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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
De Vaney (3)

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Chamado de poeta da crônica esportiva brasileira, o jornalista Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, reuniu ampla documentação que lhe permitiu conseguir para Santos, em 1956, o título de Município Mais Esportivo do Brasil. Em 1991, a cidade criou um Centro de Memória Esportiva, batizado com seu nome. O jornal santista A Tribuna, onde trabalhou por muitos anos, publicou uma entrevista com ele, na edição de 2 de janeiro de 1982:
 
Uma conversa com De Vaney

Aos 75 anos, De Vaney é, sem dúvida, o jornalista esportivo do Brasil que mais prêmios ganhou em sua carreira. Dono do arquivo mais completo sobre o futebol brasileiro, ele confessa que ainda não sabe que destino vai dar às milhares de fichas que guardam a história do esporte no Brasil nos últimos 60 anos. Aqui, De Vaney conta a sua vida. E revela as pressões que passou a sofrer depois que escreveu o livro A Verdade Sobre Pelé.

Texto: Adelto Gonçalves * Foto: Rafael Dias Herrera

Imagem publicada com a matéria

Este aqui que se vê, com um porte magro e esguio, o andar vacilante e os olhos turvos como se contemplasse eternamente um entardecer de verão, é De Vaney, jornalista e escritor. Nasceu em Ribeirão Preto há 75 anos e já era um menino magro e comprido quando chegou ao Rio ainda no começo do século (N.E.: século XX...), em companhia da mãe. O pai, médico legista, morrera de uma infecção contraída ao fazer uma autópsia. Tinha apenas 33 anos de idade, abrira várias farmácias no interior de São Paulo, mas surpreendido pela morte tão cedo só pudera deixar dívidas para a família.

Era um outro Rio de Janeiro: pela Avenida Rio Branco, corriam bondes e os primeiros automóveis que carregavam homens elegantes com pincenês e mulheres empertigadas com seus vestidos longos e damas-de-companhia. Era um menino pobre que morava sozinho com a mãe e chamava-se Adriano Neiva da Motta e Silva, descendente de jornalistas (o pai, além de médico, tinha sido jornalista em pequenos jornais do interior de São Paulo, a mãe colaborara com as publicações da época fazendo artigos sobre música, e os quatro avós, de um modo ou de outro, tinham exercido a profissão).

"Por isso, eu tinha de ser jornalista. Era quase uma imposição familiar. Com quatro anos de idade, já rabiscava um papel, desenhando um jornal que se chamava O Careta. Dava essa folha de papel aos meus parentes para que a lessem e cobrava quatro tostões por leitura. Era um pequeno mercenário...", diz De Vaney, enquanto a memória percorre o Rio daquele tempo que terminava em Copacabana.

De Vaney tem a voz pausada, sem pressa, modulada em milhares de horas de conversa nos bares noturnos. Desde os tempos de Paris, quando se reunia com os poetas e pintores surrealistas à sombra dos cafés de Montparnasse e do Boulevard Saint Germain. Desde os tempos boêmios do Rio até as noites intermináveis com os companheiros jornalistas de Santos.

"Aos 14 anos de idade, eu já escrevia um jornal chamado O Beira-Mar que circulava na Glória. Eu e Téo Filho, um grande escritor que não teve sorte. Depois, até a Souza Cruz se interessou pelo jornalzinho. E acabou ficando com ele", diz. E acrescenta: "Mas no jornalismo mesmo iniciei aos 16 anos. Meu tio era prefeito em Niterói, Aloísio Neiva, e escrevia para o Grande Jornal, um vespertino famoso no Rio na época. Eu costumava ir buscar os artigos de meu tio e levá-los até a redação do jornal. Mas, um dia, meu tio, atrapalhado com uma rebelião de presos em São Gonçalo, não pôde escrever o artigo. Então, escrevi o artigo e assinei com o nome de meu tio. Foi um sucesso. O título era Os 18 milhões do Forte, um texto bem político, que explorava aquele episódio dos 18 do Forte de Copacabana. Eu era socialista, de tendências comunistas, sempre fui da esquerda. Meu tio, no outro dia, quando viu, ficou empolgado. E me levou até a redação. Fui contratado na hora".

