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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 372)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 26 de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mar! Mar!

Lydia Federici

Vai a crônica de hoje como homenagem ao aniversário do jornal.

***

Eles voltaram. Todos. Alguns com ligeiros arranhões. Nenhum sem um grande susto.Todos, pela primeira vez, acharam que o mar não era o amigo que conheciam. Julgaram-no traiçoeiro. Mau. Pérfido. É bom que pensem assim. Tomarão, agora, mais cuidado. Não se descuidarão. Mas terão eles aprendido que o mar que os castigou tem os seus sinais de perigo? Que não é traiçoeiro como pensam?

Aconteceu num sábado. Quando a meninada,aproveitando a folga sem preocupação, gosta de ir à Ponta da Praia. À tarde. Entram os garotos num dos clubes. Alvoroçados. De lá saem, pouco depois. Empurrando uma baleeira até o mar.

Sim. Muitos rapazes gostam de vogar, mansamente, sobre a água azul. Ou verde. Se lhes perguntarem que prazer sentem em calejar as mãos, só então, talvez, reparem nas bolhas vermelhas. Gostam de ir para o mar? Não sabem. Não conseguem sequer analisar o que sentem. Vão porque é bom. Porque é gostoso. Porque é bonito. É amor sentido mas não explicável. Amor que, pela vida afora, continuará a fazê-los voltar para o mar. Sempre. Embora, às vezes, só em sonhos. Ou no bote leve da saudade.

Neste último sábado, quente e abafado, muitos rapazes saíram. Em baleeiras coloridas. Só tinham olhos para ao mundo de água. Que eles viam separar-se na proa do barco. E juntar-se, novamente, em borbulhos, numa pequenina esteira branca após a passagem do "navio" que comandavam.

No mar não há relógio capaz de marcar as horas. Mas é relógio sem ponteiros. Só o sol diz que é dia. Ou a escuridão da noite é que avisa que já passou da hora de voltar. Sim. Quem está sobre o mar ignora o tempo. Não tem olhos a não ser para aquele mistério fascinante.

Foi por isso que nenhum dos rapazes viu o céu escuro. Ainda durante o dia. Foi por isso que ninguém percebeu o vento a chegar. Quando sentiram o barco correr, desobediente aos remos, fugindo com a correnteza, era tarde. Não havia mãos, por mais fortes e desesperadas, que conseguissem vencer a força das correntes. Inúteis eram os remos. impossível sair das pedras da Fortaleza Velha. As ondas empurravam barcos e nadadores contra as rochas.

Compreenderam, então, os meninos, que o mar nem sempre é amigo. Apavorados, chamaram-no de traiçoeiro. A tremer. Mortos de medo.

Não. O mar tem seus perigos. Mas traiçoeiro ele não é. Não ataca de surpresa. Quando vai substituir sua mansidão por ondas de morte, ele, antes, dá seu aviso. Apregoa, claramente, a futura mudança. Mar é lunático. Sofre influências. Suas marés acompanham a lua. Sua cor reflete a cor do céu. Azul. Ou ameaçador no seu chumbo escuro. Segue sempre o humor dos ventos. Acompanha-lhe o cicio da brisa. O rugido do vendaval.

Quem sai para o mar deve aprender a conhecê-lo. Compreender-lhe as manias. Investigando céu. Cheirando e pesando o ar. Ouvindo a voz do vento. Alongando, vez ou outra, o olhar até o horizonte.

Foi isso que os meninos que saem aos sábados, nas baleeiras, não souberam fazer nesta última véspera de domingo. Levaram um grande susto. Apenas um grande susto, socorridos que foram. A tempo.

É, rapazes que amam este mar sempre tão calmo e amigo. Aprendam a conhecê-lo. Para poder gozar, pela vida afora, a embriaguez de vogar sobre o mar.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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