O Caso Sentimental de Eduardo Sancho
Não saberia explicar. Enquanto não publicara aquele primeiro
livro, sentia-se confiante. No manuscrito, que tantas vezes refizera amorosamente, estava a parte melhor do seu ser. Agora, que o livro andava exposto nas vitrinas, sofria de uma humilhação secreta, como se houvesse praticado um ato de impudor
inútil. Ou tudo isso não passava do receio de ter publicado um livro inferior à sua ambição de poeta obscuro?
O livro fora a sua esperança: agora, arrependia-se, imaginando mãos indiferentes a folheá-lo, dedos a apontar defeitos, olhos a passar sem interesse
pelas palavras mais comovidas...
Ia uma tarde pela rua, perdido nesses pensamentos, quando uma voz amiga soou perto:
- Parabéns!
Olhou: era Carlos Andrade, que saltava de um bonde. Ia com pressa, mas parou um instante:
- Parabéns! Eu sei de uma menina que anda com o teu livro na mão o dia inteiro.
E foi-se, deixando Eduardo confuso e feliz. Alguém lia, relia os seus versos... Alguém! Com certeza aquela que se via retratada em certa quadra:
Em que região, em que misteriosa região
Se esconde a doce bem-amada que eu desejo,
Essa que com certeza espera por meu beijo
Como outrora Belquisse pelo de Salomão?
Dias depois, à porta da "Brahma", encontram de novo Carlos Andrade. Estiveram a conversar um quarto de hora, comentando acontecimentos banais. Em dado
momento, Eduardo ensaiou a indagação tímida:
- Disseste-me ouro dia, quando ias com muita pressa, que uma criatura qualquer tinha gostado do meu livro...
Distraído, a reparar nas mulheres que passavam, Carlos Andrade perguntou vagamente:
- Que poesia? Que criatura?
Chocado por aquela atitude, Eduardo Sancho não insistiu e fez menção de despedir-se. Carlos Andrade agarrou-o pelo braço:
- Não fujas, homem! Já nem me lembrava do que te havia dito. Olha, é uma menina muito interessante e muito minha amiga. Não conheces.
Passava uma espanhola de grandes olhos fulgurantes: sorriu para Carlos Andrade.
- É a Concha - informou com intenção, piscando um olho para Eduardo.
E foi ele, desta vez, que se despediu, em perseguição da espanhola.
***
Eduardo atravessava uma crise que poderia ser, simplesmente, um pouco de neurastenia, mas a que um velho amigo de sua família, o dr. Filipe Furtado,
conhecendo-o desde menino, chamava ironicamente "inquietação de poetinha".
- Também fiz versos. Também tive vinte e dois anos como você. Sei o que são essas inquietações de poetinhas...
Era absurdo, em verdade, que Eduardo tivesse a impressão de estar falhando em tudo, só porque ainda não encontrara o esperado "grande amor". Perdera o
gosto pelo trabalho. Não escrevia mais. Para se dedicar ao novo livro já começado - agora, seria um romance -, faltava-lhe a paz interior, a satisfação daquele desejo sentimental em que se agitava e consumia. Ah! se pudesse mudar de ambiente,
viajar...
Para ele tardava a revelação do amor harmonioso. Só podia fazê-lo feliz uma mulher com o seu temperamento. Não tinha muita esperança de encontrar essa
criatura completamente irmã, uma criatura que amasse o isolamento, o egoísmo da intimidade impenetrável a estranhos, os livros suaves e a penumbra da lâmpada.
Em que região, em que misteriosa região?
Podia ser apenas Botafogo, ou Laranjeiras, ou Tijuca... Ele bem sabia que os desencontros da vida é que fazem as distâncias e criam aqueles românticos
mistérios geográficos. Às vezes, à noite, atravessando a baía na barca de Niterói, o que fazia amiúde, para ter a ilusão das longas viagens, olhava a faiscação das luzes da cidade e repetia às estrelas os seus quatro versos de melancolia. Outras,
errando pelos arrabaldes de madrugada, parava para sentir a paz aromática dos pequenos jardins, envolvendo as casas adormecidas. Talvez atrás daquela janela que brilhava ao luar estivesse a mulher esperada. Tinha o ímpeto de dizer alto: "Vem!" Uma
noite gritou um nome qualquer, atirou-o, súbito, ao silêncio das estrelas... E um cão ladrou à distância, numa vigilância assustada.