Paris era uma festa - Foi alguns anos depois, em função do fervor com que defendia as idéias socialistas, que teve de passar alguns meses em Paris, gastando as poucas economias que os parentes podiam lhe enviar. Naquele tempo Paris era uma festa. Mas uma festa cara. E, quando não mais pôde ficar em Paris, decidiu voltar ao Rio. Trabalhou em grandes jornais: O Globo, O Jornal, Correio da Manhã e Diários Associados.

"No Diário de Notícias, eu ganhava 30 mil réis para escrever um artigo sobre um vulto da nossa História. Ficava até de madrugada pesquisando. Era amigo do porteiro do jornal e ficava até quase de manhã no arquivo. Escrevi mais de 40 artigos. Mas, um dia, a fonte secou. Então, o secretário do jornal me sugeriu: 'Escreva sobre futebol. veja aí o Leônidas, escreva sobre ele'. Eu não gostava de futebol. Quer dizer, gostava de ver um Fla-Flu, porque era Fluminense, fui menino de Laranjeiras. Preferia ficar em casa lendo do que sair para ver jogos. Mas fui entrevistar o Leônidas. Não consegui falar com ele, mas com um amigo dele. E voltei para o jornal e escrevi o artigo. No dia seguinte, foi um sucesso.

"Então, o secretário do jornal me chamou e exigiu uma matéria como aquela todos os dias. E me passou a pagar 40 mil réis por reportagem. Era muito dinheiro naquela época. Além disso, eu passava por dificuldades financeiras. Minha mãe tinha cinco empregos, mas um decreto do Getúlio Vargas acabou por obrigá-la a optar só por um emprego. Vivíamos em dificuldades. Então fiquei pensando: havia escrito sobre grandes homens e me pagavam apenas 30 mil réis. E agora escrevia sobre o reles futebol e ganhava muito mais. Aquilo começou a me fazer compreender os estranhos valores da vida".

Foi por essa época que De Vaney escreveu o seu primeiro livro: os 40 perfis de jogadores de futebol acabaram reunidos como Os Imortais do Futebol. Mas, apesar do êxito, De Vaney vivia em dificuldades. Por essa época, tinha contraído o vício do jogo: não saía do Casino da Urca, onde empenhava até a alma.

"Um dia, cometi a maior das vilezas. Roubei uma jóia de minha mãe para empenhá-la no cassino. Para cobrir uma dívida de jogo. Minha mãe culpou a criada. E eu não apareci em casa durante mais de um mês. Aquilo começou a me roer por dentro. Até que consegui coragem e confessei tudo. Mas não tive coragem para continuar lá. Foi então que decidi vir para Santos. Corria o ano de 38. Aqui eu já estivera em 36, quando ainda trabalhava nos Diários Associados.

"Naquele tempo, o Assis Chateaubriand estava montando o império. E tinha uma equipe permanente de jornalistas que viajavam para as capitais brasileiras com o objetivo de montar e organizar os jornais que iam passando a fazer parte da cadeia dos Diários Associados. Éramos eu, Carlos Lacerda, David Nasser e mais dois fotógrafos. Foi assim que vim parar pela primeira vez em Santos: Chateaubriand comprara o Diário Comercial, que ele quis transformar no Diário de Santos e Litoral. Mas, naquela época, o Litoral daqui não era como hoje: não havia facilidade de comunicações. Levavam-se cinco dias para se chegar a São Sebastião ou a Itanhaém. Não dava para fazer o que o Chateaubriand queria: não havia faturamento. E as distâncias eram enormes por causa da falta de estradas.

"Fiquei três meses aqui em 36. E fui embora. Mas estava escrito em algum lugar que eu voltaria a Santos. Foi então que, em 38, em meio àquele aperto financeiro e àquela crise espiritual a que o jogo me levara, resolvi participar de um concurso da Secretaria da Agricultura que oferecia emprego na revista A Defesa Vegetal. Passei em segundo lugar e esse posto significava que o meu emprego seria em Santos. Então, vim para cá. Não estava mais disposto a trabalhar em jornais. Mas aconteceu que, um dia, eu estava passando pela Rua do Comércio e o Rubens Ulhoa Cintra, o Torito, me viu passar e me chamou: fui e acabei aceitando o convite dele para trabalhar em O Diário".

