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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 368)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão
expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta
transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE A foca e a tartaruga
Lydia Federici
Não seria aquela, com certeza, a primeira vez em que o tanque redondo do Aquário estaria sendo limpo. Soube depois que
aquele era serviço de toda sexta-feira. Mas foi a primeira vez em que viu, assustada, do alto do apartamento, as focas caminharem pelo fundo seco do poço.
Tudo começou com o calor. Enquanto a água demorava a ferver, sobre o fogão, Verinha chegou até o living. Escancarou as vidraças. Deu um bom dia ainda sonolento ao mar que repousava. Preguiçoso. Quieto. Mal e mal arfando nas ondas mansas que rolavam
pela areia.
Abrindo os braços, endireitando as costas doridas, a moça respirou, fundo, o ar gostoso da manhã. Um carro buzinou. Apressado. Ela pousou as mãos no peitoril e olhou para a avenida. Nada de anormal. Já ia afastar-se quando viu o tanque vazio. No
tanque vazio, homens que esfregavam as paredes. E, no fundo cimentado, rolando, desengonçadas, as focas de pelo luzidio.
Sempre as vira n'água. Ou dormindo, pacatamente, sobre a coluna central. Ou pulando, a latir com desespero, para o homem amigo que lhes atirava peixes. Mas no seco, remexendo, com deselegância, o corpo banhudo e pesado, era-lhe espetáculo novo.
Esqueceu do café e ficou a rir. Com os braços já apoiados no peitoril, sonhadora sentiu-se menina. No circo. E foi coisa de circo que viu a seguir. Num setor do poço estava a tartaruga. A mostrar o casco branco. Né. Ela sempre não fora escura? Como
pudera esbranquiçar assim? Algum desgosto? Como um desses que branqueiam certas cabeleiras? Ou alguém, gaiatamente, resolvera fazer-lhe uma rinsagem loira? Não. Arregalando os pequeninos olhos azuis, a moça percebeu que a tartaruga estava mesmo é
de pernas para o ar. Deitada, com desconforto, sobre as costas redondas. Quem a virara assim? Os operários que faziam a limpeza? Para que ela não lhes viesse empurrar a escada? Ou esfregar-lhes nas pernas nuas?
Fosse o que fosse, o caso é que uma das focas, descobrindo a desdita da companheira, resolveu tirá-la daquela situação vergonhosa. Chegou-se, de manso, para a tartaruga. Enfiou o focinho sob o casco e, depois de algumas tentativas mal sucedidas,
conseguiu endireitar a pesadíssima e infeliz criatura. Que, de tão cansada, nem um passo deu. E, provavelmente, nem um sopro de agradecimento.
"Ora. Ora. Ora. Nunca pensei que essas focas fossem assim tão caridosas". Enquanto conjeturava sobre a bondade dos animais, a panela, na cozinha, começou a levantar a tampa. Reclamando sua atenção. Foi. coou o café e voltou para a janela do living.
O marido ali estava. Olhando para o Aquário. Contou-lhe, maravilhada, o ato da foca. Nem bem acabara a história, sentiu uma cutucada nas costelas. Um dedo grande apontou-lhe o tanque. A foca, perto da tartaruga, enfiava-lhe o focinho risonho sob o
casco. Até virá-la de costas.
"Olhe ali a bondade da foca. Uma grande arteira é que ela é".
Deus! Como há focas neste mundo.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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