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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 415)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 19 de maio de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Miséria ou fartura?

Lydia Federici

Todo mundo se queixa. Da dureza da vida. Chefes de família desesperam-se diante dos pedidos de aumento de verba. Para as despesas caseiras. Donas de casa vão às feiras. Aos barateiros do bairro. Está difícil a vida. Chora-se miséria. Há espantos. Dúvidas. Pessimismo. Desesperança. Até que ponto aguentaremos? Ninguém sabe. Mas a verdade é que a história ainda está muito longe do fim. O Osvaldo foi quem me disse.

***

Osvaldo é um feirante. De banca muito movimentada. A todo freguês, dá, de graça, um pouco de conversa. Isso agrada. E ajuda seu negócio. Sabem como é, não? Questão de saber trabalhar.De poder agradar. Com simpatia.

Pois, no fim de uma feira, lá na Marguês de Herval, como os caminhões bloqueassem a passagem, carregando mercadorias e barracas, uma turma, bem-humorada, resolveu matar o tempo de espera.

Havia uma traseira de caminhão. Livre. Mostrando uma balança desimpedida.

“Ó ‘Portuga’. Puxa o pesante aqui pra beira. Nivela bem a bicha”.

“Pra que?”

“Prá pesar o que anda aí pelo chão. Dando sopa”.

“Mas pesar prá que?”

“Pra saber o peso da miséria que não existe”.

A balança foi puxada para a beira do caminhão. Como o carro estivesse inclinado, calçaram os pés do instrumento. Até a bolinha do nível imobilizar-se, exata, conscientemente, entre os dois riscos vermelhos. Examinada a seriedade da balança, Osvaldo pediu aos companheiros que juntassem, naquele pedaço de feira, as batatas e as cebolas que tinham ficado pelo chão. Não vasculharam toda a rua. Apenas um pequeno trecho. Onde se aglomeravam as barracas dos batateiros.

“Batata esmagada também vai?” Não. Só as boas. As podres também não deviam ser recolhidas. Só as aproveitáveis.

Quando os feirantes terminaram de juntar as batatas abandonadas, colocando-as sobre o prato da balança, um silêncio, muito espanto, pulou da pirâmide parda para o ponteiro. Ele avançara, ficara dançando, imobilizara-se num risco. Marcando exatamente cinco quilos e oitocentas gramas.

E, com as cebolas, embora de forma mais modesta, o mesmo aconteceu. Havia dois quilos, oitocentas e cinquenta gramas de cebolas. Esquecidas pela rua. Tombadas de carrinhos. De sacolas. Das próprias bancas. Cebolas de setenta o quilo. Batatas de oitenta e cem cruzeiros. Que ninguém quisera aproveitar. Que todos, apesar das reclamações contra a alta, não fizeram mais que desprezar.

Diante dessa fartura de desperdício, que pensar da miséria que choramos?

Osvaldo tem razão. Nossa miséria não é miséria. Felizmente. Enquanto desprezarmos uma batata, não podemos nos queixar.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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