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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-o)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 160 a 168:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Uma Noite de Chuva

ou

Simão, Diletante de Ambientes

Má experiência. Eu descera as escadas do Clube dos Aliados, onde perdera duzentos mil réis na roleta, e olhava, aborrecido, a chuva cair na rua deserta, negra. Dera-me assim um desejo súbito de passar um quarto de hora numa baiuca; então procurara aquele clubezinho reles da Lapa. Agora um arrependimento enraivecedor me fazia subir o sangue à cabeça, em mil projetos de reivindicação honesta daqueles duzentos mil réis.

A última vez que eu visitara minha mãe, em Iguape - porque eu sou de Iguape -, ainda ela me dissera, com um sorriso magoado:

- Não trouxe nenhum presentinho para sua mãe... Deixe estar...

E fora perder duzentos mil réis para os capadócios do Clube dos Aliados! Eis aí no que dava a minha mania de ambientes.

Táxis, na porta do clube, esperavam fregueses. Vendo-me parado, a escolher destino, com um ar de lorde perdulário (o ar com que todo pobre diabo sai de um clube), os choferes me acenavam, oferecendo as máquinas. Superior, acendi um cigarro e toquei a pé sob a chuva.

Deu-me vontade, então, de passar pela Rua Morais de Vale. Uma rua de mulheres perdidas, numa noite de chuva, é triste infinitamente. Poças de água refletem os lampiões. Trechos de cantigas saem pelas gretas das venezianas cerradas. Não se vê ninguém. Apenas vago, o vulto do guarda rondante, representante sonolento da lei.

- Ora, vamos, Simão!

Assim falei a mim mesmo, vencendo a última hesitação da virtude. Eu não ia comprometer a virtude, entretanto. Era apenas a satisfação de um capricho da sensibilidade. O ambiente, queria o ambiente.

- Boa noite!

- Boa noite.

Um conhecido. Exatamente quando menos se espera, numa noite de chuva, ao virar uma equina de rua viciosa, surge o contratempo fatal: o conhecido, o conhecido que nos vê, nos cumprimenta, faz um ar camarada e passa. Quem? Um sujeito com quem temos relações apenas de vista e cuja única função na vida parece ser essa: aparecer assim. Um sujeito que existe somente para aborrecer-nos.

- Sssssiu...

- Ó beleza!

As primeiras portas misteriosas. Principiei a sofrer. O amor... Dentro de mim começou a estranha sensação pungente. Ninguém podia adivinhar, na minha sombra, uma dor ambulante, a dor especial e saborosa de sentir o ambiente.

A rua estendeu-se, dobrada a esquina. Deserta, naquela noite. Passava de duas da manhã e poucas mulheres ainda havia disponíveis, atrás das janelas, à espera. Pela calçada, nem mesmo um marinheiro japonês. Será que muitos homens pensam às vezes, como eu, nos marinheiros japoneses que desembarcam, cheirando a suor e a óleo, e vêm por aqui, em grupos, metendo o nariz nas casas, procurando, escolhendo? Oh! que desgraça imensa a destas mulheres!

Plaf, enfiei os pés num buraco cheio de água. Bonito! É o resultado de andar distraído, a fazer reflexões piegas. Ia apanhar um resfriado. Não, não: havia um recurso: o botequim da Rua Joaquim Silva estava aberto, graças a Deus. Tomaria um cálice de conhaque. Apressei o passo para reagir contra a friagem.

- Simão!

Simão: Uma mulher chamara Simão!

- Sssssiu! Venha cá, Simão, não se faça de besta.

Não havia dúvida: tinham chamado por mim. Voltei, procurando ver de que janela partira a voz desafinada. (Nossa Senhora, como era possível que alguém me conhecesse naquela rua?)

- Ó seu coisinha, entra aqui.

Uma porta abriu-se para mim. Do escuro uma cabeça me acenava, com ar de mando. "Coisinha!" Era extraordinário.

Parei, indeciso.

- Já se esqueceu, hein? Entre aqui.

Entrei. A mulher trancou a porta atrás de mim.

- Suba, Simão.

Subi a escada meio às escuras. Parecia-me um sonho.

- Como vai d. Candoca?

D. Candoca! o nome de minha mãe às duas horas da manhã numa casa da Rua Morais e Vale! Ah! Simão, diletante de ambientes!

Ela subira atrás. No patamar, voltei-me. A luz do quarto, com a porta escancarada, incidiu sobre um rosto bexigoso de mulata: Maricota!

- Você aqui, meu Deus?

- Não, ali na esquina - escarneceu ela.

Uma comoção profunda me pungiu. Tive vontade de chorar. Maricota...

- Você está homem, hein?

... a Maricota daquele doce tempo, quando eu usava camisola...

- Todo elegante, Simão. Hum, hum!

... que dormia no meu quarto, junto à minha cama, porque eu tinha medo do invisível e da escuridão...

- Não fala nada? Está mudo?

