GENTE E COISAS DA CIDADE
Caminhantes imprudentes
Lydia Federici
Um tribunal português, ao examinar o relatório de um caso de atropelamento, não teve dúvidas em julgar. E aplicar a sentença condenatória. O caso fora o seguinte: o sr. Ferreira, avançando a pé, por uma avenida que, na hora, dava livre trânsito aos veículos, provocara um desastre. Atropelara um motociclista. Que sobre ele viera. A culpa, positivamente, fora do desobediente pedestre. Desobediente ou distraído? Não importava. O juiz aplicou-lhe uma condenação. Para ensiná-lo a respeitar o direito dos motoristas.
Ai. Se aqui começássemos a castigar os transeuntes imprudentes, distraídos ou afoitos, nossas ruas se despovoariam. Porque, francamente, andar mal como andamos nós, em nenhum outro lugar da terra se vê. O santista ainda não se convenceu de que a cidade se motorizou. Onde, antes, corriam 3 mil veículos, disparam hoje dezoito mil. Isso em dia comum. Que, nos feriados e fins de semana, o número vai a 24. Ou 25 mil.
Outro mal nosso é não nos convencermos de que, pelo menos nas ruas, a decantada pacatez do santista já não existe. Corre-se, agora, por aqui. Principalmente quem gira sobre rodas de borracha. E o terceiro fator de nosso péssimo transitar é o desconhecimento das regras de trânsito.
Trânsito, para os pedestres, é essa coisa a que ciclistas, lambretistas, triciclistas, choferees e ‘chauffeuses’, motoristas e motorneiros estão sujeitos. Obrigados a obedecer. Sinaleiros e faixas, guardas e gritos, pisca-piscas, postes de sinalização, apitos e multas foram inventados para chatear os gozadores que guiam. Nunca para disciplinar os mártires que andam a pé. Vai daí o antagonismo que separa as duas classes. Perfeitamente distintas. Uma detestando e excomungando a outra.
O ideal seria que as duas bem determinadas categorias chegassem a compreender seus direitos. E suas obrigações. De um modo geral, passeios e calçadas são exclusividade do caminhante. Como rua ou avenida é leito em que os veículos têm preferência. Onde têm prioridade.
Quando um carro, para entrar numa garagem, tem que subir no passeio, é dever do motorista esperar que o casalzinho sussurrante lhe livre a passagem. Para que assustar, com uma buzinada ou investida terrestre, quem está no céu? Como também é obrigação de quem anda a pé respeitar e facilitar a corrida de quem guia.
Nesse caso, nunca se atravessaria, por exemplo, a avenida da praia? Claro que sim. É só procurar uma esquina. As faixas de segurança. Há sempre guardas ali. Mas quem diz? Pedestre e motorista são inimigos. Fazem questão de viver em guerra. Ambos se atropelam. E se atrapalham. Por teimosia. E birra.
No dia seguinte, infelizmente, os jornais noticiam a desgraça.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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