GENTE E COISAS DA CIDADE Obrigado, Senhor
Lydia Federici
Enquanto pôde, ele trabalhou. Trabalhou para patrões e patroas que exigiam jardins bonitos. Querendo ver grama cobrir
canteiros numa semana. Reclamando contra roseiras que não davam flores o ano inteiro. Como também pegava serviços em casas cujos donos poucos palpites davam. Limitando-se, quando muito, a dizer, depois de um olhar distraído às plantas, que estava
tudo bem. E a pagar-lhe o dia de trabalho.
Para uns e outros, enquanto pôde, ele trabalhou bem. Tão em para os exigentes como para os que nem lhe sabiam apreciar o trabalho. É que o velho Joaquim não era, propriamente, empregado de patrões. E sim um verdadeiro jardineiro. Que trabalhava
para as plantas. Por amor a elas. Por que, então, exigia pagamento? Ora. E de que viveria ele?
Chegou, entretanto, um dia em que teve que largar alfanje, pá e ancinho. Suas mãos endurecidas já não lhe aguentavam o peso. Nem seus joelhos podiam ficar, por horas e horas, dobrados. Aposentou-se. Sem direito à pensão. Pouco lhe importava. Tinha
um chalé numa ruazinha do Macuco. Onde morava com a velha. Os filhos, casados, sempre haveriam de ajudá-lo.
Pois sim. Dos filhos não lhe pingou tostão. Muito orgulhoso para estender-lhes a mão, foi comendo suas pequenas economias. A velha continuava a lavar roupa. Isso ajudava um pouco. Mas não dava. Não dava para quase nada.
Assim, um belo dia, o velho jardineiro, depois de muitas noites mal dormidas, resolveu vender suas plantas. Tinha-as bonitas. Bem tratadas. Muito suas no pequeno jardim e quintalzinho do chalé.
Deus! Como lhe doeu separar-se delas. Quando uma antiga freguesa de seus serviços lhe ficou com o xaxim da filigrana portuguesa, o velho Joaquim chegou em casa mais miúdo e curvo do que nunca. Dorido e quebrado por dentro e por fora. Ainda sentia
nas mãos artríticas a última carícia que fizera às folhas rendadas. Como era dura e vergonhosa aquela nota de quinhentos que entregou, cabeça baixa, à mulher silenciosa.
Mas teve que habituar-se. Que outra coisa poderia ele fazer? Devagar foi fazendo mudas. E foram as plantas que lhe garantiram o pão. Eram tão bonitas, viçosas e baratas que raramente, nos seus passeios, voltava a trazer as latas para o seu querido
jardim. Vendia-as sempre.
E, de repente, veio esse mês sem chuvas. Coincidindo com falta d'água na sua rua. O velho Joaquim caminhava quilômetros por dia. Carregando baldes. Cada vez mais encarquilhado. Mais cansado. Sofrendo mais por dentro que por fora. Ao ver o seu pão
verde amarelar. Estiolar-se. Secar de vez.
A chuvarada de dois dias atrás tirou-o da cama. Não houve rogo da mulher que o impedisse de sair para o jardim. Ajoelhou-se na terra encarquilhada. Por onde a chuva escorria. Quente. Com a mão em concha apanhou um pouco d'água. Beijou-a. Levantou o
rosto, enrugado, brilhante de chuva e de lágrimas.
"Obrigado, Senhor".

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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