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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 364)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 16 de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Condenada

Lydia Federici

Há tempos, uma senhora deu-se ao trabalho de escrever-me. Fazendo um pedido tríplice. Queria que esta crônica falasse de um pedaço pequeno de Santos. onde se erguem três monumentos do passado.

Da velha Cadeia ainda não me atrevi a falar. Desconfio das vigas que sustentam seu velho telhado. Do Teatro Guarani, até há pouco transformado em cinema de classe duvidosíssima, tenho pena de falar. É velhice arrastada na miséria. Na sujeira. Cuja beleza passada o presente aviltou. Num dia, entretanto, de meia estação, faremos uma visita à Cadeia e ao Guarani. Terá que ser um dia muito especial. De céu azul. E ar puro. Para compensar o mergulho na escuridão do passado. Que o tempo, passando, não soube enobrecer.

Quanto ao terceiro pedido, aqui vai ele. Atendido. Com certa dor no coração. Porque, suave e saudosa Rosa do Prado, a velha praça está condenada. Não para servir ao progresso. Como muita gente, com bastante razão, pretenderia. O mais belo monumento da praça dos Andradas desaparecerá. Não derrubado, arrasado, por picaretas. Nem por machados. Ou serras. Mas por um mal que a própria natureza criou. Para destruir vida que ela, durante séculos, alimentou.

Vamos à praça. Vamos à praça, à única diante da qual os estrangeiros se embasbacam. Porque, na verdade, é a única que tem algo que foge ao comum. Não é moderna. Incolor apesar do colorido de ladrilhos. É um recanto que lembra floresta. Frescura e umidade de floresta. Nãot em disciplina. Nem de curvas nem de retas. Podadas as plantas a cada outono. É um retângulo em que nossos avós plantaram alguns ficus. Tendo a ideia bondosa de deixá-los crescer livres. Espalhando os galhos para o céu. Entrelaçando ramas. Enodoando-se as raízes em abraços carinhosos. Mais que isso. Torturantes como abraços de amor.

Sim. Vamos à Praça dos Andradas. Mas cuidado, amiga. Cuidado com o trânsito. E sobretudo, fujamos do seu limite Leste. Sempre malcheiroso. Abordemo-la por qualquer um de seus outros três lados. Pela banda que corresponderia à continuação da Rua XV, nunca. Não sei que fazem todas aquelas casas de negócio para empestear o trecho de forma tão nauseante.

De tudo que a cerca, nada tem importância. Sua beleza está apenas nas árvores. Não olhe para os canteiros remodelados. Comece a ver a irregularidade do chão. Onde se fincam as raízes gigantescas. Admire os troncos cavados. Reentrantes. Salientes. Bordados pelo desenho das raízes aéreas. Veja, ainda, as copas verdes. Chilreantes. "Ray-bans" naturais a filtrar suavemente a crueza da luz dourada. Deixe o escuro das folhas apaziguar-lhe a alma. Feche os olhos para melhor aquilatar da diferença de temperatura. Entre a rua escaldante e aquela sombra que lembra paz de mata. Em plena cidade.

É a única praça de Santos que tem voz própria. Alma diferente. Ainda meio indômita. Bravia. Vá lá vê-la, amigo, enquanto sua catedral verde não sumir. liquidada por milhões de "lacerdinhas". Que a condenaram a morrer.
(N. E.: Lacerdinha é o nome vulgar do inseto Gynaikothrips ficorum).


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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