Página 12 do jornal O Cruzador
número 5 - Dezembro de 1954
Imagem cedida a Novo Milênio pelo
historiador Waldir Rueda Martins
No princípio foi assim
De Vaney, o estilista da crônica, escreve especialmente para O Cruzador
Carlos Roma telefonou-me pedindo que eu escrevesse para O
Cruzador. Respondi ao Carlos que era prazer para mim. E não menti. É prazer, e prazer grande, ver meu nome surgindo ao lado desse punhado de
idealistas. E quantas recordações isso me traz!... Lembro-me, por exemplo, do meu O Progresso, jornalzinho feito à mão, e que foi, durante
muito tempo, o encanto de minha meninice, e pelo qual me bati com o melhor de meus sonhos, porque outra coisa não possuía eu senão enormes sonhos...
O Progresso nasceu numa sala de aulas do Colégio Diocesano S. José, no Rio, onde estudei.
Redatores, éramos cinco. O mais velho tinha 15 anos. O mais novo, eu, 13.
- "Que tal se fizéssemos um jornal assim como o Aluno?, perguntei, certo dia.
O Aluno era o órgão oficial do colégio, mas só colaboravam os da seção dos maiores, e vê lá
se "maior" ia dar confiança a "médios"...
Ernesto, Armando, Humberto e Ricardo, todos concordaram comigo para que fizéssemos O Progresso.
E fizemo-lo. Fizemo-lo à unha, letra por letra, número por número. Traçamos os planos. Cada um de
nós escreveria o que quisesse e, depois, far-se-ia a compressa. Nós chamávamos de compressa o ato de juntar em seis páginas tudo
quanto houvéssemos julgado digno de ser publicado. E quando essas seis páginas estivessem cheias, cada um de nós copiaria tudo. Assim, teríamos 6
números (um original e cinco cópias).
O original ficava para os mais íntimos, e os outros cinco, mais caprichados, eram alugados a um
tostão por 10 minutos.
Que luta, santo Deus, para controlar os 10 minutos e receber o tostão!... Às vezes o leitor
teimava em não devolver. Aí, o jeito mesmo era agir com energia, e estalavam conflitos de tal monta, de tal ordem, que o irmão-reitor andou
ameaçando de apreender a edição do O Progresso...
***
Saía de 15 em 15 dias. E cada vez mais íamos aperfeiçoando O Progresso. Para lhe dar graça
e realce, formamos a resolução de copiar com tintas de várias cores. E os números apareciam redigidos em vermelho, rosa, roxo, amarelo, preto,
azul... e ainda me lembro da raiva que fiquei ao ouvir um leitor indagar:
- "Escuta aqui: - isso é jornal, ou é anúncio de tinturaria?"
Mas a verdade é que O Progresso foi vivendo.
Quem morreu foi um de nós. O Ricardo. Apendicite. Coisa fulminante. Dores às 11 da noite. Morte de
madrugada. O jornal circulou, então, tarjado de negro. O retrato de Ricardo, em dois originais e três horrendas cópias, aparecia ao alto da 1ª
página, abrindo uma notícia que começava com esta calamidade:
"Vitimado por uma operação cirúrgica, faleceu o nosso bom colega Ricardo Alvarez Shummberg..."
E quem escreveu essa barbaridade foi aqui o seu amigo.
***
Ficamos sendo quatro. Redobramos a atividade. O Progresso crescia. Já tínhamos anúncio:
CALDO DE CANA? O MELHOR É O DO ZÉ LÚCIO! bEM EM FRENTE À SAÍDA DO COLÉGIO".
O pagamento do anúncio: - caldo de cana de graça.
E tínhamos um outro:
PÃO FRESCO A TODA A HORA? PADARIA MAIA!
Pagamento: - doces aos redatores...
E íamos vivendo. E O Progresso, também...
***
Mas passamos a sonhar mais alto. Deliberamos imprimir O Progresso. Consultamos as
tipografias. Só faziam, no mínimo, 250 números.
- "E quanto custa?"
- "Cada página a 15 mil réis. São seis páginas, não é? Então custa 90 mil réis".
***
90 mil réis. Que fortuna! Dinheiro que não acabava mais! E onde arranjar o capital?
O homem do caldo de cana disse que pagaria 20 mil réis pelo anúncio. "Seu" Maia, da padaria,
concordou em pagar 30. Eram 50. E os 40 que faltavam? Bem. Os 40 sairiam da venda avulsa do jornal. E quanto cobraríamos pelo jornal, agora que ele
ia sair impresso? 200 réis estaria bem? Reunimo-nos. Estava bem. 250 números a 200 réis, igual a 50 mil réis. Pronto! Era o que bastava. Bastava e
até sobrava.
