GENTE E COISAS DA CIDADE
De olhos baixos
Lydia Federici
Proponho-lhe hoje, amigo, uma brincadeira. Andar de cabeça pendida para o chão. Mas só por hoje. Excepcionalmente. Que cabeça curva, tombada, desloca a espinha. Dá ar de desânimo. É assim, anti-saudável. Antiestético. Profundamente deselegante.
Mas pendurar a cabeça para que? Para, à noite, não encontrar posição no travesseiro? Perdão. Não me havia ocorrido esse contratempo. Não curve a cabeça. Baixe os olhos apenas. Esse até que é um bom exercício. Recomendado pelos especialistas, sim senhor.
Mas baixar os olhos para que? Pois, para observar o estado em que se encontram os passeios da cidade. Atravancados por ambulantes? Esburacados? Mal conservados? Com ladrilhos soltos? Falta de ladrilhos? Não. Nada disso. Apenas para ver a limpeza dessas pequeninas faixas particulares de uso público.
A gente vive a andar por aí. Habitua-se com a paisagem. Acaba por não reparar. Só quando alguém, de modo especial, nos chama a atenção, é que descobrimos o que, diariamente, estamos a pisar. E, por Deus, é sujeira grossa.
Foi uma senhora argentina, escolhendo lugar onde pousar os pés, que me revelou o descuido e a sujeira de nossas calçadas. Observem vocês também, amigos. Não há necessidade de modificar o trajeto habitual. Nem de procurar outro bairro. Todos os passeios que marginam as ruas e avenidas servem para o estudo. Principalmente aqueles que estão defronte a bares, armazéns e confeitarias.
No Gonzaga, por exemplo, em plena Praça Independência, você encontrará, no passeio, todas as especialidades servidas pela confeitaria elegante. São manchas gordurosas. Não da véspera. Mas de sorvetes que o sol de trinta dias secou. Que a chuva de quatro dias não conseguiu lavar. Há cascas de tomate. Que enfeitaram pizzas servidas durante, no mínimo, estes quatro últimos fins de semana. O chantili de alguns doces não existe mais. Algum vira-lata com ele se deliciou. Mas a mancha engordurada, seca já, ali perdura. E perdurará.
Nos passeios fronteiriços aos bares da cidade, o chão está que é gordura só. Gordura de pastéis e de empadinhas. Se o sol não secasse, se ssapatos não espalhassem, aquele engorduramento, recolhido, encheria uma lata de quilo. Espumas de cerveja também colorem os passeios. São manchas que escorrem até a sarjeta. Caprichosas nas figuras que armam.
Diante de um bar do Boqueirão, há três meses brilha, escuro, o caldo de uma feijoada. E molho de bifes acebolados.
Cascas de ovo, tampinhas de refrigerantes, rodelas de limão, palitos, são varridos, diariamente, por felicidade. Mas o resto da sujeira, por falta de umas gotas de detergente, continua ali. Reparem, amigos.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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