GENTE E COISAS DA CIDADE
Não é para desesperar?
Lydia Federici
Ivone não estava zangada. Apenas muito cansada. Um ar de desânimo nos ombros tombados. Puxava o carrinho da feira, meio vazio, bem devagar.
“Gripe chegando? Ou saindo?”
Sacudia a cabeça molemente. Nem uma, nem outra coisa. Que era então toda aquela tristura?
“Nem sei. Vinha pensando. Pensando no que a gente faz”. Deixou o carrinho de pé. Ficou a coçar a palma da mão. “Você, alguma vez, pensou na trabalheira que se tem para fazer um simples almoço? Olhe. Hoje, por exemplo. Já fui até a padaria. Suplicar por um pouco de farinha. Consegui um punhado de promessa. Você faz bife à milanesa sem farinha? Só com promessa? Pois vou experimentar. Pra ver com que gosto fica”. Ivone sorriu. Imaginando o tempero.
“Depois da padaria, passei pelo açougue. O alcatre estava no primeiro corte. Fiquei esperando que alguém levasse aquela ponta. Fiquei vinte minutos à espera. Fui pra casa. Tirar todo mundo da cama. Agora estou na feira. Correndo pra baixo. Pra cima. À procura das verduras mais frescas. Das melhores frutas. Você descobriu a banca que tem o arroz menos velho? Não? Então tenho que procurá-la. Pois é isso. Depois vou até o apartamento. E levo o resto da manhã a preparar o almoço. Um almoço que me leva seis horas de correrias e de dozinha. E que, em quinze minutos, aquelas três bocas esfomeadas liquidam. Sem sequer pensar em dizer que a carne está gostosa. Quanto mais imaginar a trabalheira que aqueles quatro pratos me custaram. Não é pra desesperar? Não é de dar vontade de sumir?”
É. É.
Ivone tem razão. Como qualquer mulher que cozinha também a tem. Acontece apneas que, a ir pelo mesmo raciocínio,, qualqur homem pode fazer a mesma queixa. Num par de sapatos, comprados em meia hora, usados não mais que quatro vezes, sua galante filha lhe gasta o salário de uma semana de trabalho. E há alguém, então, que deveria viver a queixar-se. Chamem-lhe Deus os crentes. Ou Natureza os ateus: na primeira hipótese, quem se detém a pensar na maravilha que é a vida? O universo? Que céu de carinho e sabedoria não custou isso tudo ao Criador? Quem se põe a examinar e a agradecer uma noite estrelada? E, na segunda hipótese, qual o naturalista que, pisando a areia do Gonzaga, se lembra, naquela fofeza morna, de imaginar o tempo que o mar levou para esmiuçar das rochas aqueles grãos dourados. Trabalho milenar da natureza.
Ah! Ivone. Vá fazendo seu almoço. A vida é assim mesmo. Meio boba quando nos pomos a pensar. Se só tivéssemos coração e, no coração, um mundo de amor, tudo seria mais bonito. Mais simples. Mais feliz.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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