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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 387)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 12 de abril de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Relembrando

Lydia Federici

Foi no ano passado que isto aconteceu. Exatamente na Sexta-feira Santa. Há um ano, portanto, que a lembrança, vez ou outra, dá de bater. Fazendo-me pensar.

Não sei, amigo, até que ponto vai a sua memória. Nem sei se, naquele dia, seus olhos pousaram neste canto. Que contava, mais que uma história de miséria, uma outra de respeito às coisas da religião.

Era uma cena com dois personagens. Passada num fundo de quintal. Entre Toninho. Uma criança pobre. Acostumada a passar fome. E Pery. Um cachorrinho de pescoço pelado. Que a criança alimentava. Com ele dividindo sua fome.

A história era verdadeira. Toninho existia. E existirá até o fim do mundo. Quando desaparecerá a miséria do seio dos homens? Pery também era real. E continuará a viver. Enquanto houver crianças na terra. Que, à falta de outras distrações, de outro amor, se apegarão a esse amigo sempre pronto a satisfazer-lhes a sofreguidão de carinho. De calor. Se os personagens eram reais, a história também o era. Passara-se com uma criança que, ensinada a fazer abstinência de carne, na Sexta-feira Santa, pretendia que seu cão também observasse esse preceito. A crônica, portanto, apesar de arranjada como colcha de retalhos, era autêntica no que reproduzia.

Pois muito bem. À noitinha – ou foi ao meio dia? – recebi um telefonema. Era um senhor. Queria saber se a história era verídica. Deus. Era sim. O fundo do quintal eu vira numa das ruas do Marapé. Perto do morro. Toninho era um moleque de rua. Criado pela avó. Vivendo do que ela conseguia. O cachorro? Claro que existia. Vira-o um dia. Magro. De bigodes brancos. Olhos muito humildes. Manso. Suplicando carinho. Seria eu capaz de localizar a casa? A casa onde eu vira essa cena? Bem. Acontecia que a história era montada. Com farrapos de lembranças. Guardadas, em diversos tempos, daqui e dali.

Mas por que estava ele tão interessado em saber desses detalhes? Quando fiz a pergunta, o coração batia-me forte. Compreenda, amigo. Há muita gente boa neste mundo. Pretenderia esse senhor, porventura, mudar a sorte daquela criança sem pão? Dar, pelo menos, ao Toninho, na Páscoa, um pouco de alegria? Um ovo colorido? Uma roupa nova? Um brinquedo?

Não. Quem me telefonava fazia parte da Associação Protetora dos Animais. Interessava-se pela desgraça de Pery. Queria recolhê-lo.

***

Há um ano esse episódio, vez ou outra, quando me vem à memória, faz-me pensar. Alguém se interessara pela sorte de um pobre cão. Ninguém, pela de Toninho.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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