***
E mandamos imprimir.
Ainda me lembro da imensa emoção que me invadiu, ao ter o jornal, já impresso, em minhas mãos. Eu
não sabia o que fazer. Não sabia se chorava, se ria, se gritava, se saía correndo, se ficava... Por fim, compus no rosto uma fisionomia impassível,
um rosto de camarada acostumado a imprimir jornais, e comentei, dirigindo-me ao dono da tipografia:
- "É... Tá bonzinho..."
- "E o dinheiro?"
- "Bem... o dinheiro só depois de receber os anúncios e de vender o jornal.
- "Ah isso é que não! O jornal só sai daqui à vista dos 90 mil réis. Nem menos um real!..."
***
Foi um golpe tremendo! Não sei se tive outro assim, e minha vida. Fiquei a olhar para o homem, um
cidadão alto, de bigodes fartos, um tempo enorme. Sem forças para dizer nada. O homem, dando socos no balcão, continuava a berrar:
- "Nem menos um real! Nem menos um real!"
Fui-me. Fui-me por uma rua onde não devia ir, e custei, bem me recordo ainda, a encontrar o rumo.
Tonto. Atarantado. Perguntando a mim mesmo por que aquele homem não tinha alma, não tinha coração, não tinha um ideal, não tinha nada? Então ele não
via, ele não sentia que era a cristalização de um sonho o que ele iria esfrangalhar?
Reuni os rapazes. Contei-lhes tudo. Vi-os chorando. Mas as lágrimas duraram pouco. Combinamos
enfrentar a situação tal qual ela se estava apresentando. Mas ninguém, nenhum de nós tinha dinheiro. Éramos todos meninos pobres.
- "E você viu o jornal já impresso?"
Meu rosto se iluminou:
- "Vi. Está uma maravilha!"
Aí, então, o choro rebentou de vez...
***
Fomos ao seu Maia. Seu Maia há de estar, se Deus quiser, sentado lá no céu, tão bom
ele foi. Pagou adiantado os 30 mil réis do anúncio. Fomos ao homem do caldo de cana. Também há de estar em bom lugar. Pagou os 20 mil réis. Tínhamos
50 mil réis. Faltavam 40. Fomos ao Georgino, zelador do colégio, e colaborador. Emprestou 15. Restavam 25.
Já era hora de jantar. Marcamos encontro para depois, no portão da "Chácara das mangueiras". Cada
um levaria o que pudesse, para arranjar dinheiro. Eu levei a minha bola e um álbum de selos. Ernesto trouxe um corta-papel, que ele afirmava ser de
pata, mas que, de tão leve, mais parecia ser de lata... Armando apareceu sobraçando uma cesta. Eram carambolas, pitangas, abios, frutas de conde, e
que sei lá, tudo arranjado ali pelos quintais da vizinhança... E já estávamos combinando a maneira de vender aquelas mercadorias pelo melhor preço,
quando chegou o Humberto. Vinha a passos moles, cabeça baixa, olhos úmidos.
Sentou-se, silencioso, à beira da calçada.
- "Trago aqui os 25 mil réis", disse ele com voz sumida.
- "E como foi que você arranjou, Ernesto?", indagamos, espantados.
***
A resposta custou. A voz do Ernesto não ajudava.
Mas, depois, tomou fôlego, e disse, de um jato:
- "Vendi o Jaburu!"
Jaburu era um cachorro policial, preto, de pelo de veludo, que adorava o Ernesto e a quem o
Ernesto queria mais do que a ele próprio.
***
O Progresso saiu.
Não vendemos nem 50 números. Deu prejuízo. Ninguém soube do prejuízo. Só nós quatro, à beira da
Chácara das Mangueiras, é que comentávamos, tristonhos, o sacrifício do Jaburu, daquele Jaburu que era um pedaço enorme do coração do Humberto...
***
Mas o sacrifício do Jaburu não foi inútil. O Progresso tornou-se, mais tarde, após novas e
cruentas lutas, o órgão oficial do colégio. E lá está, na parede do salão de honra, o primeiro número do O Progresso, numa moldura dourada
que eu, sempre que a via, tinha a impressão de ter frente aos olhos o prêmio melhor que se poderia ter dado a quem tanto batalhou por conquistá-lo.
E os quatro minúsculos redatores de O Progresso são todos eles, nos dias que correm, homens
de imprensa, vivendo da imprensa e para a imprensa, com o mesmo ideal daqueles tempos em que o jornal, quando saía à rua, era o sacrifício que se
transformava em vitória.
***
Meus amigos de O Cruzador: - avante!
De Vaney, em foto publicada com a matéria |