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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 380)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de abril de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Adivinhando o jogo

Lydia Federici

O casal idoso tinha ficado só. A tomar conta do casarão velho. Genro e filha haviam saído. Pra ir ao cinema: Ou até o clube? Dona Tudinha teimava, gritando, que eles tinham falado em ir ver uma fita. Seu Gervásio, sem querer discutir, não insistira. Sabia que eles estavam no clube. Era dia de “pif” (N.E.: jogo de pif-paf). Além disso, aqui ou ali, pouca diferença fazia. Voltariam tarde. O caso é que estavam os dois, sozinhos, em casa. A enfrentar mais uma noite de monotonia.

Mas aquela noite, para ele, iria ter uma atração especial. Tuda que fosse cedo para o quarto. A desfiar contas de rosário. Ele ficaria ouvindo, sossegado, a transmissão do jogo do Santos. Com as janelas fechadas, vidro e tudo, ninguém ouviria o rádio. Sintonizado no máximo de volume. Se ouvissem, paciência. Aquela não era uma noite como qualquer outra. Os vizinhos teriam que compreender. E perdoar.

Quando dona Tudinha lhe perguntou se não subiria, ele mandou-a ir indo. Subiria logo mais. O quê? Sim. Não se esqueceria de tomar o remédio. Boa noite. Boa noite. O quê? Não. Não demoraria muito.

Sozinho, fechou portas e janelas. Ligou o rádio. Sentou-se perto do aparelho. Com um sorriso feliz, maroto, percebeu, esfregando as mãos, que a partida ainda não principiara. Repetiam a escalação. Que bom. Era assim, exatamente assim, que formaria a linha do Santos. Não havia, nem na lua, homem melhor para qualquer uma daquelas posições.

Quando o locutor anunciou o início do encontro, seu Gervásio uniu as mãos. Prendeu-as entre os joelhos ossudos. “Vamos time!” E, corpo espichado, ficou à espera. Depois de um minuto, como o jogonão começasse, ele pôs a mão, em concha, junto ao ouvido. Será que guardavam um minuto de silêncio em homenagem a alguém? Esperou mais um pouco. Nem uma palavra. Nem o trilado do aito. Nem o zumzum distante e rouco da multidão.

Com o coração apertado, experimentou outras estações. O mesmo silêncio. Absoluto. Teve, recalcitrante, que admitir que o rádio entrara em greve. Pifara miseravelmente. Mas logo naquela noite? Soergueu-se para ligar o aparelho de TV. Tornou a cair na cadeira. O diabo, há uma semana, esperava pelo técnico. Assim, até a chance de ouvir, entre programas, um resultado muito espremido e lacônico, lhe fugia. Não era muito azar? Lembrou-se do transistor do Valdo. Procurou-o, nervosamente, por todos os cantos. Será que o rapaz tivera o topete de levá-lo para a Faculdade?

Macambúzio, não teve outro remédio. Subiu para o quarto. O abajur aceso iluminava os cabelos brancos da mulher. Seus lábios murchos. Sussurrantes. Os dedos delicados a segurar as contas escuras do terço. Ela é que era feliz. Neste mundo, só a interessavam os santos do céu.

“Por que você abriu a janela, Gê? Não faz calor. Não há luar”.

Seu Gervásio nem a ouviu. Só queria ver rojões cruzando o céu. Seus estouros, de louca alegria, chegando-lhe abafados. Fazendo-o adivinhar os gols. Quatro? Cinco? Seis? Tantos assim? Seria possível?

Foi deitar-se feliz. A contagem pouco importava. Sabia que o Santos vencera. Nem noite de São João lhe parecera, nunca, tão bonita. Tão festejada.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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