definitivo sobre um dos maiores poetas deste século atormentado e transitório.