GENTE E COISAS DA CIDADE Sob o céu
Lydia Federici
Não é o calor que nos mata. Até que, com exceção de três ou quatro dias, este verão, à sombra, não tem dado grande
subida ao mercúrio dos termômetros. O que positivamente nos liquida é o abafamento. O ar pesado. Incapaz de oxigenar pobres pulmões quase secos.
É a noite a pior parte. Quem dorme? Quem consegue descansar? A ficar acordado entre quatro paredes, os olhos arregalados presos à escuridão e ao peso de um teto invisível, prefere-se olhar a noite. O céu. Há mais ar lá fora. Uma ou outra folha, a
mexer-se, afirma a existência de uma aragem vagabunda. Preguiçosa e lenta como a nossa vontade inerme. Oh! A vontade de adormecer olhando as estrelas. De brilho fresco. A vontade de sentir a brisa, que vai para o mar, passar os dedos invisíveis
pelo rosto afogueado.
E é isso que muita gente faz. Ao ir até as praças. Ao chegar até o mar. Mas onde a coragem de passar toda a noite sob as estrelas? A luz da lua azulando a escuridão? Largando o cansaço e o acaloramento do corpo sobre um gramado macio. Seco. Mas
muito mais fresco que algodão de lençóis? Ninguém se atreve a dormir sob o luar. Sob os ramos de uma árvores, embalado pelo murmúrio monótono do mar. A cantar canção de embalo. De ninar. Quem o faria? Você, amigo? Tão respeitador das convenções
sociais? Ou você, amiga? Tão temerosa de ladrões e assaltantes?
No entanto, alguém o fez.
Ele chegou até a praia. Parou num dos jardins. Junto do Aquário. Vinha cansado. O corpo dobrado. E quem não anda assim? Ao peso das preocupações e do abafamento amolecedor? Sem se importar com ninguém, pisou um dos canteiros. Escolheu uma árvore a
jeito. Aquela servia. Tinha o tronco reto. E esgalhava-se, copa arredondada. De um saco, retirou quatro espeques. Fincou-os no chão. Ao redor do tronco vivo. Amarrou tudo com cordas. Sob a armação do telhado estendeu a cobertura. Oh! Oh! E não é
que o grande sabido já tinha tudo preparado? E já aparecera com a intenção firme de dormir sob o céu? Ali estava a sua tenda. Sem paredes para que a frescura da noite aberta a varasse de lado a lado.
Homem feliz. Homem de coragem. A quem um jardim público servia de quarto. Que um gramado macio, que não podia ser pisado, servia de colchão. Cujo sonho despreocupado o mar embalaria. E o vento, carinhosamente, acariciaria.
Sim. Homem feliz. Até sua pequena família juntara-se a ele. Para gozar a beleza da noite. Quem, ao passar, não invejaria o dono da noite? Do mar? Do jardim?
Acontece apenas que o homem que dormia sob o luar, junto ao mar, não armava sua tenda no jardim da praia por gosto. Como meio de driblar o calor. Ou por poesia ou espírito aventureiro. Fazia-o por necessidade. Aquela era sua casa. A casa de sua
família. o que para nós seria ventura, beleza e poesia, para ele era miséria. Desgraça. Amargor de necessidade.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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