Essa era a sua "crise". O dr. Filipe Furtado surgia com o convite como que mandado por Deus.
A Europa! Adido à Missão de Propaganda Comercial do Brasil em Londres! Era enfim o vasto horizonte que se abria: as paisagens diferentes, as multidões
diferentes; os climas brumosos, delicados; as mulheres brumosas, delicadas... O grande amor, certamente...
- Pois é, menino, pensei em você. Estou formando a missão. Venha comigo. Uns anos de Europa vão fazer-lhe bem. Você está moço, precisa aprender muito,
deve aproveitar... Vai ver o que é um país organizado!
Caía do céu o convite. No seu alvoroço, imaginando já as emoções de outras terras, nem pensava mais naquele livro de versos de que alguns jornais
começavam a falar e que lhe daria, noutras circunstâncias, a satisfação de uma pequena glória literária.
Foi quando Laura Gomes, em casas do dr. Furtado, lhe perguntou uma tarde:
- Conhece Maria da Graça Barreto?
- Não.
- Não?
- Não.
- Admira-me...
- O nome é lindo, Maria da Graça... Mas admira-se por quê?
- Porque ela o conhece muito.
- Hum...
- De versos.
- Ah!
O dr. Filipe Furtado interrompeu a conversa e Eduardo Sancho ficou por aí. Não havia nada de mais numa certa Maria da Graça que lia versos.
Entretanto, teve prazer. O Carlos Andrade descobrira uma mulher que o admirava. Laura Gomes descobrira oura. Experimentou então, pela primeira vez, a
sensação de autor. Sentiu a força irradiadora da arte, a projeção do gesto que semeia a emoção...
***
À noite, na "Brahma", encontrou-se de novo com Carlos Andrade. Carlos Andrade foi sentar-se à sua mesa e Eduardo Sancho recordou-se da Maria da Graça.
- Sabes? No Rio de Janeiro há uma segunda criatura que gostou da minha pobre poesia... Um lindo nome: Maria da Graça.
Carlos Andrade tomou uma expressão de surpresa e acabou rindo:
- Barreto?
- Exatamente.
- Pois é a mesma de que eu falei...
- Ah! - exclamou Eduardo -. Então essa menina está fazendo uma grande propaganda do meu nome.
- Não queres acreditar... Paixão, ó poeta!
Dias depois, escrevendo ao Paiva Peixoto, o seu amigo íntimo, que estava naquele momento passando uma temporada em Caxambu, comunicou-lhe a próxima viagem à Europa e
principalmente o caso de Maria da Graça, "um caso um tanto indeciso, porém interessante". Na semana seguinte recebeu a resposta do Paiva Peixoto e ficou perplexo. Paiva Peixoto comunicava-lhe que, conversando com a Marietinha e com as Gonçalves a
respeito de Maria da Graça, colhera informações preciosíssimas. Paiva Peixoto reproduzia o diálogo que tivera com as amigas.
" - Inteligente?
"- Muito.
"- Expansiva?
"- Pouco. Dava-se com todas nós no colégio, mas não era íntima de nenhuma".
Mais adiante, havia dito:
"Depois, meu caro Eduardo, querendo saber ainda mais a respeito dessa criatura - que aparece em condições especiais na tua vida -, fui a outros detalhes. Assim, soube o
seguinte: vinte anos, pequena, morena, viva, bonita, lindo riso, magníficos dentes magníficos cabelos negros. O tipo da brasileira discreta, intelectual, para fazer feliz um poeta. Passa os dias a ler. Lê muito, muitíssimo! Mulher para o espírito e
para a vida..."
Dois dias depois, outra carta. Nessa, Paiva Peixoto - amigo ideal! - contava: "Soube, pela Marietinha, de mais coisas interessantes. Por exemplo: há três anos que Maria
da Graça fala no teu nome ao Alberto Camargo e a ela. Ambos conhecem-na muito. Vai procurar o Alberto."
Eduardo Sancho foi ao atelier do Alberto Camargo. Estava pintando umas hortênsias enormes, atiradas à mesa.
- Perdoa que eu te interrompa...
E perguntou imediatamente, como se aquilo fosse um caso de absoluta urgência:
- Conheces Maria da Graça Barreto?
- Conheço. Que há?
