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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 394)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de abril de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Não é para desesperar?

Lydia Federici

Ivone não estava zangada. Apenas muito cansada. Um ar de desânimo nos ombros tombados. Puxava o carrinho da feira, meio vazio, bem devagar.

“Gripe chegando? Ou saindo?”

Sacudia a cabeça molemente. Nem uma, nem outra coisa. Que era então toda aquela tristura?

“Nem sei. Vinha pensando. Pensando no que a gente faz”. Deixou o carrinho de pé. Ficou a coçar a palma da mão. “Você, alguma vez, pensou na trabalheira que se tem para fazer um simples almoço? Olhe. Hoje, por exemplo. Já fui até a padaria. Suplicar por um pouco de farinha. Consegui um punhado de promessa. Você faz bife à milanesa sem farinha? Só com promessa? Pois vou experimentar. Pra ver com que gosto fica”. Ivone sorriu. Imaginando o tempero.

“Depois da padaria, passei pelo açougue. O alcatre estava no primeiro corte. Fiquei esperando que alguém levasse aquela ponta. Fiquei vinte minutos à espera. Fui pra casa. Tirar todo mundo da cama. Agora estou na feira. Correndo pra baixo. Pra cima. À procura das verduras mais frescas. Das melhores frutas. Você descobriu a banca que tem o arroz menos velho? Não? Então tenho que procurá-la. Pois é isso. Depois vou até o apartamento. E levo o resto da manhã a preparar o almoço. Um almoço que me leva seis horas de correrias e de dozinha. E que, em quinze minutos, aquelas três bocas esfomeadas liquidam. Sem sequer pensar em dizer que a carne está gostosa. Quanto mais imaginar a trabalheira que aqueles quatro pratos me custaram. Não é pra desesperar? Não é de dar vontade de sumir?”

É. É.

Ivone tem razão. Como qualquer mulher que cozinha também a tem. Acontece apneas que, a ir pelo mesmo raciocínio,, qualqur homem pode fazer a mesma queixa. Num par de sapatos, comprados em meia hora, usados não mais que quatro vezes, sua galante filha lhe gasta o salário de uma semana de trabalho. E há alguém, então, que deveria viver a queixar-se. Chamem-lhe Deus os crentes. Ou Natureza os ateus: na primeira hipótese, quem se detém a pensar na maravilha que é a vida? O universo? Que céu de carinho e sabedoria não custou isso tudo ao Criador? Quem se põe a examinar e a agradecer uma noite estrelada? E, na segunda hipótese, qual o naturalista que, pisando a areia do Gonzaga, se lembra, naquela fofeza morna, de imaginar o tempo que o mar levou para esmiuçar das rochas aqueles grãos dourados. Trabalho milenar da natureza.

Ah! Ivone. Vá fazendo seu almoço. A vida é assim mesmo. Meio boba quando nos pomos a pensar. Se só tivéssemos coração e, no coração, um mundo de amor, tudo seria mais bonito. Mais simples. Mais feliz.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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