... do tempo do meu avô, que me mandava com ela à venda do seu Hilário, para impor certo respeito aos homens...

- Bom, se você está disposto a não conversar, então vá-se embora. Perdeu a língua?

Fiz o gesto de recuar. Maricota agarrou-me pelo braço e empurrou-me para o quarto. Deu uma ordem:

- Sente aí.

Apontava a cama. A colcha branca estava amarfanhada. manchas de terra acusavam contatos de botas. No criado-mudo, uma nota de cinco mil réis atirada. Pontas de cigarro espalhavam-se pelo chão.

- Sente! Está com luxo? Bom.

Preferi sentar em cima da mala, que um pano de crochê cobria.

- Maricota, sinto-me abalado com a surpresa.

- Estou vendo.

- Que é feito de você, neste tempo todo?

- Ora, se eu fosse contar!

- Há quantos anos, sim senhora! Quantos mesmo?

- Ué, conte pelos dedos.

Contei pelos dedos, como ela aconselhava por ironia: um, dois, três, quatro... doze.

- Doze anos! Como é que você me reconheceu?

- Ora, eu criei você, Simão. Me dá um cigarro?

E concluiu com simplicidade, escolhendo um cigarro na minha carteira:

- Você passou, olhou do lado da minha porta e eu pela fresta reconheci logo. Mas fiquei pensando: será? Não podia deixar de ser? o mesmo focinho! Está'í.

Pedi a Maricota que me abrisse um pouco a janela. O quarto estava abafado. Um cheiro de roupa suja e de água-de-colônia de turco impregnava-me as narinas.

Maricota sentou-se na cama e ficou me olhando, a fumar.

- Você não envelheceu, Maricota.

- Não pouco!

- Não mesmo.

Não envelhecera. É verdade que perdera a frescura da primeira mocidade, quando, com a sua carne dura e flexível de mulatinha nova, ao passar vincava um silêncio intencional nos grupos da porta da venda. Só o que sempre a enfeara um bocado eram aquelas marcas de bexiga. Porém, não envelhecera: encorpara. Ficara madura, com adiposidades fofas de vida ociosa.

- Você casou, Maricota?

- Qual casar? Com aquele porqueira?

Ela fugira da nossa casa com um barbeiro chamado Malaquias. Malaquias tocava violão, cantava modinhas e possuía um cacho grosso na testa. Quando Malaquias fazia serenata em nossa rua, Maricota saía do quarto pé ante pé e ia para o muro do jardim. Uma vez desapareceram. Meu avô ficou três dias com uma veia querendo rebentar na testa, latejando forte. O major Rabelo, que era o delegado de Polícia, desenvolveu toda a sua atividade para descobrir os fugitivos. Porém o sargento do destacamento era primo de Malaquias e desconfiou-se de que estivessem conluiados. E nunca mais se soube de Maricota, nem de Malaquias.

- Nós pensávamos que o Malaquias tivesse casado com você...

- Um vagabundo daqueles? Deus me livre.

- Então você se arrependeu do passo...

Fez um muxoxo, com o beiço grosso.

- E há quanto tempo você anda nesta vida?

Maricota sacudiu os ombros, as pernas esticadas, os olhos fitos na ponta das chinelinhas.

Começou a fazer perguntas por minha mãe, por todos de casa. Teve tristeza quando soube que meu avô morrera.

- Coitado! De quê?

- Coração.

Deu outro muxoxo. Abanou a cabeça com filosofia:

- De uma coisa ou de outra a gente tem de ir mesmo.

Mudou o curso das ideias e perguntou de golpe:

- Você está empregado aqui no Rio?

- Estou estudando.

- O quê?

- Medicina.

- De muito estudar é que os burros morrem.

Riu-se. Houve uma pausa.

- Por que não se emprega? Há tanto médico!

- Não faz mal.

- Hum, hum! Está adiantado? Quando se forma?

- No ano que vem.

- Já?

- Já.

Depois, mudando de tom:

- D. Candoca está muito velha?

Insistia no nome de minha mãe. E eu tinha sempre a impressão, ao escutá-lo, dito por aquela boca e naquele quarto, de ver uma flor arrastada por um esgoto.

- Responda, Simão! Ficou mudo outra vez? Porqueira!

- Está moça ainda, Maricota. Está moça.

Levantei-me. No meu coração aquele cinismo, aquelas maneiras obscenas, aquela definitiva decadência doíam como uma machucadura.

- Espera mais um pouco, Simão.

- Tenho pressa.

- Quer dizer que a francesa está te esperando.

- Qual!

- Se passar da hora, leva uns tabefes. Gigolô!

- Ora! Não tenho francesa nenhuma. Vou dormir, é que é.

Eu estava numa impaciência atroz. Agarrei o chapéu. Que nojo! E que angústia!

Conte mais alguma coisa do povo lá em Iguape. Vocês ainda moram na mesma casa? Às vezes tenho saudades.

- Moramos.