- Nada. É verdade que ela perguntava por mim a ti e à tua noiva?
Alberto Camargo riu e só então Eduardo Sancho percebeu que estava sendo imprudente.
- Depois eu te explicarei por que pergunto. É verdade? Responde!
Alberto Camargo, irônico, afetou distração:
- Não me lembro... Sim... é... recordo-me agora. Lia os teus versos nas revistas, parece. Perguntou-me algumas vezes se eu te conhecia, donde eras, o que fazias...
- E nunca me disseste nada!
- Para quê, filho? Achas que era caso para isso? Enfim, não me acudiu. Mas aí tens: perguntava por ti, sim... O que há?
- Nada. Adeus.
Alberto jogou os pincéis para um canto, mas Eduardo saíra correndo. Do patamar da escada ainda gritou para Eduardo, já na porta:
- Seu tolo, vem cá!
Eduardo desaparecera.
À noite o dr. Filipe Furtado recebeu uma telefonada:
- É o Eduardo quem fala. Olhe, pode dispor de meu lugar na missão. Amanhã lhe explicarei as razões da desistência.
***
Às três horas a barca de Teresópolis partia do Pharoux. Era um sábado de sol. Longe, do outro lado, a Serra dos Órgãos azulava. Era ali, atrás do Dedo de Deus, nítido na
claridade da tarde que estava Maria da Graça.
Carlos Eduardo, na véspera, ao ouvir o que Eduardo lhe contava, dissera finalmente:
- Vou confessar-te: Maria da Graça é minha prima. E não é a primeira vez que ela se refere a ti. Eu não dera atenção, hás de desculpar... Agora, com o livro, a coisa
mudou de figura... Olha, ela está passando o verão em Teresópolis.
Não era preciso que Carlos Andrade o informasse disso. Paiva Peixoto já lho mandara dizer, numa carta assim: "Em que região, em que misteriosa região se esconde a doce
bem-amada que eu desejo? Apenas em Teresópolis, no Hotel Internacional". E da carta saíra um retrato de Maria da Graça, que Marietinha mandava. Encantadora! Estava sentada no gradil de um terraço, diante da paisagem, abrindo um delicioso riso
para a objetiva...
Então Eduardo resolveu conhecê-la de perto, sem mais demora. Andava tonto, inteiramente perturbado. O Rio de Janeiro já lhe parecia generoso e amável. A cidade não o
asfixiava mais... Começou, de novo, a encontrar encanto na paisagem. É que por aquelas ruas costumava andar uma mulher que decerto o esperava, "como outrora Belquisse por Salomão". Essa mulher realizava o seu tipo, parecia a companheira ideal.
Eduardo Sancho sentia-se quase feliz... A crise de melancolia estava em perigo. Dentro dele o amor fazia o eterno milagre.
Ia agora a caminho de Teresópolis... A barca passou em frente à Ilha Fiscal. Encostado às grades do convés, Eduardo olhava a baía enorme, onde as ilhas faiscavam ao sol.
As árvores da Praça Quinze de Novembro diminuíam na distância, achatavam-se. A cidade se desdobrava, imensa para os lados, para o fundo, com fulgurações de torres e telhados. Os navios, esparsos, ancorados, despertavam o vago desejo de viagens
compridas e repousantes. E a barca, oscilando levemente, cortava as águas. O Dedo de Deus esbatia-se no azul da distância, como um aceno parado. Um aceno que Eduardo Sancho compreendia...
***
Ao atravessar o parque do hotel, estava calmo, porém a ideia fixa de Maria da Graça tornava-o um pouco ridículo perante si mesmo. Pelo terraço iluminado havia gente
espalhada, fazendo a digestão. Ao dirigir-se ao escritório olhava para todos os lados, para ver se lhe aparecia alguma criatura que se parecesse com o retrato. Ninguém.
No refeitório havia movimento. Devia estar ali. Então foi fazer uma toalete rápida e dentro em pouco sentou-se à mesa, que pedira fosse ao fundo do salão. E, disfarçando
a emoção com o ar mais indiferente do mundo, pôs-se a examinar mesa por mesa...
Maria da Graça estava lá: de costas, no extremo da sala, eram dela aqueles cabelos negros, magníficos, pesados... Jantava com os pais e uma amiguinha. A amiguinha, ao ver
Eduardo, falou-lhe qualquer coisa: Maria da Graça voltou-se e olhou na direção de Eduardo. Era o retrato, era a descrição de Paiva Peixoto... Foi entretanto um olhar curto e distraído.
