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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 416)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de maio de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Uma lágrima

Lydia Federici

Lembro-me bem dele. A Santa Casa, no fim do ano passado, não mais dispunha de meios para continuar mantendo todos os seus serviços. Algo teria de ser paralisado. A enfermaria dos velhinhos? Impossível. Para onde mandá-los? O Ambulatório? Quem atenderia, então, à população da Baixada?

A situação era de angústia. Insustentável. Tornava-se necessário, mais que alertar a opinião pública, fazer chegar aos responsáveis, ao governo federal, do Estado, municipal, o pedido urgente de socorro. Reforçado, endossado por alguém que, em nome de Santos, em nome de toda a gente do litoral, pudesse fazer sentir a urgência da reclamação. Foi, então, realizada uma reunião com a Sociedade Amigos da Cidade. Na esperança de que ela, aglomerando vozes de peso, ciente da situação, pudesse fazer algo.

Foi então que o vi. Quando ele entrou no grande salão. Nem se sabia, com certeza, se ele poderia comparecer. Compareceu. Mais pequenino e magro que nunca. Um terno escuro acentuava-lhe a magreza. Para disfarçar a seriedade da roupa escura, uma gravata borboleta, muito airosa, rindo, toda ela esperança e bomhumor, dançava-lhe no pescoço comprido. E fino.

Ai! Como estava abatido o Provedor da Santa Casa. Magro, cansado, triste e doente, diziam os amigos íntimos. No entanto, ali estava ele. Para falar em nome da Santa Casa. Para pedir por milhares de necessitados. Que não podiam encontrar fechada aquela porta de esperança.

A voz estava meio rouca. Grossa. Procurava firmar-se. E o conseguia. O cérebro atormentado aumentava-lhe o peso da cabeça. Ela, às vezes, vergava sobre o papel. Que os olhos, com pena sofreada, liam. E, comovedor, era ver o pescoço, onde dançava a gravatinha borboleta, voltar a erguê-la. Com decisão. No movimento orgulhoso e consciente de quem não se entrega. Não enquanto tiver um mínimo de força para continuar lutando.

E era o que ele fazia. Lutava. A sua e a grande luta da Santa Casa. O que essa luta lhe custva transparecia no tremor das mãos. Descarnadas. A segurar, apertado, um envelope que contava a história da Casa da Misericórdia. O seu apelo derradeiro em favor de milhares de doentes. De doentes que não podiam ser abandonados.

Foi assim que o vi. Pela última vez. Triste. Cansado. Doente. Mas ainda lutando a sua grande luta. A luta pela continuação de todos os serviços da Santa Casa da Misericórdia. A luta pelo bem da cidade.

***

Santos é uma cidade grande. De população numerosa. A cada dia aumenta, lógica mas tristemente, a lista dos que daqui, para sempre, se vão. Todos eles, dependendo de sua vida, recebem a última homenagem. De um adeus dorido da família. De poucos ou de muitos amigos. De companheiros de trabalho. A cidade, só numa parcela reduzida, reza um “Requiem” pelo filho que, pela última vez, olhos já fechados, passará por suas ruas.

Desde ontem, entretanto, pelo litoral afora, em cada bairro da cidade, do morro humilde à praia rica e bonita, Santos chora uma lágrima pelo homem que a amou. A serviu. E por ela lutou. Até o seu último suspiro.

Adeus, Luiz La Scala. Adeus e obrigada pelo exemplo de amor! De lealdade. De dedicação. À gente e às coisas de Santos.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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