De Vaney até hoje troca a noite pelo dia: agora que os olhos não mais lhe permitem ler, fica ouvindo discos clássicos até as seis da manhã. Há mais de um ano que não lê uma linha: o arquivo sobre o futebol - considerado o mais prefeito do País - está atrasado, as fichas de anotações pararam no momento em que teve de se submeter a uma delicada operação nos olhos. Mas, desde essa época, os jornais acumulam-se em seu escritório atulhado de papéis amarelecidos, à espera do momento em que a visão retorne e ele possa continuar o trabalho infatigável que o tornou consultor da FIFA e da CBF.

"A revista Placar veio aqui e me pediu um preço pelo arquivo. Não quero vendê-lo. A princípio, queria deixá-lo só para o meu filho Álvaro. Mas, agora, estou pensando em dividi-lo em três partes. E fazer uma espécie de testamento, definindo o destino de cada uma das três seções do arquivo", diz.

Um boêmio aposentado - Este homem que aqui se vê não é mais que um boêmio aposentado: tem a pele clara daqueles que sempre preferiram a noite. Tem o dom do domínio sobre a conversa, fala com segurança. E a memória, ainda firme, não o trai em nenhum momento. "Na Copa de 38, o Leônidas não pôde participar daquele jogo com a Itália. E houve quem aqui fizesse insinuações levianas sobre o jogador. Só quem esteve lá podia saber em que condições físicas ele já havia participado das partidas anteriores", diz, lembrando a época em que cobriu a Copa do Mundo na França para A Notícia, do Rio.

Em 58 anos de jornalismo, quase todos dedicados ao esporte, este homem já obteve os maiores prêmios a que um jornalista poderia aspirar: 33 prêmios no Brasil, dois na Argentina, um no Uruguai, um no Chile e um na Bélgica. Não guardou nenhum: os troféus, cartões de ouro e prata, medalhas - doou tudo para instituições de caridade. De todos, o que mais o emocionou foi o Prêmio Charles Miller dado pela Federação Paulista de Futebol em comemoração ao 60º aniversário do futebol paulista, em 1954.

"Participaram os melhores jornalistas esportivos do Brasil na época. O Thomaz Mazzoni, da Gazeta Esportiva, um grande jornalista, ficou em segundo lugar. Eu trabalhava em A Tribuna naquela época. E, quando saiu o resultado do concurso, estava em casa preparando-me para dormir. Era de madrugada. Foi quando ouvi fogos. Imaginei que fosse alguma comemoração qualquer. Mas os fogos começaram a soar cada vez mais perto de minha casa, que era lá no fundão do Marapé. Então, logo descobri: eram os meus companheiros de A Tribuna que vinham me avisar sobre o resultado do concurso. E comemorar", diz.

A outra grande emoção foi o primeiro lugar no concurso aberto pelo Congresso Brasileiro de Municípios, em colaboração com o jornal O Globo, do Rio, com o trabalho publicado em A Tribuna, Santos, Município Mais Esportivo do Brasil, em 1956.

"Naquele trabalho, provei com estatísticas que Santos era proporcionalmente o município onde mais se praticava esporte. Só que não foi bem o prêmio que me causou profunda emoção, mas sim o discurso que o Rubens Ulhoa Cintra, o Torito, fez durante um jantar em minha homenagem, dias depois, no restaurante Vasco da Gama. Naquele dia, chorei. Todo mundo que lá estava chorou", lembra, sem esquecer de acrescentar que, por sua causa, a Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo (ACEESP) decidiu interromper a realização anual do concurso Pena de Ouro. "Acabaram porque eu ganhava sempre. Agora, vão reabri-lo porque souberam que estou cego".

Pelé, um caso pessoal - Este homem foi o maior amigo que Pelé já teve no futebol. E também o seu maior inimigo. Foi a De Vaney quem Valdemar de Brito procurou para recomendar um teste na Vila Belmiro para aquele menino de 15 anos que tinha um nome estranho. "A princípio, pensei que ele se chamava Belair, por causa daquele automóvel da época. Tanto que no jornal escrevi que um jogador chamado Belair ia começar um período de testes no Santos", diz.

Mas foi esse menino de nome Pelé - ou Belair, como alguns pensavam - que começou a se destacar desde o primeiro dia de treino. "Ele deu um drible no Hélvio, o capitão do time, que ficou sentado no chão. E ainda teve a ousadia de esperar Hélvio se levantar para lhe aplicar outro drible. Quase o Hélvio deu-lhe um safanão. E, então, o técnico Lula, muito prudentemente, preferiu acabar o treino e acalmar os ânimos", lembra.

