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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 402)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de maio de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Foi ele ou a Maria?

Lydia Federici

Ele acabou Ele acabou de construir um longo corredor de três andares. Numa velha rua da Vila Matias. É, atualmente, o seu maior orgulho. Ostenta-o nas conversas diárias. Frente a patrícios murchos. Meio invejosos. Nos dias da semana, como o tempo dos outros é escasso, a conversa é rápida. Mas aos domingos, haja fôlego para aguentar-lhe a louvação. Fala, à beça, do seu prédio de trinta apartamentos. Todos já alugados. Embora ainda sem o “habite-se”. É um dinheirão a entrar-lhe todo o mês. Que fará com ele? Visitará a terra? Qual! Demolirá a loja da João Pessoa. Escritórios, no centro, estão sendo muito procurados.

É o que vai fazer a seguir. E também transformar em apartamentos as casas do Marapé. Os chalés do Macuco. Claro. Tinha imóveis em todos os lados. Tino comercial nunca lhe faltara. E olhe que começara do nada. Viera como imigrante. Ele mais a Maria. Dois anos depois, já tinha um terrenito no Macuco. Comprado e pago com o suor de seu rosto. Com os calos de suas mãos. No terreno, fizera três chalés. Com material usado. Cinco anos de trabalho, de economia, já lhe tinham comprado quatro terrenos. Onze chalés. Ninguém lhe dera nada. Tudo trabalho seu. Só seu. De mais ninguém.

E assim trabalhando, poupando, aplicando com inteligência, chegara a ter o que tinha por aí. Por todo lado da cidade. Em São Vicente. Lá no Itapema. Tudo graças ao seu trabalho. Ao seu tino. Ninguém o ajudara não. Ele só é que fizera a sua fortuna. Trabalhando sem descanso. Até nos domingos.
E a Maria?

Estava boa. Em casa. Lá na cozinha, com certeza. Cansada e silenciosa como sempre. Era de poucas falas. Só se sentia bem entre as panelas. Não tinha muita cabeça, a pobre. Não tinha lumes. Nem estudos. Mas era boa companheira.

Não. A pergunta era outra. Tinha outra direção. Indagava se, no amealhar a fortuna, a Maria também não cooperara. A Maria? Ó homem! Já não lhe dissera que a Maria eera criatura de poucos lumes? A fortuna fora ele que a fizera. Com seu trabalho sem fim. Com, modéstia à parte, a cabeça que Deus lhe botara sobre os ombros. Os ombros dele. A Maria, nisso, era nada. Mal fornecia, no começo, algumas poucas marmitas a companheiros seus.

Veja, amigo, como são as coisas. Isso é o que ele diz. A quem quiser ouvi-lo. Mas a história não é exatamente assim. É claro que ele trabalhou. É certo que ele soube aplicar as pequenas, médias e grandes economias. Mas pergunte a amigos e conhecidos do casal quem é que, de fato, se matou no trabalho e na poupança. Se foi ele, com seu empreguinho na City. Ou se foi a Maria. Amanhecendo no tanque.

Aguentando fogão o dia inteiro. Bordando e tricotando noite a dentro. Pergunte se alguém, um dia, encontrou a Maria conversando à toa. Pergunte quem concorreu, sempre, com mais notas, ganhas e poupadas, para o pé de meia.

Cabeça e sorte ele teve. Mas foram milhares de lençóis, de marmitas, de toalhas bordadas, de tricôs, os alicerces dos trinta apartamentos e de tudo o mais. Vá ser ingrato noutra terra. Onde ninguém conhece a Maria. Aqui não!


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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