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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 414)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 18 de maio de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Solzinho de maio

Lydia Federici

Frio? Ainda não. Pelo menos a temperatura não o acusa. Termômetro ainda não baixou. Não muito, pelo menos. O que dá impressão de frio é a umidade. Umidade que machuca os ossos. Enrela o sangue nas veias. Faz os corpos se encolherem. Contra essa umidade não há remédio. Atravessa roupa. Invade salas fechadas. É respirada com o ar.

É esse frio, úmido, que ele sente. Idoso, seco, não tem carne que o proteja. Enche-se, da cabeça aos pés, com roupas quentes. E continua a sentir frio. Está diante da janela grande. Os vidros fechados. Olhando para o céu encoberto. Levantar-se-á aquela nuvem? Passará, pela nesga, um pouco de sol?

É sol que ele quer. Só o sol o aquecerá. Se o sol vier, ele fará o que faz sempre. Irá até o jardim da praia. Um velho chapéu de feltro defendendo-lhe a cabeça. Que sol na cabeça, mesmo coado pelas folhas das árvores, embora sol de quase inverno, lhe provoca a sinusite. E a sinusite o torna infeliz. Mal-humorando-o pelo resto do dia.

Desde que levantou, tomado o café, está diante da janela. De terno completo. Inclusive gravata. Meio encoberta pelo pulôver. Aonde pretende ir nessa elegância? A lado nenhum. A não ser que apareça o sol. Quando, então, irá até o jardim da praia. Ele sempre se arrumou bem. Desde manhã cedo. Porque, no seu tempo, era assim. E porque, durante trinta anos, saindo para o escritório, tinha que usar um terno completo. Não seria por estar aposentado que se esqueceria de como um cavalheiro deve apresentar-se.

“Mas, papai, ninguém vai à praia de terno. Por que o senhor não usa, pelo menos, a camisa esporte que lhe dei?”

Ele desconversa. Na idade dele, vivendo como viveu, nunca poderia deixar de vestir-se como aprendeu que um senhor se veste. De camisa, gravata e paletó. Desde que desce para tomar o café. Quando muito, em casa, no verão, a família o veria em mangas de amisa. É claro que de gravata. E com o paletó leve sempre à mão. Para o caso de aparecer alguém.

Miúdo, o paletó apertando-lhe a curvez das costas, sobrando-lhe no peito magro, ele, pequenino, levanta a cabeça para observar o céu. Ah! Se o sol viesse. Iria à praia. Sentar-se-ia no banco predileto. Estenderia as pernas magras para que o calor do sol direto lhe desentorpecesse o gelo dos pés. Só o sol lhe daria um pouco de calor. Meia de lã não aquece. Pulôver grosso não lhe esquenta o peito. O frio atravessa casimira. Flanela, lã. A pele fina. Os pobres músculos sem vior. Os ossos tão doloridos. A umidade, pelo nariz, enregela-lhe o sangue de todo o corpo. Sangue que corre lento. Sem vigor. Sem calor.

Através dos vidros da grande janela, ele namora o céu. Com as mãos cruzadas atrás das costas, ele espera que as nuvens se afastem. Que o sol apareça.

Deus! Pedir coisa tão simples ele nunca o faria. Mas olhe para ele. Mande-lhe um pouco de sol.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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