GENTE E COISAS DA CIDADE
Solzinho de maio
Lydia Federici
Frio? Ainda não. Pelo menos a temperatura não o acusa. Termômetro ainda não baixou. Não muito, pelo menos. O que dá impressão de frio é a umidade. Umidade que machuca os ossos. Enrela o sangue nas veias. Faz os corpos se encolherem. Contra essa umidade não há remédio. Atravessa roupa. Invade salas fechadas. É respirada com o ar.
É esse frio, úmido, que ele sente. Idoso, seco, não tem carne que o proteja. Enche-se, da cabeça aos pés, com roupas quentes. E continua a sentir frio. Está diante da janela grande. Os vidros fechados. Olhando para o céu encoberto. Levantar-se-á aquela nuvem? Passará, pela nesga, um pouco de sol?
É sol que ele quer. Só o sol o aquecerá. Se o sol vier, ele fará o que faz sempre. Irá até o jardim da praia. Um velho chapéu de feltro defendendo-lhe a cabeça. Que sol na cabeça, mesmo coado pelas folhas das árvores, embora sol de quase inverno, lhe provoca a sinusite. E a sinusite o torna infeliz. Mal-humorando-o pelo resto do dia.
Desde que levantou, tomado o café, está diante da janela. De terno completo. Inclusive gravata. Meio encoberta pelo pulôver. Aonde pretende ir nessa elegância? A lado nenhum. A não ser que apareça o sol. Quando, então, irá até o jardim da praia. Ele sempre se arrumou bem. Desde manhã cedo. Porque, no seu tempo, era assim. E porque, durante trinta anos, saindo para o escritório, tinha que usar um terno completo. Não seria por estar aposentado que se esqueceria de como um cavalheiro deve apresentar-se.
“Mas, papai, ninguém vai à praia de terno. Por que o senhor não usa, pelo menos, a camisa esporte que lhe dei?”
Ele desconversa. Na idade dele, vivendo como viveu, nunca poderia deixar de vestir-se como aprendeu que um senhor se veste. De camisa, gravata e paletó. Desde que desce para tomar o café. Quando muito, em casa, no verão, a família o veria em mangas de amisa. É claro que de gravata. E com o paletó leve sempre à mão. Para o caso de aparecer alguém.
Miúdo, o paletó apertando-lhe a curvez das costas, sobrando-lhe no peito magro, ele, pequenino, levanta a cabeça para observar o céu. Ah! Se o sol viesse. Iria à praia. Sentar-se-ia no banco predileto. Estenderia as pernas magras para que o calor do sol direto lhe desentorpecesse o gelo dos pés. Só o sol lhe daria um pouco de calor. Meia de lã não aquece. Pulôver grosso não lhe esquenta o peito. O frio atravessa casimira. Flanela, lã. A pele fina. Os pobres músculos sem vior. Os ossos tão doloridos. A umidade, pelo nariz, enregela-lhe o sangue de todo o corpo. Sangue que corre lento. Sem vigor. Sem calor.
Através dos vidros da grande janela, ele namora o céu. Com as mãos cruzadas atrás das costas, ele espera que as nuvens se afastem. Que o sol apareça.
Deus! Pedir coisa tão simples ele nunca o faria. Mas olhe para ele. Mande-lhe um pouco de sol.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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