Eduardo se arrependeu então do que fizera. Não devia interessar a Maria da Graça um rapaz inteiramente vulgar que estava tomando uma sopa no Hotel Internacional. Pensou,
com mágoa, na tolice de ter aparecido ali. Seria melhor esperar que um dia o acaso os aproximasse. Jantou constrangido, sem olhar para a mesa de Maria da Graça. Até que os quatro se levantaram, estiveram um momento conversando com outras pessoas da
sala e saíram.
Só no dia seguinte ao almoço tornou a vê-la. Passara ansioso e arrependido aquele resto de noite e toda a manhã passeara pelo parque em vão. Maria da Graça não saía. A
manhã estava chuvosa. Atrás de que janela cerrada se esconderia ela, agasalhada contra o frio, a ler?
Entretanto, o almoço não foi mais promissor. Ela o reconhecera desde a véspera, não havia dúvida. Os constantes olhares intencionais da amiga bem deixavam ver que as duas
sabiam que era Eduardo Sancho quem estava ali... Maria da Graça, porém, não mostrara a menor curiosidade. Exatamente como se Eduardo Sancho não fosse o autor dos versos que ela amava.
Durante o resto do dia não apareceu também. À medida que as horas corriam, Eduardo sentia mais fundo o seu magoado desapontamento. Não: haviam exagerado o caso... Era
impossível que aquela menina gostasse tanto do seu livro.
Ah! vinha abaixo o castelo... Ela nunca o amaria, a ele, à sua pessoa banal que escondia o poeta. Senão, outra seria a sua atitude. Outra... Qualquer que fosse, mas
outra, completamente outra...
À noite, viu-a palestrando no salão; mas Eduardo permaneceu todo o tempo no terraço. Ao recolher-se, Maria da Graça não o olhou sequer. Desapareceu, indiferente no
corredor do hotel.
Ah! viera abaixo o castelo...
No dia seguinte, muito cedo, voltou ao Rio. Uma viagem desagradável aquela. E como o Rio lhe ia parecer de novo asfixiante!
Foi procurar o dr. Filipe Furtado, timidamente.
- Meu amigo, não sei se vou fazer uma figura boba aos seus olhos... Diga: já prometeu a alguém o meu lugar na missão?
O dr. Furtado riu-se.
- Acabo de receber mais oito pedidos. Você mudou de ideia?
- Mudei...
- Então tem o seu lugar. E tome juízo... Olhe, as nomeações sairão daqui a duas semanas. Seguimos para a Inglaterra no fim do mês. Vai ver o que é um país organizado!
***
Dias depois, Carlos Andrade, muito sério, escutava de Eduardo os resultados negativos da expedição a Teresópolis. Eduardo concluiu:
- Meu querido, estou convencido de que me pregaste uma partida. Tu e outras pessoas, inclusive Deus, uma pessoa que gosta de se divertir também, às vezes.
Carlos Andrade deu-lhe uma lição de psicologia.
- Quando uma mulher se interessa por nós, mas em nossa presença toma um ar indiferente, a vitória é certa. A tua vitória é certa, ó poeta.
Eduardo Sancho, com a sua crise de desânimo agora agravada pela decepção, abanava a cabeça. O outro continuou:
- És tolo. Eu, no teu caso, fazia-me apresentar a ela, custasse o que custasse. E havia de me impor.
Eduardo sorriu. Carlos Andrade não compreendia que não se tratava de "impor-se" a Maria da Graça, nem de forçar o seu coração de vinte anos. Não compreendia que se
tratava apenas de um poeta diante da vida, na ânsia íntima da mulher que estivesse à espera de seu beijo como outrora a rainha de Sabá pelo do rei triste...
***
O caso complicava-se: não havia dúvida, estava amando Maria da Graça. Quando soube que ela já descera de Teresópolis, ficou numa alegria impaciente. À noite foi a São
Clemente. Ela morava na Rua das Palmeiras, numa casa rodeada de jardim. Passou pela primeira vez diante do seu portão. Embaixo havia um gabinete, iluminado àquela hora. Através da janela aberta apareciam as estantes cheias de livros: a biblioteca
do dr. Barreto.
