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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 370)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 23 de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Obrigado, Senhor

Lydia Federici

Enquanto pôde, ele trabalhou. Trabalhou para patrões e patroas que exigiam jardins bonitos. Querendo ver grama cobrir canteiros numa semana. Reclamando contra roseiras que não davam flores o ano inteiro. Como também pegava serviços em casas cujos donos poucos palpites davam. Limitando-se, quando muito, a dizer, depois de um olhar distraído às plantas, que estava tudo bem. E a pagar-lhe o dia de trabalho.

Para uns e outros, enquanto pôde, ele trabalhou bem. Tão em para os exigentes como para os que nem lhe sabiam apreciar o trabalho. É que o velho Joaquim não era, propriamente, empregado de patrões. E sim um verdadeiro jardineiro. Que trabalhava para as plantas. Por amor a elas. Por que, então, exigia pagamento? Ora. E de que viveria ele?

Chegou, entretanto, um dia em que teve que largar alfanje, pá e ancinho. Suas mãos endurecidas já não lhe aguentavam o peso. Nem seus joelhos podiam ficar, por horas e horas, dobrados. Aposentou-se. Sem direito à pensão. Pouco lhe importava. Tinha um chalé numa ruazinha do Macuco. Onde morava com a velha. Os filhos, casados, sempre haveriam de ajudá-lo.

Pois sim. Dos filhos não lhe pingou tostão. Muito orgulhoso para estender-lhes a mão, foi comendo suas pequenas economias. A velha continuava a lavar roupa. Isso ajudava um pouco. Mas não dava. Não dava para quase nada.

Assim, um belo dia, o velho jardineiro, depois de muitas noites mal dormidas, resolveu vender suas plantas. Tinha-as bonitas. Bem tratadas. Muito suas no pequeno jardim e quintalzinho do chalé.

Deus! Como lhe doeu separar-se delas. Quando uma antiga freguesa de seus serviços lhe ficou com o xaxim da filigrana portuguesa, o velho Joaquim chegou em casa mais miúdo e curvo do que nunca. Dorido e quebrado por dentro e por fora. Ainda sentia nas mãos artríticas a última carícia que fizera às folhas rendadas. Como era dura e vergonhosa aquela nota de quinhentos que entregou, cabeça baixa, à mulher silenciosa.

Mas teve que habituar-se. Que outra coisa poderia ele fazer? Devagar foi fazendo mudas. E foram as plantas que lhe garantiram o pão. Eram tão bonitas, viçosas e baratas que raramente, nos seus passeios, voltava a trazer as latas para o seu querido jardim. Vendia-as sempre.

E, de repente, veio esse mês sem chuvas. Coincidindo com falta d'água na sua rua. O velho Joaquim caminhava quilômetros por dia. Carregando baldes. Cada vez mais encarquilhado. Mais cansado. Sofrendo mais por dentro que por fora. Ao ver o seu pão verde amarelar. Estiolar-se. Secar de vez.

A chuvarada de dois dias atrás tirou-o da cama. Não houve rogo da mulher que o impedisse de sair para o jardim. Ajoelhou-se na terra encarquilhada. Por onde a chuva escorria. Quente. Com a mão em concha apanhou um pouco d'água. Beijou-a. Levantou o rosto, enrugado, brilhante de chuva e de lágrimas.

"Obrigado, Senhor".


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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