"Mas não foi só nessa vez que a permanência de Pelé na Vila Belmiro esteve por um fio. Ainda, quando era juvenil, ele perdeu um pênalti numa final com o Jabaquara e quiseram mandá-lo embora da Vila. Foi então que fui até o Modesto Roma, que era o vice-presidente na época. E ameacei: se você mandar o Pelé embora, vai se dar mal... Eu escrevia para seis jornais. O Olao Rodrigues, meu amigo, era correspondente de outros tantos jornais e agências. Nós dominávamos a imprensa aqui na Baixada. Nunca me havia prevalecido disso. Mas naquele dia decidi apelar porque o meu amigo Valdemar de Brito me tinha confiado o garoto", diz.

"Mas aquele menino tão dócil, tão bom, começou a mudar. Foi campeão do mundo aos 17 anos de idade. Tornou-se o jogador mais famoso do mundo. Tudo isso foi mudando a sua personalidade. Mas eu só comecei a ficar preocupado quando começaram a surgir os exageros, as fantasias sobre Pelé. Além disso, ele se tornou um mercenário, um desertor. Foi isso que me levou a escrever o livro A Verdade Sobre Pelé, a história de um desertor. Na verdade, ele mentiu para todo mundo, quando anunciou que iria abandonar o futebol definitivamente. E que por isso não iria à Copa de 74.

"Mas eu sabia que ele estava de namoro desde 1973 com o New York Generals (que viria a ser hoje o New York Cosmos). Tudo foi tramado naquele ano, nas Antilhas, quando o Santos foi jogar lá. O Menotti, esse que é técnico da seleção argentina, jogava no New York Generals e tomou parte nas conversações. Ele tinha amizade com o Pelé desde quando jogou no Santos. Eu sabia disso e, mesmo assim, fui procurar o Pelé. Tanta era a nossa amizade que ele me chamava de 'pai branco' e eu o tratava de 'filho preto'. E ele me garantiu que não iria para a Copa porque abandonaria antes o futebol. Acreditei.

"Mas ele acabou traindo a Pátria, não quis defender o Brasil na Copa de 74. E mentiu a todo mundo porque voltou a jogar futebol nos Estados Unidos. Fiquei revoltado com tudo isso e comecei a denunciar a série de mentiras que contribuíam para a formação do mito Pelé. Nunca neguei Pelé como jogador de futebol, porque seria o mesmo que querer negar o sol ou a lua. Só contestei as mentiras, as fantasias, as deturpações que se faziam em nome do mito Pelé. Isso tudo está naquele livro".

O livro e as pressões - De Vaney garante que não quis destruir Pelé. Só quis preservar a verdade. E conta: "Um dia, recebi telefonemas ameaçadores para que acabasse com aquela 'campanha" que estava movendo contra Pelé. Então irritei-me e decidi escrever um livro sobre o assunto. Quando se tornou público que eu estava escrevendo esse livro, vários amigos comuns me procuraram para pedir que desistisse da idéia. Eram amigos fraternais, meus e dele.

"Eu estava quase disposto a mudar de idéia. Mas, certa vez, recebi três fotos de meu neto e a ameaça de que poderiam seqüestrá-lo. Então, decidi: o livro não ia sair, mas agora vai. E saiu. Recebi então novos insultos e ameaças por telefone e pessoais. Até que a empresa que imprimiu o livro e o distribuiu começou a sofrer ameaças de uma empresa de publicidade poderosíssima interessada em manter a imagem de Pelé. E a edição acabou recolhida. Só restaram alguns exemplares por aí. Tudo que está no livro nunca sofreu contestação. É um livro que não pode sofrer contestações. Pelé foi um desertor".

Este homem que aqui se vê, com um porte magro e esguio, sempre fala com convicção. A conversa com De Vaney pode durar até que o sol ilumine as ruas como em outros tempos, quando ele gostava de ficar pelos bares com os amigos. Conversando, sempre conversando. Como antigamente. Mas estes são tempos apressados. São outros tempos.

(*) Esta matéria foi escrita a partir de uma conversa entre De Vaney e os repórteres Adelto Gonçalves e Sérgio Salles Galvão em fita gravada, que, agora, faz parte do arquivo fonográfico ("Memória da Cidade") mantido pela Delegacia Regional de Santos do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.

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