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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-M)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 139 a 144:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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O Diário de um Otimista

D. Marta insistiu:

- Leia.

- Para quê? São dele?

- Faça o favor, leia...

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"27 - Mauro Torres encontrou-se hoje comigo e teve esta frase:

- Acho-te pálido. Evidentemente, não anda bem de saúde. Cuidado, engenheiro geógrafo!

O idiota! Sinto-me forte, disposto. Palidez? Palidez não tem importância.

- Não, por força que andas doente. Aliás, nunca foste grande coisa como constituição física.

Mauro Torres tem a mania de achar-me pálido e magro sempre que me encontra. A princípio, assim que regressei do Norte, ele atribuiu isso às fadigas da viagem. Agora dá para recordar o tempo do colégio, quando eu, natureza delicada de rapazola pensativo, fugia às corrimaças estúpidas e à sopapeação raivosa dos distúrbios. Mauro Torres formou-se em Medicina, dedicou-se às moléstias do peito e agora anda a estudar-me...

Maníaco."

"8 - Eu tomava o meu chope na "Brahma" aborrecidamente, às cinco horas da tarde - um calor asfixiante -, quando vi Mauro Torres passar na Rua São José. Escondi-me. É cacete, esse velho colega. Palavra de honra, se algum dia eu adoecesse, nunca o procuraria...

Deve ser uns três anos mais idoso que eu. Terá portanto vinte e nove ou trinta. Como se explica que ele mostre já aquele começo de obesidade que ridiculariza a sua figurota de homenzinho gorducho e vermelhaço? É o chope. Mauro Torres conta que o chope o salvou de uma fraqueza pulmonar, no começo do curso, quando teve de ir dar umas voltas pela Alemanha, na Floresta Negra. Por isso, encontrando-me num bar, onde o meu copo nunca chega a ficar vazio de todo, vem logo dizendo de braços abertos:

- Bravos, engenheiro geógrafo. Bebe cerveja! Bebe mais!

E senta-se à minha mesa, toma meia dúzia de "claros" a seguir. No fim da conversa pega do meu pulso para ver se tenho febre:

- Hoje não.

Ou então:

- Uns trinta e oito e pouco..."

"12 - Apesar de beberrão, não é completamente imbecil este Mauro Torres. No colégio, tinha eu apenas quatorze anos, ele fazia discursos. Depois, ensinou-me a metrificar, o que logo esqueci. Nunca fez carreira literária, nem tentou a publicação de livro nenhum. Por agora, quando nos vemos, procura deslumbrar-me com os seus conhecimentos de Literatura Alemã. Mas não é completamente tolo. O que ele é, já disse, é beberrão. Como médico, apesar de u não o querer nem de graça, é provável que valha alguma coisa. Foi só ontem que o notei. Falou-me das últimas novidades da Ciência para a cura da tuberculose, das novas pesquisas, dos processos cirúrgicos. Vi que ele entende da sua especialidade. Está a par do movimento moderno. Pena é que beba tanto... E que, a fim de não parecer um falhado na Literatura - pobre antigo professor de metrificação! - tenha a mania de recitar poetas alemães".

"17 - Mauro Torres hoje me irritou. Eu estava jantando no "Heim" quando ele apareceu. Sentou-se perto de mim, abanou com o chapéu o rosto esbaforido e pediu cerveja, antes mesmo de encomendar a sopa. De repente, olhando-me de perto, sentenciou:

- Engenheiro geógrafo, cuidado. Essas olheiras... Deves passar uns meses numa fazenda. Estás sempre pálido. Porém, meu caro engenheiro geógrafo, é uma palidez de mau aspecto. E essas olheiras...

Depois, mordendo o pão, acrescentou com o ar mais distraído deste mundo:

- Vai amanhã ao meu consultório e leva o escarro.

Ri-lhe nas bochechas. Aquelas bochechas de beberrão..."

"21 - Como ando com um pouco de tosse devido aí a a um resfriado que apanhei, resolvi - nunca digas: desta água não beberei! - consultar o Mauro Tores. Consulta, aliás, sem a menor importância. Qualquer caixeiro de farmácia podia receitar-me um xarope. Enfim, mais por curiosidade de ver o consultório, fui até àquele segundo andar da Rua da Assembleia.. Assim que me viu entrar, Mauro Torres, enfiado num camisolão de linho, mangas arregaçadas, ocupado em bulir nuns aparelhos, acolheu-me alegremente, assim:

- Olá, engenheiro geógrafo! Trouxeste o escarro?