As paredes estavam cheias de cartões postais e retratos, como escudos numa sala de armas. No espelho do lavatório, na fenda entre a moldura e o vidro, Maricota enfiara mais retratos, mais cartões. Aproximei-me para ver: um sargento da Brigada Policial, mulato, de bigodes agressivos; um instantâneo de piquenique, numa praia, com mulheres e homens exibindo garrafas, em triunfo; um "Boas-Festas e Feliz Ano Novo", em leras douradas, cercando um par de noivos a beijar-se; uma negra de vestido curto, de braço com uma sujeita branca, esta de cabelos cortados, muito gorda, monstruosa, como uma sapa; uma criança de colo, espantadinha, sentada sobre uma almofada, olhando a objetiva sem compreender; e outras lembranças, de amigas, de capadócios, de domingos de festa, de coisas tristemente banais.

Um pedaço de sabonete de coco jazia no mármore do lavatório, atirado. Uma abotoadura de homem ficara esquecida. As peças de louça estavam arrumadas sobre paninhos de crochê com fitas vermelhas.

- Maricota, adeus.

- 'Tá bom, adeus. Apareça pra conversar.

- Está direito.

- Eu quase nunca paro aqui. Passo uns meses no Rio e moro o resto do ano em Taubaté. Sabe, Taubaté. Tenho lá um português. Ainda não faz três semanas que cheguei e ele já me escreveu.

- Paixão é uma coisa séria, Maricota.

Meu desencanto era tão doloroso que me pus a dar conselhos fingidos, mascarando o sarcasmo com um tom de prudência:

- É, Maricota, paixão é uma coisa séria. Tome cuidado com esse português. A gente lê sempre tantos crimes nos jornais!

Caminhei para a porta. Maricota então levantou-se da cama procurou a caixa de fósforos e acendeu um novo cigarro que a envolveu de fumaça, sufocando-a, fazendo-a franzir o nariz. Estendi a mão para ela...

- Adeus...

- Adeus, Simão.

Pôs-se a rir.

- De que é que você se ri?

Sacudia-se toda, numa violenta expansão. Parecia que estava sob a obsessão de uma ideia comicíssima.

- Vá, Maricota, explique o que é isso.

Ela pode falar, afinal:

- Você se lembra daquelas nossas maluquices, de noite?

Senti-me envergonhado pela evocação.

- Você era danadinho, Simão...

Eu tinha apenas nove anos naquele tempo... Não sabia o que fazia. Despudorada, Maricota vinha reabrir agora o esquecido cofre das minhas lembranças de pequeno Stendhal iguapense. Oh! o balbuciar do instinto, as ansiedades vagas, os gestos vagos da meninice intuitiva! Todos os homens da cidade provocavam Maricota. Buliam com ela, quando passava. Era uma atmosfera ardente em torno da minha pajem. Só eu, porém, conhecia a cálida nudez de chocolate, só eu conhecia o cheiro excitante, inexplicavelmente excitante, que vinha daquele corpo. Como o escuro me fizesse medo, muitas noites eu descia da cama e pedia para dormir junto dela. Ficava acolhido, confortado, sob o peso dos braços grossos que me envolviam. Tinha a sensação confusa de que aquele enorme volume de carne quente encerrava uma coisa desconhecida para mim, exercia uma função que escapava ao meu entendimento, mas que o meu sangue agitado queria adivinhar. Maricota então apertava-me, beijava-me. No silêncio da casa adormecida, minhas pequeninas mãos apalpavam-na toda, surpresas com os recantos úmidos que encontravam no seu corpo.

- Não vá cair na escada.

- Não há perigo.

- Então boa noite, Simão. Apareça.

- Sim, Maricota.

Abriu-me a porta. Saí para o ar gelado da noite.

- Até outro dia, Maricota.

- Quando escrever para d. Candoca, dê lembranças minhas.

Ah! isto era o cúmulo! Segui tonto. Dei um esbarrão num preto que vinha pela calçada. Eu ia como que bêbedo. Dentro de mim havia mágoa, saudade, pena, revolta... A vida!

Um frio ganhava-me as pernas, endurecendo-as. Lembrei-me então de que tinha os sapatos encharcados. Bonito! Agora não escapava. Ia apanhar um resfriado! Belo negócio.

Rápido, entrei no botequim. Cheguei ao balcão e pedi um conhaque. O garção foi ao armário e tirou a garrafa: ia já me servir quando, picado por um desejo novo, suspendi a ordem. Hesitei comigo...

- Não há um reservado aqui?

- Ali no fundo, por aquela porta. Quer que o sirva lá?

Hesitei mais... Enfim, aquela noite estava mesmo perdida para a retidão e a virtude. Similia similibus curantur. O ambiente do botequim (decerto havia bêbedos no reservado) ia fazer-me bem. O meu acabrunhamento pedia álcool, álcool...

- Leve já a garrafa.

E embarafustei pela porta do fundo.