Da rua, Eduardo viu o vulto de Maria da Graça, a ler... Que doçura, que paz entre aqueles livros! Impossível: Maria da Graça devia ser a sua felicidade. Ela o admirava,
decerto o amava um pouco, meio romanticamente, por informações... Simplesmente, era fechada, grave, discreta. "Dava-se com todas nós no colégio mas não era íntima de nenhuma".
Voltando, aquela noite, de sua primeira visita ao jardim da Rua das Palmeiras e da contemplação da janela iluminada atrás da qual Maria da Graça lia, absorvida, sem poder
supor que dois olhos comovidos a espiavam - Eduardo Sancho encontrou Carlos Andrade, na "Brahma", como de costume. E este, sem mais nem menos:
- Ela te ama, poeta.
Eduardo, chocado, fingiu:
- Ela quem?
- Ora! Boa pergunta! Minha irmã me contou hoje que há muito tempo sabia dessa história. Contou-me mais: Maria da Graça te conhece perfeitamente bem, porque muitas vezes
te viu em encontros de rua, sem que tu nunca o percebesses.
Eduardo Sancho sentiu uma renovada esperança:
- Dás a tua palavra, Carlos?
- Dou a minha palavra! Se queres, vai amanhã jantar conosco. Minha irmã te contará tudo. Maria da Graça olhava-te muito, sempre...
Eduardo despediu-se. E tomou um bonde: voltava a São Clemente para olhar o jardim e a casa. Era meia-noite. Pelo caminho foi procurando ver se se recordava de ter visto
Maria da Graça alguma vez. Sim, vagamente... Lembrava-se agora. Era estúpido aquele desencontro do destino. Em tantas mulheres que passam ele fizera o seu sonho morar por uns momentos! Entretanto, nunca fixara a atenção naquela, que a vida lhe
reservava talvez. Como não notara nunca nos seus olhos desconhecidos um brilho ardente: A causa testaria talvez em que ela se tornava tão alheia, tão natural ao passar por ele, que seria impossível identificar naquele vulto indiferente a amiga
secreta que amava os seus versos. Maria da Graça... Desde o primeiro momento achara um predestino qualquer nesse nome.
- Conhece Maria da Graça Barreto?
- Não.
- Não?
- Não.
- Admira-me...
O bonde ia chegar à esquina da Rua das Palmeiras. Fê-lo parar e desceu. Foi andando, no silêncio da rua deserta, respirando a sombra das árvores.
Estava adormecida a casa de Maria da Graça. A lua brilhava numa vidraça. Ficou ali olhando as janelas, o jardim... Evocou a atitude absorta em que a vira no gabinete, a
ler, horas antes. Deliciosa... Viu-se no futuro, com ela. A vida teria então aquela mesma calma de intimidade para eles, a serena doçura que dá a compreensão inteligente da vida. Poderia trabalhar, escrever os seus livros, construir a obra. Desde
logo, acabaria o romance. Seria um romance de inquietação que Eduardo chamava "a véspera da vida". E que doce nome tinha Maria da Graça para dedicar-lhe o livro! "A Maria da Graça, ofereço". E seria, assim, como se lhe oferecesse toda a inútil vida
que gastara longe dela, à sua espera ansiosa...
***
O dr. Filipe Furtado ficou admirado:
- É sério? Mas onde é que você tem a cabeça?
- Coisas, coisas...
- Olhe lá, depois não pode voltar atrás.
- Sei...
- Então desiste oura vez de ver a Europa, de ver principalmente a Inglaterra: Menino, a Inglaterra é indispensável que você veja. É um país organizado. Sim, senhor,
aquilo é que é um país organizado!
- Infelizmente não posso sair do Rio agora.
O dr. Furtado soltou uma gargalhada, compreendendo.
- Eu sei. Em casa já se falou nisso. Parece que foi a Laurinha. Sabe desta? No seu lugar eu ia primeiro à Europa e depois vinha casar.
- Não se trata de amor.
- Mau! Que história é essa?
- Nada, não sei...
- Bem. Desiste mesmo do lugar?
- Desisto.
- Sabe quantos cavalheiros querem ir como adidos? Cinquenta e sete. E eu tenho dez lugares, particularmente preenchidos já.
- É tremendo...
- Assim você me põe num grande embaraço, porque agora não sei quem escolher dentre os cinquenta e sete candidatos igualmente bem recomendados.
