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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 373)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 27 de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Pão

Lydia Federici

Não sei de alguém que tenha relacionado uma com outra coisa. Na verdade, nem sei se há relação. Vai a crônica, apenas, e somente, como apresentação de fatos. Os estudiosos e entendidos que nos deem opinião.

A história é devida a uma coincidência. Logo no começo do dia, uma amiga, na feira, explicou a razão de sua palidez. Apatia. E tristeza.

"Fígado. Comprei pãozinho fresco para o lanche. uma hora depois, nós três passávamos mal". Ora. Pão não faz mal. Lanche não é constituído apenas por pão. Toma-se leite ou chá. Come-se biscoito. Queijo. O que tiver sobrado de um bolo. Não teria sido um desses complementos? A resposta foi categórica.

"Não. Só tomamos leite com pão amanteigado. O leite estava bom. A manteiga, fresca. Foi o diabo do pão. Feito de não sei quê. De miolo mais cinzento que essa nuvem que vem chegando. Ciau. Corra que vem chuva aí".

À noite, fechando esse mesmo dia, debruçada sobre as grades da piscina do Saldanha, Ivenza, recém-chegada da Itália, cumprimentava, com efusão típica, os amigos do marido brasileiro, Haroldo de Melo Lara.

No meio de uma conversa, veio à tona o motivo saúde. Falava-se de vigor. De exuberância. De dinamismo cotidiano. Aplicado nas pequenas e grandes atitudes. Até no modo de falar. Qualidades essas que ela, como verdadeira filha da Itália, estranhava não encontrar no povo daqui. Tão calmo. Tão pacato e sossegado. Fervendo, se fervesse, a fogo lento. Enquanto que lá, tudo é ebulição. Violenta. Estourando com estrondo. Por excesso de vitalidade.

Por uma questão de temperamento? Mas se também somos latinos? Claro que somos. Mas ela ainda não reparara neste clima? A abafar vontades? A amolecer corpos? Além do mais, vigor, disposição, alegria, é uma questão de saúde. O dono de um estômago vazio vive murcho. Macambúzio. Quem sai de uma crise de fígado não tem vontade de pular. Nem de falar. Não admite, sequer, os pulos ou a verbosidade dos outros. Quer silêncio. Sossego. Para recuperar-se.

Foi aí que ela se lembrou do pão. Se há povo que devore pão, é o italiano. Tanto que seu pão é célebre. Redondo. Gordo. Inchado. Uma ligeira casca dourada a cobrir dois quilos de miolo branco. Macio e úmido, apesar de compacto. Tão gostoso, tão saboroso, que nem precisa de ser acompanhado. Dispensa tudo que lhe possa dar outro sabor. Basta-se a si próprio. Como gulodice e mata-fome.

"É vero. É vero. Durante a guerra, depois da guerra, sem pão de trigo puro, com pão de terra, com pão de cal, com pão de cimento, de pedra, nós também perdemos a saúde. Passamos a sofrer do estômago. Do fígado, De tudo. E não víamos alegria no mundo.

E Ivenza, olhando para dentro, a investigar lembranças, lançou lentamente a pergunta-conclusão:

"Só anos depois, quando o pão voltou a ser de trigo, puro e bom, foi que recomeçamos a viver com alegria. Viva o pão!"

Raios. Estamos em guerra para ter que aguentar esse pão? E sofrer?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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