Tive o ímpeto de quebrar-lhe os aparelhos, partir o vidro dos armários, dar uma lição de doido àquele tipo. Decididamente, o homenzinho do nariz de tomate dera para me perseguir. Eu quis sair pela porta afora, mas as escadas me haviam fatigado e sentei-me em silêncio.

- Quando o teremos pelo interior de Minas, a tomar aquele maravilhoso leite?

- Não sejas bobo, vim apenas pedir-te a receita de um xarope.

Riu a gosto, como se eu tivesse dito uma coisa engraçadíssima. E, logo, acabando de arrumar os aparelhos, mandou-me tirar o paletó.

- Para quê?

- Não tenho que dar satisfações.

- Pois então não tiro.

- Ora! Nem se discute. E é já.

Puxou de um cigarro, esperando que eu lhe obedecesse. A sua atitude era tão irritante que eu de fato obedeci. Afinal, depois de uma encenação meio teatral, pôs-se a escutar-me o peito.

- Trinta e três! Vamos, trinta e três!

Lembrei-lhe nesse momento uma velha anedota: para que um tísico não desconfiasse do exame, o médico mandara-o contar desde o número um; mas, como estava bêbedo, adormeceu. Daí a algumas horas acordou e viu que a pobre criatura, quase a desfalecer, dizia: "Dois mil... quatrocentos... e vinte e seis... Dois mil... quatrocentos... e vinte... e sete..."

- História muito sabida, meu caro engenheiro geógrafo. Adiante. Vai dizendo trinta e três. Vamos!

Disse trinta e três; respirei fundo; fiz tudo o que ele me ordenou. Curvo, o ouvido colado ora no meu peito, ora nas minhas costas, o amigo da cerveja alemã era de um cômico delicioso... Com os dedos peludos fazia-me percussões no tórax; mandava-me cruzar os braços; depois, levantá-los. Divertia-se... Exatamente como se eu fosse, nas suas mãos científicas, um boneco articulado.

No fim tomou-me a temperatura:

- Uma febrezinha. Olha, compra um termômetro. Põe-no três vezes por dia. O teu caso me está interessando...

Essas coisas Mauro Torres diz sorrindo, como um hortelão a comunicar á gente:

- As couves, já podemos comê-las na próxima semana. Estes repolhos é que saíram meio enfezados. Vejamos como nascerão as alfaces que semeei no sábado.

É a mesma tranquilidade, a mesma..."

"1 - Depois d dois meses de ausência, encontro-me com Mauro Torres. Como este animal engorda! E vermelho sempre!

- Hei de morrer de uma congestão cerebral - explica-me.

Penso que ele há de morrer é de outra coisa... De cerveja, está visto."

"5 - Mauro Torres, agora à noite, bebeu comigo dez "duplos" na "Americana". - Achou-me bem:

- És um tuberculoso complicado... Já era tempo de estares na cama, cadavérico.

Quis jogar-lhe a cerveja à cara, mas dominei-me: ele estava bêbedo".

"24 - Exclamação do meu amigo Mauro Torres esta manhã:

- Excelente! Olhos encovados... Assim, sim. Vamos bem.

Com efeito, ando abatido. Mas não é motivo para esse idiota pensar que é a tuberculose - a tuberculose que ele espera, em mim, com a mesma curiosidade paciente de um sábio, no laboratório, aguardando o resultado de uma experiência. Vendo-me de olhos encovados, Mauro Torres, homem sem sutileza de compreensão, esfrega as mãos:

- É agora!

Mas não é. O famoso especialista, cujo real consultório é o balcão da "Brahma", ou as mesinhas ao ar livre da "Americana", há de passar pelo desapontamento de falhar o diagnóstico..."

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Estendi as folhas de papel a d. Marta. Ela chorava em silêncio, com o lenço nos olhos. Repeliu a minha mão docemente:

- Guarde esses escritos para o senhor, que era amigo dele.

- Posso publicá-los?

Limpando os olhos pisados por tantas semanas de pranto doloroso, d. Marta teve um imperceptível recuo de pudor:

- O senhor quer publicar?

- Quero.

- Talvez não valha a pena...

- Vale, sim, d. Marta... É o diário de um otimista...

Arrependi-me de falar assim, desse modo irônico, porque a pobre senhora teve uma nova crise de choro. E depois, enquanto eu olhava desesperado para todos os lados, sem saber o que dizer diante daquela angústia, d. Marta soluçou:

- Ele fazia pouco do outro, mas o outro é quem tinha razão. o senhor não acha?