***
À tarde, Carlos Andrade, na "Alvear", fez a apresentação:
- Eduardo Sancho, meu amigo.
Maria da Graça tinha o ar inteiramente frio. Eduardo sentiu-se incapaz de articular uma palavra. estaria ali a estender-lhe a mão a Maria da Graça que "lia muito,
muitíssimo" e perguntava por ele ao Carlos Andrade e ao Alberto Camargo? Tão fria? Teve medo de insistir. Podia quebrar-se o encanto. Ficou apenas alguns minutos.
Ao sair, tomou um táxi:
- Ministério da Agricultura!
A noitinha caía sobre a Guanabara. Em breve diria adeus ao panorama admirável. Oh! que bom o exílio nas brumas da Inglaterra!
O dr. Furtado, quando o viu entrar, franziu as sobrancelhas:
- Menino, é ainda a brincadeira? Agora quer?
Eduardo ia explicar-se...
- Tenha paciência. As nomeações estão sendo lavradas neste momento. Você perdeu definitivamente o lugar.
Eduardo sentiu um choque. Seria um tormento horrível ficar no Rio naquelas circunstâncias!
O dr. Furtado teve pena da sua figura emagrecida, pálida e insone de enamorado.
- Está bem, menino. Adeus. Olhe, vá amanhã almoçar conosco. E apronte-se. Embarcamos daqui a oito dias.
***
Seria ela? O Massília descolava do cais. Pouco a pouco aumentava a faixa de mar entre o casco enorme e a terra. Pouco a pouco
a angústia crescia dentro de Eduardo Sancho. A multidão agitava lenços, entre exclamações. Seria ela: Era... Estava com Laura Gomes, que dizia adeus para alguém do navio, naquela direção.
- Eduardo Sancho! - gritou Laura.
Era para ele o adeus. Laura Gomes acenava para Eduardo o seu braço de magra, efusivamente. Ele tirou o chapéu. Maria da Graça estava lá, imóvel, vendo-o partir. Sentiu o
absurdo ímpeto de mandar parar o navio... levou as mãos aos olhos e chorou diante de Maria da Graça e da multidão. Chorou longo tempo assim, infantilmente. Quando olhou de novo, o cais já ficara distante. A multidão se dispersava. Ainda permaneciam
lá, afastadas do povo, a pequena mancha cor-de-rosa e a pequena mancha azul. A pequena mancha azul era Maria da Graça. Ao lado, Laura Gomes continuava acenando com o lenço, infatigável. Até que o cais desapareceu.
***
À noite o dr. Furtado aproximou-se de Eduardo Sancho no bar.
- Você não compareceu ao jantar. Enjoou?
- Não. Não saí do camarote.
- No camarote, homem? Que horror! Vamos tomar um pouco de fresco.
O luar parecia iluminar as águas para o navio. Linda noite!
Então a voz do dr. Furtado começou:
- É o único país organizado, estou convencido. O Brasil, cá entre nós, é uma borracheira. Você vai ver a Inglaterra. Menino, aquilo é que é país. Quer um exemplo? Quando
eu estive em Londres, em 1907...
Lá atrás ficara a cidade bela, a cidade anunciadora da grande civilização de amanhã, a cidade luminosa, a cidade em que a vida cantava dentro dos homens. Lá atrás ficara
Maria da Graça, ficara a felicidade...
- ... por ser a melhor corporação policial do mundo. Em Paris já não é assim. Não existe aquela impecável correção inglesa, que mostra o verdadeiro... Que é isso?
Chorando? Você chorando, menino? Ah! precisava ter sido educado na Inglaterra! De que massa são feitos estes homens?
E o chefe da Missão Brasileira de Propaganda Comercial na Europa não sabia o que fazer para consolar Eduardo Sancho.
- Olhe, isso é ridículo, menino.
Afinal, seria ou não Maria da Graça a mulher "que esperava pelo seu beijo?" Talvez não valesse a pena aprofundar o caso. A única realidade presente era o irremediável
caminho do exílio.
O dr. Furtado achou discreto oferecer um pretexto e retirar-se:
- Vou jogar um pôquer, menino. Fique aí com as estrelas e o luar. Até logo.
E Eduardo Sancho, na noite triste do mar alto, ficou só no tombadilho, com o luar e as estrelas. |