GENTE E COISAS DA CIDADE Cuidado com os velhinhos
Lydia Federici
Aparece muita coisa triste nas páginas do jornal. Alegres e agradáveis também. Felizmente. Entre as da primeira
espécie, há as que se referem a atropelamentos de sexagenárias. De septuagenários. Mais dolorosas que essas, só as que falam de acidentes ocorridos com crianças.
Deixemos que o anjo da guarda cumpra sua missão. Junto das crianças que mal começaram a viver. Falemos um pouco dos velhinhos. Para tentar explicar aos que guiam, como agem essas pessoas que, vivendo no passado, cruzam as ruas do presente.
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Dizem que pessoas idosas estão na segunda infância. Nunca vi mentira maior. Criança não pensa. Velhinho não faz outra coisa. Criança age. Inconscientemente. Velhinho só depois de muito pensar é que
se atreve a mexer-se. E, quando se movimenta, é sempre guiado por pensamentos do passado.
Acontece, motorista amigo, que, na rua, para onde são obrigados ou levados a ir, os velhinhos pensam que os outros todos também são do seu tempo. De um tempo em que os carros não corriam. Em que não havia ônibus. Em que, principalmente, havia
respeito por uma cabeça prateada pelos anos. Em que tudo se fazia sem pressa. De um tempo em que, tolhendo o passo de alguém, a pessoa parava. Levantava o chapéu. E pedia mil desculpas.
Acontece também, motorista amigo, que velhinhos, em geral, têm os olhos cansados. De tanto ver coisas. Bonitas e feias. De muito chorar. Por filhos perdidos. Ou netos transviados. A luz, essa luz tão bonita, acabou por quase cegá-los. Cercando-lhes
os olhos por uma nuvem permanente. Eles olham. Pensam que veem. Mas muito pouco enxergam. Nem sabem que o seu carro, amigo, avança pela rua. A correr.
Acontece ainda, motorista amigo, que velhinhos também perdem a acuidade auditiva. Não adianta você buzinar. Eles, se chegam a ouvir, não conseguem compreender que aquela estridência é um aviso de perigo. Perdidos nos seus sonhos, ouvindo músicas
estranhas, julgam que a buzinada faz parte da sinfonia de sua saudade.
Acontece, sim, pode perfeitamente acontecer, amigo motorista, que, mesmo que seus olhos tenham visto, seus ouvidos, ouvido, eles, assustados, queiram parar. Desviar. Ou correr. E, nesse caso, será pior. Porque pernas, cujas agilidade o reumatismo
embotou, já não podem estancar o corpo desequilibrado. Nem desviá-lo com rapidez. Nem levá-lo, num átimo, a salvo, para o outro lado da rua. Essas pernas já foram boas. Hoje, ainda valem muito. Mas já não têm elasticidade. Flexibilidade. Nem
rapidez. Que os possa salvar de sua pressa irresponsável, amigo.
Por todas essas razões, amigo, tenha cuidado com os velhinhos que andam pelas ruas. Eles têm o direito de continuar a viver. Até que Deus, tranquilamente, os leve em paz. Sem sustos. Nem agonias desnecessárias. Pousando-lhes as mãos nos olhos
enquanto dormem numa cadeira de balanço. Ou na cama. A sonhar saudade. Paz. Até e sempre esperança.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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